“A perda da chance nos casos de erro médico
Gislene Barbosa da Costa* é pós-graduada em Administração Legal pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) |
O instituto da responsabilidade civil repousa no
princípio de que a ninguém é autorizado causar prejuízo a outrem e tem como
requisitos principais: (i) a ação ou omissão do agente, (ii) a culpa, (iii) o
nexo causal e (iv) um dano concreto.
O nexo causal e a efetividade do dano apresentam-se
como os de maior relevância, pois, sem a comprovação do efetivo dano, ainda que
o agente tenha alguma relação com a lesão sofrida, não há que se falar em
reparação, não havendo, na doutrina tradicional, qualquer exceção a essa regra.
Conforme prevê o nosso ordenamento jurídico, para
efeito de responsabilidade civil, o dano, seja ele material, seja ele moral,
não pode se presumido. Deve ser real, efetivo e atual, não se admitindo mera
hipótese ou dano futuro. O prejuízo pode ser futuro, como no caso do lucro
cessante, mas o dano deve ser atual. Conforme a atualidade do prejuízo, a
reparação pode se subdividir em duas categorias: (i) referente ao dano
emergente, que representa a efetiva e atual subtração no patrimônio da vítima e
(ii) referente ao lucro cessante, consistente na perda de um lucro esperado; um
prejuízo futuro, mas certo.
A responsabilidade civil sempre repousou nesses
sustentáculos. No entanto, como o Direito acompanha o desenvolvimento social,
intelectual e cultural da sociedade, percebeu-se, em termos recentes,
juridicamente falando, a necessidade de alargar esses sustentáculos, para
abarcar a situação daquele em que teve um prejuízo pela mera perda da
oportunidade de obter uma vantagem, ou evitar um prejuízo, por culpa de ato de
terceiro.
É inegável que ser impedido de realizar um ato que
poderia, em tese, trazer-lhe um benefício, representa um dano, ainda que não
plenamente caracterizado como dano moral, lucro cessante ou dano emergente,
diante da ausência de um dos elementos que configuram a responsabilidade civil,
que é certeza do prejuízo. Caio Mário da Silva Pereira, citado por Silvio de
Salvo Venosa (ver referências ao lado), leciona que: "É claro, então, que,
se a ação se fundar em mero dano hipotético, não cabe reparação. Mas esta será
devida se se considerar, dentro na idéia de perda de uma oportunidade (perte
d'une chance) e puder situar-se na certeza do dano".
Este terceiro gênero de indenização, assim
denominado por considerável parte da doutrina, é chamado "perda da
chance". Surgiu na França, na década de 1960, e é caracterizado pelas
situações em que, por culpa do agente, a vítima fica privada de alcançar uma
vantagem, ou evitar uma perda.
CARACTERÍSTICAS
Esse tipo de responsabilidade civil é dotado de características bastante peculiares, uma vez que a sua configuração, identificação e indenização são feitas de forma distinta da que é utilizada nas outras hipóteses que envolvem reparação por perdas e danos, pois, na perda da chance, o agente (causador do dano) é responsabilizado não por ter causado um prejuízo direto e imediato à vítima, mas sim pelo fato de tê-la impedido de obter uma oportunidade de um resultado útil. Assim, o resultado objetivado só não ocorreu por ter sido interrompido pela ação ou omissão do agente. Então, o que se quer indenizar aqui não é a perda da vantagem esperada, mas sim a perda da chance de obter aquela vantagem.
Esse tipo de responsabilidade civil é dotado de características bastante peculiares, uma vez que a sua configuração, identificação e indenização são feitas de forma distinta da que é utilizada nas outras hipóteses que envolvem reparação por perdas e danos, pois, na perda da chance, o agente (causador do dano) é responsabilizado não por ter causado um prejuízo direto e imediato à vítima, mas sim pelo fato de tê-la impedido de obter uma oportunidade de um resultado útil. Assim, o resultado objetivado só não ocorreu por ter sido interrompido pela ação ou omissão do agente. Então, o que se quer indenizar aqui não é a perda da vantagem esperada, mas sim a perda da chance de obter aquela vantagem.
CONFORME PREVÊ O
NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO, PARA EFEITO DE RESPONSABILIDADE CIVIL, O DANO, SEJA
ELE MATERIAL, SEJA ELE MORAL, NÃO PODE SE PRESUMIDO.
Como exemplo típico de perda da chance, pode ser
citada a situação em que alguém é impedido de prestar um concurso por ato de
terceiro. Ou ainda a situação inusitada ocorrida nos Jogos Olímpicos de Atenas,
em 2004, quando um maratonista brasileiro, liderando a prova e havendo
percorrido mais da metade do percurso, foi interceptado por um transeunte
portador de deficiência mental.
Veja-se que o prejuízo não foi algo palpável,
efetivo, pois inexiste a certeza da aprovação no concurso, caso a vítima
tivesse a oportunidade de disputá- lo, ou de que o maratonista ganharia a
prova, caso tivesse a oportunidade de finalizá-la.
Assim, na teoria da perda da chance, o que se
considera não é a efetividade do prejuízo, mas sim a perda da chance que a
vítima teria, caso o agente não tivesse praticado o ato (omissivo ou
comissivo). Não se questiona o que ela efetivamente perdeu, ou o que
efetivamente deixou de ganhar, mas a probabilidade do ganho - material ou moral
- que obteria, caso o ato ilícito não tivesse sido cometido. Assim, esse
instituto não objetiva indenizar a perda da vantagem esperada, mas sim a perda
da chance de obter aquela vantagem.
Direito Civil.
Responsabilidade Civil. Volume Quatro.
3ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2003, pág. 201.
Responsabilidade Civil. Volume Quatro.
3ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2003, pág. 201.
Segundo Tribunal de Alçada Civil, apelação
688.509-0, 12ª câmara, relator Jayme Queiroz Lopes, julgado em 18/11/2004.
ANÁLISE
Silvio de Salvo Venosa, por sua vez, entende que nossos tribunais já vêm aplicando o instituto da perda da chance nas situações em que é prevista indenização aos pais por morte de filho menor: "Quando nossos tribunais indenizam a morte do filho menor com pensão para os pais até quando esse atingiria 25 anos de idade, por exemplo, é porque presumem que nessa idade se casaria, constituiria família própria e deixaria a casa paterna, não mais concorrendo para as despesas do lar. Essa modalidade de reparação de dano é aplicação da teoria da perda da chance."
A conclusão do ilustre doutrinador é bastante coerente. Os tribunais
fixam a indenização "presumindo" que a vítima traria uma
contribuição financeira aos pais até que completasse 25 anos de idade.
Trata-se de mera suposição, situada na seara das probabilidades, não da
certeza, sendo que, como já dito, na doutrina tradicional, a certeza do dano
é um elemento indispensável para configuração do dano, material ou moral.
Portanto, a indenização citada na doutrina acima transcrita não se
adere, definitivamente, aos conceitos de dano moral, lucro cessante ou dano
emergente, mas sim se amolda perfeitamente aos elementos da teoria da perda
da chance, ainda que não utilizada expressamente essa nomenclatura.
|
NATUREZA JURÍDICA E PREVISÃO EM NOSSO
ORDENAMENTO
O instituto da perda da chance é relativamente novo no meio jurídico, não havendo ainda posicionamento firme da doutrina ou jurisprudência acerca da sua exata natureza jurídica. Há uma corrente que defende se tratar de lucro cessante; outra, de dano emergente; uma terceira prefere se referir à perda da chance como sendo um terceiro gênero da espécie dano material; e outra a qualifica como dano moral.
O instituto da perda da chance é relativamente novo no meio jurídico, não havendo ainda posicionamento firme da doutrina ou jurisprudência acerca da sua exata natureza jurídica. Há uma corrente que defende se tratar de lucro cessante; outra, de dano emergente; uma terceira prefere se referir à perda da chance como sendo um terceiro gênero da espécie dano material; e outra a qualifica como dano moral.
Como já dito, o dano material subdivide-se em duas
categorias: (i) o dano emergente, que representa a efetiva e atual subtração no
patrimônio da vítima e (ii) o lucro cessante, que consiste na perda de um lucro
esperado, um prejuízo futuro, mas certo. Vê-se que a perda da chance se
localiza numa zona de transição entre esses dois conceitos. Contudo, em nenhuma
dessas modalidades ela poderia se enquadrar, justamente porque o dano material
clássico, segundo a doutrina tradicional, deve ser real, efetivo e atual, não
sendo admitidos mera hipótese ou dano futuro e ainda deve ter sua existência e
quantificação apuradas e comprovadas de forma inequívoca. Não é, absolutamente,
o caso da perda da chance.
Defendendo se tratar a perda da chance de um dano
moral diante da impossibilidade de seu enquadramento como espécie do gênero
dano material, cita-se a decisão proferida pelo extinto Segundo Tribunal de
Alçada Civil de São Paulo, que defendeu: "Esta indenização, no entanto, é
pelo dano moral, e não material".
No tocante à previsão normativa no ordenamento
pátrio, muito embora não haja disposição legal que trate desse instituto, há
quem defenda o fato de que a perda da chance está inserida, ainda que sem essa
nomenclatura, no contexto do Artigo 402 do Código Civil, o qual dispõe que:
"... as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele
efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar". Privar a
vítima da possibilidade de obter uma vantagem obviamente equivale a impedi-la
de lucrar. O termo "lucro" mencionado no dispositivo legal deve ser
interpretado, segundo esse entendimento, de forma ampla, para abranger o
conceito genérico de "benefício", seja ele material ou não.
A PERDA DA CHANCE
Comumente, a teoria da perda de chance é invocada em situações em que a vítima, já a caminho de obter uma vantagem, é impedida de obtê-la, em razão de ato omissivo ou comissivo de outrem, como nos exemplos já citados.
Comumente, a teoria da perda de chance é invocada em situações em que a vítima, já a caminho de obter uma vantagem, é impedida de obtê-la, em razão de ato omissivo ou comissivo de outrem, como nos exemplos já citados.
Nessas situações, o ato do agente tem relação
direta com o dano experimentado. Não há certeza sobre a efetividade do prejuízo
- pois a aprovação no concurso é mera probabilidade - mas há, no entanto,
certeza de que o ato do agente impediu que a probabilidade se tornasse algo
concreto. No entanto, na seara médica, a questão se torna bem mais complexa,
principalmente nos casos em que a vítima, já portadora de doença grave antes de
cometido o erro médico, vem a óbito. Não há, nessas situações, uma correlação
direta entre o procedimento equivocado do médico e o óbito. Observe-se o
exemplo de uma paciente acometida do mal de câncer, que foi vítima de erro
médico durante o tratamento e veio a falecer. O dano - no caso, o óbito - está
diretamente relacionado à doença que já existia antes, guardando nexo causal
incerto com o erro médico.
Esse tipo de situação já foi, inclusive, objeto de
julgamento pelos tribunais, os quais decidiram, na maioria das vezes, pela
negação da aplicação do instituto, justamente pela ausência do nexo causal
direto. No entanto, no recente julgamento do Recurso Especial no 1.254.141-PR,
em ação proposta pelo viúvo da vítima e seus filhos, em face do médico que
tratou da paciente, a ministra relatora do caso, Nancy Andrighi, abordou a
questão numa forma bastante apropriada. Houve o reconhecimento da
especificidade do caso e da sua distinção estrutural com relação aos exemplos
clássicos de perda da chance, nos termos enumerados no quadro da página ao
lado.
A aplicabilidade do instituto da perda da chance
nos casos de erro médico se torna, assim, discutível, pois, na perda da chance
tradicional: "Há sempre certeza quanto à autoria do fato que frustrou a
oportunidade, e incerteza quanto à existência ou extensão dos danos decorrentes
desse fato" (voto da Ministra Nancy Andrighi, acórdão citado), o que não
se observa nos casos de erro médico, em que a extensão do dano está definida,
mas não se tem certeza sobre o nexo causal.
CASO A CASO
"DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. REDUÇÃO PROPORCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO."
1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade civil
pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frustra
à vítima uma oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao
causador do dano e incerteza quanto à respectiva extensão, o que torna
aplicável o critério de ponderação característico da referida teoria para a
fixação do montante da indenização a ser fixada. Precedentes.
2. Nas hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não está
no dano experimentado, notadamente nas situações em que a vítima vem a óbito.
A incerteza está na participação do médico nesse resultado, à medida que, em
princípio, o dano é causado por força da doença, e não pela falha de
tratamento. (...).
(STJ, 3ª Turma, REsp 2011/0078939-4, Min. Nancy Andrighi, j. em
4/12/2012)
|
Não obstante a incerteza quanto ao nexo de
causalidade, o Superior Tribunal de Justiça, no mesmo julgado anteriormente
citado, entendeu pela condenação do médico, aplicando, sim, a teoria da perda
da chance, argumentando que: "Conquanto seja viva a controvérsia,
sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da
responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é
forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a
chance, em si, pode ser considerada um bem autônomo, cuja violação pode dar
lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende
no direito americano." (Ementa do julgado).
O julgado prossegue, justificando que: "N há
necessidade de se apurar se o bem final [a vida, na hipótese deste processo]
foi tolhido da vítima. O fato é que a chance de viver lhe foi subtraída, e isso
basta. O desafio, portanto, torna-se apenas quantificar esse dano, ou seja,
apurar qual o valor econômico da chance perdida".
Esse entendimento, provavelmente, norteará decisões
judiciais futuras sobre o tema.
VALORAÇÃO DA INDENIZAÇÃO
A aplicação do instituto da perda da chance, muitas vezes, encontra resistência por parte da doutrina e jurisprudência, justamente em razão da dificuldade da fixação do quantum indenizável.
A aplicação do instituto da perda da chance, muitas vezes, encontra resistência por parte da doutrina e jurisprudência, justamente em razão da dificuldade da fixação do quantum indenizável.
Via de regra, todo pedido indenizatório deve
guardar relação direta com o dano experimentado. No entanto, não se pode perder
de vista que a perda da chance não guarda relação com o resultado final que era
esperado pela vítima, a qual teve frustrada a oportunidade de ganho ou de
evitar um prejuízo, meramente. Não há relação direta entre essa oportunidade
perdida e o resultado final objetivado, o qual, como já dito, é objeto incerto
e indeterminado e, portanto, não serve como parâmetro para a fixação do
montante indenizável.
Voltando ao exemplo do candidato que foi impedido
de prestar concurso, o valor da indenização pela perda da chance não pode
equivaler ao proveito econômico que obteria, caso fosse aprovado no certame.
Isso seria indenizá-lo por lucros cessantes, e não pela mera perda da chance.
Assim, uma premissa pode ser fixada: o valor da indenização pela perda da
chance será sempre inferior ao proveito econômico que o resultado final
objetivado proporcionaria. Nesse sentido, cita-se entendimento de Sérgio Savi ,
para o qual: "Para valoração da chance perdida, deve-se partir da premissa
inicial de que a chance no momento de sua perda tem um certo valor que, mesmo
sendo de difícil determinação é incontestável. É, portanto, o valor econômico
desta chance que deve ser indenizado, independentemente do resultado final que
a vítima poderia ter conseguido se o evento não a tivesse privado daquela
possibilidade. O fato de a situação ser idônea a produzir apenas provavelmente,
e não com absoluta certeza, o lucro a essa ligado, influi não sobre a
existência, mas sim, sobre a valoração do dano. Assim, a chance de lucro terá
sempre um valor menor que a vitória futura, o que refletirá no montante da
indenização."
CONSIDERAÇÕES
Assim, a fixação do valor indenizatório deve ser pautada pelo critério de probabilidade que aquela chance perdida tinha de tornar real o resultado pretendido pela vítima.
Se a chance fosse de 60%, em 60% do proveito econômico do resultado
objetivo deve ser fixada a indenização pela perda da chance. Nos casos em que
o benefício objetivado (e frustrado) não puder ser traduzido em valores
pecuniários, o valor indenizatório será arbitrado pelo magistrado, observando
também o critério da proporcionalidade”.
|
*GISLENE BARBOSA DA COSTA é pós-graduada em
Administração Legal pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e advogada do Escritório
L.O. Baptista Schmidt Valois Miranda Ferreira e Agel Advogados”.
Comentários
Postar um comentário
Qualquer sugestão ou solicitação a respeito dos temas propostos, favor enviá-los. Grata!