“DIREITO COMPARADO
Reforma dos Códigos deve ser democrática e pluralista
Por Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União,
pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da
Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris,
França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
O movimento da
codificação foi característico do século XIX. Nascida como símbolo do
“despotismo esclarecido”, ainda no século XVIII, como se observa do Código
Civil da Áustria, a codificação foi capturada pelo liberalismo no alvorecer do
Oitocentos. Napoleão Bonaparte fez-se arauto desse movimento, que passou a
confundir civilização com codificação. Promulgar códigos, ou decretar a
vigência do Code Civil de 1804 nos países
conquistados, era um ato revolucionário de grande significado político.
Após a queda do
imperador dos franceses e a reação das monarquias vitoriosas no Congresso de
Viena, codificar tornou-se elemento integrante das políticas de Estado de
nações que se pretendiam “liberais” — em oposição ao absolutismo e ao direito
divino dos reis — e também um ato fundacional de países recém-unificados ou
cuja independência acabara de ser assegurada, ao exemplo da Itália e dos jovens
Estados balcânicos, liberados do domínio otomano. Possuir um código, mais
especificamente um código civil, era uma espécie de senha para ser admitido no
rol das nações civilizadas e cultas.
A Alemanha, graças
à influência teórica de Friedrich Karl Freiherr von Savigny, resistiu até 1896,
quando foi promulgado seu famoso código civil (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), em vigor a
partir de 1900. Outra causa desse retardo histórico estava na ciosa manutenção
das prerrogativas das monarquias que compunham o Reich. Lembre-se que, a despeito da unificação presidida por Otto von
Bismarck, no ano de 1871, os antigos reis, príncipes e duques dos territórios
alemães mantiveram seus tronos e gozaram, até o final da Primeira Guerra
Mundial, de “status” político e de autonomia legislativa consideráveis. O
imperador (Kaiser) não o era “da
Alemanha”, mas “dos alemães”. Uma sutileza linguística que demarcava sua
condição de “primus inter pares” em face de seus “colegas” dentro do Reich. Nesse sentido, a
Saxônia, a Baviera e a Prússia, ainda no século XVIII, possuíam codificações
(ou consolidações). A preservação desse espaço normativo parece ter influído na
tardia codificação nacional alemã.
O século XX
assistiu ao nascimento de algumas codificações importantes, como foi o caso da
italiana (1942) e da portuguesa (1966), que substituíram antigos diplomas do
século XIX. No geral, contudo, muito se falou de um movimento de
descodificação, a ponto de Natalino Írti haver celebrizado a expressão “a idade
da descodificação”, em artigo homônimo.[1] A irrelevância dos códigos civis, em
razão do aumento crescente de legislações emergenciais ou conjunturais, deu
espaço a que Ricardo Luís Lorenzetti, fazendo uso de uma bela metáfora,
comparasse os códigos civis aos antigos centros das grandes cidades:
esvaziados, envelhecidos e substituídos pelas alternativas de lazer, comércio e
serviços públicos encontráveis nos bairros, esses últimos correspondendo ao que
também se convencionou chamar de “microssistemas”, especialmente no final do
século XX.[2]
Áreas inteiras como
a legislação trabalhista (a primeira a ser subtraída dos códigos civis, que
regulavam os vínculos entre patrões e empregados nos “contratos de locação de
mão de obra”), as leis do inquilinato (com forte caráter protetivo ao
locatório), os estatutos da criança e do idoso, os códigos de proteção ao
consumidor, as leis autônomas de direitos autorais e de propriedade industrial
são exemplos clássicos da perda de espaço normativo dos códigos civis.
Independentemente
disso, no final do século XX e início da atual centúria, aprovaram-se novos
códigos civis, como são exemplos os da Holanda, do Quebec, do Equador e do
Brasil. Na Alemanha, em 2002, o BGB foi profundamente alterado pela Lei de
Modernização do Direito das Obrigações. Na França, o anteprojeto de reforma do
Código Civil de 1804, sob a regência do hoje falecido professor Pierre Catala,
é um exemplo de uma onda de “recodificação” ou, de modo menos ambicioso, de
“atualização” dos códigos civis, algo que também se almeja em Portugal e
Espanha. No caso europeu, há forte influência das diretivas, que têm causado
grande impacto nos modelos normativos locais. A tal ponto que hoje se tem
defendido a tese de um movimento de “europeização” do Direito Internacional
Privado na Europa, como afirma (de modo pioneiro e brilhante) Augusto Jaeger
Junior.[3]
O movimento de
codificação é surpreendente. Mesmo quando foi tido como historicamente
ultrapassado, ele parece ressurgir de tempos em tempos, como que a provar a
utilidade desse modelo de racionalização normativa, concebido pelos iluministas
e posto em prática no século XIX por uma heterogênea comunidade de estudiosos,
compreensiva de pandectistas, exegetas e historicistas, que pouco ou nada
tinham em comum, seja em termos filosóficos, seja em questões ideológicas.[4]
Mais do que uma
narrativa dos sucessos e insucessos do movimento da codificação, esta coluna
fere uma questão extremamente atual: a onda codificadora (ou de reforma de
códigos) em curso no Brasil.
Em tramitação no
Congresso Nacional, encontram-se os projetos de Código Penal, Código Comercial,
Código de Processo Penal, Código de Processo Civil e de reforma do Código de
Defesa do Consumidor. As críticas e as eloquentes defesas apresentadas a essas
iniciativas têm seu espaço apropriado em outro lugar. Evidentemente, há
paixões, interesses acadêmicos (ou mesmo de prestígio intelectual), boa vontade
e desejo de aprimorar a legislação em cada um desses grupos de reformistas e
antirreformistas.
A questão central
está em outro ponto: o tempo e as condições históricas para a tramitação desses
projetos. O Código Civil de 1916, cujo projeto é de 1899, levou quase vinte
anos para ser aprovado. O Projeto Reale, do qual se originou a codificação
civil de 2002, é de 1973. Muito bem. É um longo período de discussões. Esses
textos legais, no entanto, são excepcionais no marco de nossa história
legislativa. O Código Penal (1940), a Consolidação das Leis do Trabalho (1943)
e o Código de Processo Penal (1941), assim como o Código de Processo Civil
(1973), foram rapidamente aprovados por uma circunstância histórica peculiar e
comum a todos eles: eram tempos ditatoriais. Tanto os regimes do Estado Novo,
quanto o de 1964, possuíram uma ampla agenda codificadora. Em alguns casos,
houve insucessos, como o Código Penal de 1969 (exemplo singular de lei que foi
publicada, mas que nunca entrou em vigor) ou mesmo o Código Civil atual, que só
seria aprovado trinta anos depois de sua apresentação ao Congresso Nacional. No
geral, porém, essa agenda foi exitosa. A razão é simples: a inexistência de
instituições democráticas. É evidente que não se podem tirar os grandes méritos
técnicos desses projetos das décadas de 1940 e 1970. Posto que inegáveis, esses
merecimentos não tiveram tanto peso na aprovação dos projetos quanto a falta de
um parlamento livre, do pluralismo de ideias e da liberdade de crítica.
Não é um desvalor a
demora na tramitação dos projetos e, mais que isso, o levantamento de críticas
a seu conteúdo ou ainda à conveniência de sua tramitação no Congresso Nacional.
A Lei de Modernização do Direito das Obrigações, que reformou profundamente o
BGB em 2002, é o resultado de quase vinte anos de debates (acérrimos, diga-se
de passagem) na academia alemã. Sua aprovação deu-se apesar da crítica dos
principais professores de Direito Civil da Alemanha, sob a liderança de
Reinhard Zimmermann, um dos maiores privatistas europeus contemporâneos, que
fizeram um abaixo-assinado contra o projeto, então defendido pelo muito
conhecido professor Claus-Wilhelm Canaris.
O projeto de
reforma do Código Civil francês não tem logrado êxito. Até o presente momento,
salvo mudanças pontuais em matéria de prescrição (aprovadas pela Lei n°
2008-561, de 17.6.2008), o projeto Catala parece que não irá adiante. E veja-se
que integram a comissão encarregada nada menos que os mais importantes
catedráticos de Direito Civil da França, como Alain Bénabent, Jacques Ghestin,
Yves Lequette, Philippe Malinvaud e Geneviève Viney.
Na República
Argentina, o projeto de novo Código Civil, embora extremamente censurado por
respeitáveis catedráticos das universidades platinas, tem alguma hipótese de
ser aprovado. Nesse caso, a preeminência política da presidente Cristina
Fernández de Kirchner é um dos fatores mais relevantes para que o projeto ganhe
força no Parlamento.
Na análise do atual
quadro legislativo brasileiro, dois pontos devem ser considerados, além da
defesa de que tramitações demoradas e amplos debates acadêmicos não podem ser
considerados, “de per si”, como algo negativo. São os seguintes:
(1) Os códigos
precisam assentar-se em princípios e em um sistema. Mudar um código é, em
alguma medida, reconhecer a quebra de um paradigma teórico (ou também
filosófico ou político). A alteração na Parte Geral do Código Penal, ocorrida
em 1984, é um excelente exemplo disso. E, note-se que ela se deu ainda sob o
regime da ditadura de 1964. A passagem do causalismo para o finalismo foi uma
opção do legislador de 1984, mas que guardou profunda conexão com um debate
acadêmico de alto nível. Reconhecia-se, à época, o esgotamento do modelo
causalista e a reforma encontrou coerência sistêmica e principiológica em seus
termos.
As sucessivas
reformas do Código de Processo Civil de 1973 desfiguraram o projeto de Alfredo
Buzaid, que deita suas raízes na Escola Processual de São Paulo, fundada pelo
jurista italiano Enrico Tullio Liebman. A codificação de 1973, em sua
formulação original, era sistêmica e principiologicamente coerente. Sua
eventual superação histórica pode ter ocorrido. Se isso é verdade, é de se
indagar qual a escola ou o movimento que inspira e dá forma a uma nova
codificação?
Essa pergunta há de
ser formulada a toda e qualquer proposição de mudança de um código. Os
caracteres relativos a um sistema e a um corpo coerente de princípios, ligados
a uma escola jurídica, diferenciam e especializam os códigos em face de leis,
estatutos ou consolidações. Esses caracteres tornam o código um tipo
diferenciado de conjunto normativo, que exige dos congressistas maior cuidado
em sua apreciação.
Em nosso tempo,
prevalece o discurso da simplicidade e da agilidade. Não há espaço para
berloques, excentricidades ou erudições artificiais. Isso está bem. Mas, a
exigência apresentada neste item 1 é algo bem diverso desse “parnasianismo
jurídico”. Antes de qualquer coisa, é necessário exigir que o código (civil,
penal, comercial ou processual) seja continente de princípios e que tenha
vocação sistemática. O exemplo das reformas do CPC é eloquente. Desde 1994, alteraram-se
mais de 100 dispositivos desse código, sem que haja sido comprovada melhoria
efetiva no sistema processual brasileiro. As marchas e contramarchas no agravo
de instrumento e na apelação são exemplos da falência dessa iniciativa. A se
utilizar um argumento que possui grande prestígio em nosso tempo, existe um
custo econômico nessas mudanças assistemáticas.
(2) O segundo ponto
que merece atenção está na importância dos códigos como símbolos do
desenvolvimento civilizatório de uma nação. Os códigos são produtos culturais
e, nessa condição, devem também merecer o respeito do legislador. Os franceses
e os alemães não substituíram seus códigos civis de 1804 e 1900,
respectivamente. Charles de Gaulle, que foi o todo-poderoso presidente da
República Francesa em duas ocasiões (1944-1946 e 1959-1969), tentou elaborar um
novo Código Civil, mas fracassou ante a veneração que seus conterrâneos sempre
demonstraram para com o velho Code Napoleon. O respeito a essa
tradição jurídico-cultural é de ser levado também em consideração. Muita vez,
se ganha mais em se adaptar o código antigo aos tempos atuais do que em
proceder a sua revogação pura e simples. Alguns projetos bem que poderiam se
submeter a um teste muito simples: quantos de seus dispositivos são meras reproduções
do código em vigor? Se o percentual chegar a mais de 60%, é o caso de se
indagar sobre a real necessidade de se “criar” uma codificação que apenas
parafraseia ou reproduz textos legais antigos.
Reitere-se: não se
discute aqui este ou aquele projeto em tramitação no Congresso Nacional.
Levanta-se o problema da necessidade de codificações, recodificações e de
reformas legislativas, segundo as circunstâncias históricas, e quais os
parâmetros reitores desse processo de câmbio normativo. Sem um sistema, um
conjunto de princípios e uma “virada” teórica, como a ocorrida, por exemplo, na
reforma do Código Penal de 1984, parece ser injustificável impor à nação o
custo social, jurídico e econômico de uma mudança tão drástica em seu
ordenamento jurídico. E, se presentes esses elementos, o debate democrático e a
abertura para a crítica (profunda e ampla) dos meios acadêmicos, corporativos e
sociais são indispensáveis para que se legitimem tais proposições legislativas.
Essas condições
teóricas, políticas e sociais não ocorrem facilmente. E é por isso que o
trabalho de codificação ou de reforma dos códigos há de ser lento e acompanhado
de perto pela comunidade jurídica. E não é possível se limitar ao controle de
projetos apresentados ao Congresso. É perfeitamente possível que, mesmo em
tramitação, as iniciativas se revelem inadequadas, tecnicamente falhas ou
destituídas dos caracteres apontados no item 1 desta coluna. Nessa hipótese,
não é vexatório simplesmente abandonar o projeto, como já se fez (em estágio
bem mais avançado) com o Código Penal de 1969 ou com os diversos projetos de
Código Civil dos séculos XIX e XX. Não será esse um privilégio nacional. Em
1962, o Governo alemão ofereceu ao Parlamento um projeto de reforma do Código
Penal (o famoso Entwurf 1962) que foi
duramente criticado, apesar de suas enormes qualidades, pela comunidade
jurídica. Em reação, um grupo de juristas, de entre eles Claus Roxin, elaborou
o igualmente famoso “Projeto Alternativo” (Alternativ Entwurf 1966), até hoje uma referência em estudos
dogmáticos de Direito Criminal.[5]
A universidade
brasileira tem sido alijada dos processos de reforma ou de elaboração dos
códigos. A causa disso está em sua própria condição de eterna “torre de
marfim”, que se revela, n’alguns casos, pela postura do “não li e não gostei”.
Mas, é também respeitável sua recusa em legitimar projetos elaborados sem
qualquer preocupação com o debate acadêmico de alto nível. Para não se falar
nas discussões relâmpago, realizadas “pro forma” e sem qualquer hipótese real
de modificação ou, o que também deveria ser possível, de rejeição da proposta.
Nesse desalentador cenário, caberia à Presidência da República e ao Ministério
da Justiça assumir o necessário protagonismo na coordenação de tantos projetos.
A força do Poder Executivo no Brasil, que é excessiva, pode muito bem se
revelar de grande utilidade para se permitir que a elaboração (ou reforma) dos
códigos seja realmente um processo democrático e digno da importância desses
diplomas. Desde a redemocratização, o Brasil tem sido governado por pessoas que
se dedicaram, com maior ou menor intensidade, à construção de instituições
perenes, estáveis e capazes de assegurar os valores civilizatórios. Zelar pela
legitimidade e pela qualidade do processo codificador é também uma forma de se
defender tais conquistas. Os alemães e os franceses, nesse aspecto, fornecem
belos exemplos de como se lidar com o tema da reforma dos códigos”.
[1] Esse texto
encontra-se publicado no Brasil: IRTI, Natalino. L’eta della decodificazione. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, v. 3, n. 10, p.
15-33, out./dez. 1979.
[2] Sobre esse
pensamento, guardamos muitas ressalvas. No entanto, é valiosa a transcrição do
pensamento do autor argentino: “[A] idéia de ordenar a sociedade ficou sem
efeito a partir da perda do prestígio das visões totalizadoras; o Direito Civil
se apresenta antes como estrutura defensiva do cidadão e de coletividades do
que como ‘ordem social'. (...) A explosão do Código produziu um fracionamento
da ordem jurídica, semelhante ao sistema planetário. Criaram-se microssistemas
jurídicos que, da mesma forma como os planetas, giram com autonomia própria,
sua vida é independente; o Código é como o sol, ilumina-os, colabora com suas
vidas, mas já não pode incidir diretamente sobre eles. Pode-se também referir a
famosa imagem empregada por Wittgenstein aplicada ao Direito, segundo a qual, o
Código é o centro antigo da cidade, a que se acrescentaram novos subúrbios, com
seus próprios centros e características de bairro. Poucos são os que se visitam
uns aos outros; vai-se ao centro de quando em quando para contemplar as
relíquias históricas” (LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. Tradução de Vera
Maria Jacob de Fradera. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1998. p. 45).
[3] Recomendo a leitura
de: JAEGER JUNIOR, Augusto. Europeização do direito internacional
privado: caráter universal da lei aplicável e outros contrastes com o
ordenamento jurídico brasileiro. Curitiba : Juruá, 2012.
[4] Em português, há
dois excelentes estudos sobre o problema da codificação: RÉGIS, Mário Luiz
Delgado. Codificação, descodificação,
recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011 e ANDRADE,
Fabio Siebeneichler de. Da Codificação : crônica de um
conceito. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1997.
[5] Para um exame da
evolução histórica das codificações penais na Alemanha: GIACOMOLLI, Nereu José;
SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Panorama do princípio da legalidade no direito
penal alemão vigente. Revista Direito GV, v. 6, n. 2, p.
565-582, jul./dez. 2010.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União,
pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da
Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris,
França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha”).
http://www.conjur.com.br/2013-jan-02/direito-comparado-reforma-codigos-democratica-pluralista
. Acesso: 4/6/2013
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