“Direito Islâmico
O sistema jurídico de tipo religioso é tão atual quanto desconhecido ao Ocidente, segundo o advogado especialista, Salem Nasser
Advogado com diversas graduações internacionais, Salem Nasser atualmente é professor da Escola de Direito Islâmico e Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Comissão sobre e Internacional da International Law Association. Mesmo com outras aspirações no início de sua carreia na área jurídica, sua origem genética falou mais alto: é um dos poucos especialistas na matéria no Brasil. E em entrevista a Visão Jurídica ele nos explica em detalhes o Direito Islâmico.
Visão Jurídica - O que o levou a essa especialidade do Direito? Conte-nos um pouco sobre sua trajetória acadêmica e experiência profissional nessa área. 
Salem Nasser
 - Como costuma acontecer, o meu percurso no Direito acabou sendo muito diferente daquilo que eu tinha imaginado ao entrar na faculdade. Até os dois últimos anos de estudos, eu ainda me imaginava um penalista atuando no tribunal do júri. Foi apenas ao decidir sair do Brasil, logo após a formatura, que me voltei para o direito internacional, área sobre a qual sabia muito pouco, em verdade. Num processo de tentativa e erro, em Paris, comecei estudando Direito Internacional Privado e firmei os pés definitivamente em Direito Internacional Público. O estudo deste sistema jurídico representa geralmente um desafio às nossas concepções mais enraizadas sobre a natureza e as características do Direito. O mesmo se dá quando se pensa um sistema jurídico de tipo religioso como a Sharia, ou Direito Islâmico. Essa disposição para repensar o me serviu quando, entre outras coisas, por causa da minha origem, fui convidado a escrever sobre o tema. A isto se uniu a constatação de que vivemos em tempos em que o desconhecimento sobre os mundos árabe e muçulmano, sempre muito conectados, só se equipara em dimensão à necessidade de compreensão desses dois mundos.
VJ - O Direito Islâmico é tão atual quanto ainda desconhecido em sua essência e detalhes. Está atrelado a princípios religiosos e políticos. Conte-nos sobre a origem histórica e sua adoção nos países islâmicos.
SN - 
O Islâmico pode ser entendido, de modo simplificado, como o conjunto de normas que pretende regular os comportamentos e as relações sociais. Na concepção mais abrangente, inclui a regulação do culto, da relação do fiel com Deus; as normas jurídicas que organizam as relações sociais, quer sejam familiares, comerciais, penais, etc.; as regras do que nós chamaríamos de ética. A a história começa com o advento do Islã. Quando o profeta Mohamad [ou Maomé] começa a receber a revelação, esta inclui, num primeiro momento as obrigações do culto e, gradualmente, também as interações em sociedade. Um aspecto que talvez torne o Direito Islâmico mais relevante e mais persistente do que outros sistemas religiosos ou tradicionais é o fato de que muito rapidamente se constitui um Estado muçulmano, ou seja, muito rapidamente, já em vida do profeta, a religião se transforma em poder secular. Nesse contexto, o poder secular precisava encontrar a ligação entre as normas jurídicas e sua origem divina, assim como precisava pensar a relação entre o Direito Islâmico e as normas preexistentes nas sociedades islamizadas. Hoje, Direito Islâmico resiste de modos diversos e desempenha papéis variáveis nos vários países árabes ou muçulmanos, na medida em que esses países decidem soberanamente como querem que se dê a relação entre o Direito produzido pelo Estado e aquele religioso a que sentem que devem prestar alguma homenagem ou reservar algum lugar.
VJ - O Direito Islâmico é totalmente baseado no Alcorão? É possível sintetizar seus princípios fundamentais em poucas linhas? Se sim, quais são?
SN -
 O Direito Islâmico, como qualquer sistema jurídico, reconhece e determina suas próprias fontes. As suas duas fontes essenciais e indiscutíveis são o Alcorão e o conjunto das ações e dizeres do profeta. São, portanto, fontes divinas por excelência, já que o Alcorão é a Palavra revelada e os atos do profeta, enquanto profeta, eram divinamente inspirados. Com base nessas duas fontes principais, que não podiam e não podem, naturalmente, conter soluções específicas para todas as situações que foram surgindo nos anos subsequentes à morte do profeta, e continuaram surgindo ao longo da história, desenvolveram-se algumas escolas jurídicas que foram construindo os fundamentos do Direito e a sua teoria geral e foram sedimentando normas e regras jurídicas substantivas.
VJ - Conte-nos um pouco sobre a Sharia e as Leis Culturais regidas pelo Direito Islâmico.
SN -
 Em verdade, Sharia e Islâmico podem ser expressões equivalentes. Quando são diferenciadas, costuma-se dizer que a Sharia, por significar "o reto caminho", seria mais abrangente do que Direito Islâmico, pensado agora como regras jurídicas propriamente ditas que regulam os comportamentos. Aqui no Ocidente, se costuma olhar para a Sharia como sendo um conjunto quase bizarro de regras e práticas. Olha-se mais especificamente para a condição da mulher, para o Direito de Família, para o Penal. Quando se olha mais de perto, percebe-se que, de modo talvez surpreendente, o sistema funciona de modo racional e lógico, como qualquer sistema jurídico, e que também aqui há controvérsias sobre os fundamentos, sobre o conteúdo das normas, sobre a sua aplicação etc.
VJ - Existem setores  empresariais brasileiros que seguem, atualmente, regras do Direito  Islâmico? Em caso positivo, quais?
S N
 - A única notícia de que tenho conhecimento é a de que no setor financeiro se cogita a possibilidade de oferecer produtos de islamic banking, mas me parece que isso não está tão avançado. Para além disso, não se pode esquecer que o Direito Islâmico, dirigindo-se como se dirige, diretamente aos fiéis, não seria surpreendente que muçulmanos no Brasil regulassem seu fazer profissional seguindo algumas de suas regras. Finalmente, sempre há a possibilidade de que empresas ou indivíduos brasileiros estejam ligados em relações contratuais às quais se aplicam normas de Direito Islâmico, quer diretamente, quer porque se aplica o Direito de um país em que operam as regras da Sharia.
VJ - Quais são as Leis do Direito Comercial Islâmico mais aplicadas nessas relações, por exemplo?
SN -
 No que respeita ao Direito Comercial, é surpreendente como costuma haver coincidência sobre os grandes princípios como pacta sunt servanda, boa-fé etc. Isso também se dá no Direito Islâmico. Apenas é preciso atentar para o fato de que a interpretação, o escopo, a aplicação dessas normas pode variar de sistema jurídico para sistema. Talvez o exemplo mais relevante de uma especificidade do Direito Islâmico é a restrição aos contratos de risco e os modos inventivos para, por exemplo, tornar factível uma indústria de seguros.
VJ - Quanto às questões comerciais da Líbia com o Brasil, em que o Conselho Nacional de Transição da Líbia pode fazer alterações? Quais podem ser as consequências para os países que se relacionam comercialmente com a Líbia nessa fase?
SN - 
No caso líbio, parece-me que as referências feitas pelo Conselho Nacional de Transição ao papel preponderante que teria a Sharia no Direito Líbio a partir de agora sejam mais de caráter político, sinalizando para a população e para os grupos islâmicos que foram muito importantes na luta contra Kadafi que a identidade muçulmana do país seria preservada. O maior risco para as transações comerciais entre Brasil e Líbia e, mais importante, para os investimentos brasileiros na Líbia, decorre das condicionantes políticas: com novo governo, criado sob a influência de algumas potências ocidentais, os ganhos econômicos podem ser redistribuídos e recompensarem os interesses desses países. Para além disso, se e quando o Direito Líbio for gradualmente incorporando ou reavivando normas inspiradas na Sharia, caberá tratar disso como aconteceria com qualquer outro sistema jurídico que decidisse mudar suas normas: primeiro se pede que sejam respeitados os contratos anteriores e em seguida se cuida de negociar bem os novos contratos.
VJ - Quanto às Leis Morais e Sociais do Direito Islâmico, o senhor acredita que o Ocidente tem a aprender com preceitos da cultura islâmica, bem como o Direito Islâmico poderia atualizar-se em detrimento das mudanças velozes das últimas décadas no mundo?
SN -
 Penso que diferentes culturas, que incluem os diferentes sistemas jurídicos, têm sempre muito a aprender umas com as outras. No mínimo, deve haver um aprendizado sobre a variedade das sociedades humanas e sobre a importância de conhecer e reconhecer o "outro". Há um trabalho, e é necessário que seja constante, de questionamento dos próprios valores e dos instrumentos que são pensados para avançar esses valores. Olhando para o outro, ainda que não queiramos incorporar seus valores ou importar seus instrumentos, pode ajudar nesse exercício. Para o mundo muçulmano, há um desafio de monta que consiste em manter a conexão vital com os valores da religião e da história do Islã e, ao mesmo tempo, alimentar a abertura para repensar sempre, inclusive o Direito, de modo inventivo e ágil.
VJ - Existem diferenças  dentro do Direito Islâmico para a  Síria, a Líbia, a Tunísia e o  Egito? Se sim, quais são?
SN -
 Entre esses países, as diferenças seriam pequenas, uma questão de grau. Todos eles preservam o maior papel ao Direito Islâmico para regular o estatuto pessoal e o Direito de Família. O país que mais havia avançado no exercício de excluir o Direito Islâmico das questões familiares era a Tunísia; resta saber se isso será em alguma medida revisto.
VJ - Como estão disseminados os ensinamentos do Direito Islâmico no Brasil?
SN -
 Parece-me que não estão disseminados, mas há um interesse crescente.
VJ - Para viabilizar as suas relações comerciais com o Ocidente, os países que seguem o Direito Islâmico fazem algum tipo de concessão? E o inverso acontece? Países do Ocidente fazem concessões para manter relações comerciais com os países que seguem o Direito Islâmico? Em caso positivo, o senhor poderia dar exemplos?
SN -
 Em verdade, é difícil, ao primeiro olhar, imaginar concessões feitas de países a países nas relações comerciais, já que essas relações entre países estariam sempre reguladas pelo Direito Internacional Público. No entanto, é possível imaginar com mais facilidade, por exemplo, um país que aplica a Sharia, mas que afasta a sua aplicação a contratos com investidores estrangeiros, ou então, a adequação de um produtor brasileiro aos padrões exigidos por um país muçulmano.
VJ - Quais são suas recomendações às empresas e, consequentemente, aos seus departamentos jurídicos e escritórios prestadores de serviços que querem manter relações de negócios com os países do  Oriente Médio?
SN
 - A recomendação central é esta: é preciso disposição para entender as pessoas e as coisas diferentes e disposição para encontrar com elas terreno comum. Para além disso, é necessário ser muito preciso na compreensão dos aspectos jurídicos da relação, especialmente se ela puder levar à aplicação do Direito Islâmico”.

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