“Lições Preliminares de Direito – Reale, Miguel
LIÇÕES PRELIMINARES DE DIREITO – Reale, Miguel
CAPÍTULO I
OBJETO E FINALIDADE DA INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
SUMÁRIO: Noção elementar de Direito. Multiplicidade e unidade do
Direito. Complementaridade do Direito. Linguagem do Direito. O Direito
no mundo da cultura. O Método no Direito. Natureza da Introdução ao
Estudo do Direito.
NOÇÃO ELEMENTAR DE DIREITO
Como poderíamos começar a discorrer sobre o Direito sem admitirmos,
como pressuposto de nosso diálogo, uma noção elementar e provisória da
realidade de que vamos falar?
Um grande pensador contemporâneo, Martin Heidegger, afirma com razão
que toda pergunta já envolve, de certa forma, uma intuição do perguntado. Não se
pode, com efeito, estudar um assunto sem se ter dele uma noção preliminar,
assim como o cientista, para realizar uma pesquisa, avança uma hipótese,
conjetura uma solução provável, sujeitando-a a posterior verificação.
No caso das ciências humanas, talvez o caminho mais aconselhável seja
aceitar, a título provisório, ou para princípio de conversa, uma noção corrente
consagrada pelo uso. Ora, aos olhos do homem comum o Direito é lei e ordem,
isto é, um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças
ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros. Assim sendo,
quem age de conformidade com essas regras comporta-se direito; quem não o
faz, age torto.
Direção, ligação e obrigatoriedade de um comportamento, para que possa
ser considerado lícito, parece ser a raiz intuitiva do conceito de Direito. A palavra
lei, segundo a sua etimologia mais provável, refere-se a ligação, liame, laço,
relação, o que se completa com o sentido nuclear de jus, que invoca a idéia de
jungir, unir, ordenar, coordenar.
Podemos, pois, dizer, sem maiores indagações, que o Direito corresponde
à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma
sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade.
É a razão pela qual um grande jurista contemporâneo, Santi Romano, cansado de
ver o Direito concebido apenas como regra ou comando, concebeu-o antes como
“realização de convivência ordenada”.
De “experiência jurídica”, em verdade, só podemos falar onde e quando se
formam relações entre os homens, por isso denominadas relações intersubjetivas,
por envolverem sempre dois ou mais sujeitos. Daí a sempre nova lição de um
antigo brocardo: ubi societas, ibi jus (onde está a sociedade está o Direito). A
recíproca também é verdadeira: ubi jus, ibi societas, não se podendo conceber
qualquer atividade social desprovida de forma e garantia jurídicas, nem qualquer
regra jurídica que não se refira à sociedade.
O Direito é, por conseguinte, um fato ou fenômeno social; não existe senão
na sociedade e não pode ser concebido fora dela. Uma das características da
realidade jurídica é, como se vê, a sua socialidade, a sua qualidade de ser social.
Admitido que as formas mais rudimentares e toscas de vida social já
implicam um esboço de ordem jurídica, é necessário desde logo observar que
durante milênios o homem viveu ou cumpriu o Direito, sem se propor o problema
de seu significado lógico ou moral. É somente num estágio bem maduro da
civilização que as regras jurídicas adquirem estrutura e valor próprios,
independente das normas religiosas ou costumeiras e, por via de conseqüência, é
só então que a humanidade passa a considerar o Direito como algo merecedor de
estudos autônomos.
Essa tomada de consciência do Direito assinala um momento crucial e
decisivo na história da espécie humana, podendo-se dizer que a conscientização
do Direito é a semente da Ciência do Direito.
Não é necessário enfatizar a alta significação dessa conversão de um fato
(e, de início, o fato da lei ligava-se, como veremos, ao fado, ao destino, a um
mandamento divino) em um fato teórico, isto é, elevado ao plano da consciência
dos respectivos problemas.
Não é demais salientar essa correlação essencial entre o Direito como fato
social e o Direito como ciência, a tal ponto que, ainda hoje, a mesma palavra serve
para designar a realidade jurídica e a respectiva ordem de conhecimentos. Tem
razão Giambattista Vico, pensador italiano do início do século XVIII, quando nos
ensina que verum ac factum convertuntur, o verdadeiro e o fato se convertem.
É difícil, com efeito, separar a experiência jurídica das estruturas lógicas,
isto é, das estruturas normativas nas quais e mediante as quais ela se processa.
MULTIPLICIDADE E UNIDADE DO DIREITO
Como fato social e histórico, o Direito se apresenta sob múltiplas formas,
em função de múltiplos campos de interesse, o que se reflete em distintas e
renovadas estruturas normativas.
Mas é inegável que, apesar das mudanças que se sucedem no espaço e no
tempo, continuamos a referir-nos sempre a uma única realidade. É sinal que
existem nesta algumas “constantes”, alguns elementos comuns que nos permitem
identificá-la como experiência jurídica, inconfundível com outras, como a religiosa,
a econômica, a artística etc.
Deve existir, com efeito, algo de comum a todos os fatos jurídicos, sem o
que não seria possível falar-se em Direito como uma expressão constante da
experiência social. A primeira finalidade de nossas aulas será, pois, oferecer uma
visão unitária e panorâmica dos diversos campos em que se desdobra a conduta
humana segundo regras de direito.
Antes de se fazer o estudo de determinado campo do Direito, impõe-se
uma visão de conjunto: ver o Direito como um todo, antes de examiná-lo através
de suas partes especiais.
O Direito abrange um conjunto de disciplinas jurídicas. Mais tarde, teremos
oportunidade de examinar a questão relativa à divisão do Direito, mas é
indispensável antecipar algumas noções, sem as quais nossas considerações não
teriam consistência.
O Direito divide-se, em primeiro lugar, em duas grandes classes: o Direito
Privado e o Direito Público. As relações que se referem ao Estado e traduzem o
predomínio do interesse coletivo são chamadas relações públicas, ou de Direito
Público. Porém, o homem não vive apenas em relação com o Estado mas também
e principalmente em ligação com seus semelhantes: a relação que existe entre pai
e filho, ou então, entre quem compra e quem vende determinado bem, não é uma
relação que interessa de maneira direta ao Estado, mas sim ao indivíduo enquanto
particular. Essas são as relações de Direito Privado.
Essas classes, por sua vez, se subdividem em vários outros ramos, como,
por exemplo, o Direito Constitucional, o Direito Administrativo, no campo do Direito
Público; o Direito Civil, o Direito Comercial, no campo do Direito Privado. O Direito
é, pois, um conjunto de estudos discriminados; abrange um tronco com vários
ramos; cada um desses ramos tem o nome de disciplina.
Por que essa palavra disciplina? Aconselhamos sempre nossos alunos a
dedicar atenção ao sentido das palavras; elas não surgem por acaso mas, como já
vimos ao nos referirmos aos termos lex e jus, guardam muitas vezes o segredo de
seu significado. Disciplinador é quem rege os comportamentos humanos e sabe
impor ou inspirar uma forma de conduta aos indivíduos. Disciplina é um sistema
de princípios e de regras a que os homens se devem ater em sua conduta; é um
sistema de enlaces, destinados a balizar o comportamento dos indivíduos de
qualquer idade ou classe social, bem como as atividades dos entes coletivos e do
próprio Estado. O que importa é verificar que, no conceito de disciplina, há sempre
a idéia de limite discriminando o que pode, o que deve ou o que não deve ser
feito, mas dando-se a razão dos limites estabelecidos à ação. Daí podermos
completar o que já dissemos, com esta parêmia: ubi jus, ibi ratio. Aliás, a palavra
“razão” é deveras elucidativa, porque ela tanto significa limite ou medida (pensem
na outra palavra que vem de ratio, ração) como indica o motivo ou a causa de
medir. De qualquer modo, ninguém pode exercer uma atividade sem razão de
direito.
Lembro-lhes, por exemplo, que este nosso contato está sob a proteção do
Direito: eu, dando aula e os senhores ouvindo-a, estamos todos no exercício de
uma faculdade jurídica. Os senhores conquistaram o direito de freqüentar as
aulas, através dos exames que prestaram, e se não pagam taxas é porque ainda
não há norma que as estabeleça. Quer dizer que estão aqui no exercício de uma
atividade garantida. Também, por meu lado, estou no exercício de uma função
que se integra na minha personalidade, como meu patrimônio: exerço um poder
de agir, tutelado pelo Direito.
Há, portanto, em cada comportamento humano, a presença, embora
indireta, do fenômeno jurídico: o Direito está pelo menos pressuposto em cada
ação do homem que se relacione com outro homem. O médico, que receita para
um doente, pratica um ato de ciência, mas exerce também um ato jurídico. Talvez
não o perceba, nem tenha consciência disso, nem ordinariamente é necessário
que haja percepção do Direito que está sendo praticado. Na realidade, porém, o
médico que redige uma receita está no exercício de uma profissão garantida pelas
leis do país e em virtude de um diploma que lhe faculta a possibilidade de
examinar o próximo e de ditar-lhe o caminho para restabelecer a saúde; um outro
homem qualquer, que pretenda fazer o mesmo, sem iguais qualidades, estará
exercendo ilicitamente a Medicina. Não haverá para ele o manto protetor do
Direito; ao contrário, seu ato provocará a repressão jurídica para a tutela de um
bem, que é a saúde pública. O Direito é, sob certo prisma, um manto protetor de
organização e de direção dos comportamentos sociais. Posso, em virtude do
Direito, ficar em minha casa, quando não estiver disposto a trabalhar, assim como
posso dedicar-me a qualquer ocupação, sem ser obrigado a estudar Medicina e
não Direito, a ser comerciante e não agricultor. Todas essas infinitas
possibilidades de ação se condicionam à existência primordial do fenômeno
jurídico. O Direito, por conseguinte, tutela comportamentos humanos: para que
essa garantia seja possível é que existem as regras, as normas de direito como
instrumentos de salvaguarda e amparo da convivência social. Existem tantas
espécies de normas e regras jurídicas quantos são os possíveis comportamentos
e atitudes humanas. Se o comportamento humano é de delinqüência, tal
comportamento sofre a ação de regras penais, mas se a conduta visa à
consecução de um objetivo útil aos indivíduos e à sociedade, as normas jurídicas
cobrem-na com o seu manto protetor.
Pois bem, quando várias espécies de normas do mesmo gênero se
correlacionam, constituindo campos distintos de interesse e implicando ordens
correspondentes de pesquisa, temos, consoante já assinalamos, as diversas
disciplinas jurídicas, sendo necessário apreciá-las no seu conjunto unitário, para
que não se pense que cada uma delas existe independentemente das outras. Não
existe um Direito Comercial que nada tenha a ver com o Direito Constitucional. Ao
contrário, as disciplinas jurídicas representam e refletem um fenômeno jurídico
unitário que precisa ser examinado. Um dos primeiros objetivos da Introdução ao
Estudo do Direito é a visão panorâmica e unitária das disciplinas jurídicas.
COMPLEMENTARIDADE DO DIREITO
Não basta, porém, ter uma visão unitária do Direito. É necessário, também,
possuir o sentido da complementaridade inerente a essa união. As diferentes
partes do Direito não se situam uma ao lado da outra, como coisas acabadas e
estáticas, pois o Direito é ordenação que dia a dia se renova. A segunda finalidade
da Introdução ao Estudo do Direito é determinar, por conseguinte, a
complementaridade das disciplinas jurídicas, ou o sentido sistemático da unidade
do fenômeno jurídico.
Existem vários tipos de unidade: há um tipo de “unidade física ou
mecânica” que é mais própria dos entes homogêneos, pela ligação de elementos
da mesma ou análoga natureza, nenhuma ação ou função resultando
propriamente da composição dos elementos particulares no todo. Assim dizemos
que um bloco de granito é unitário. Há outras realidades, entretanto, que também
são unitárias, mas segundo uma unidade de composição de elementos distintos,
implicados ou correlacionados entre si, sendo essa composição de elementos
essencial à função exercida pelo todo. Pensem, por exemplo, no coração. O
coração é uma unidade, mas unidade orgânica, que existe em virtude da harmonia
das partes; há nele elementos vários, cada qual com sua função própria, mas
nenhuma destas se desenvolve como atividade bastante e de per si; cada parte só
existe e tem significado em razão do todo em que se estrutura e a que serve. Essa
unidade, que se constitui em razão de uma função comum, chama-se unidade
orgânica, tomando a denominação especial de unidade de fim quando se trata de
ciências humanas. Nestas, com efeito, o todo se constitui para perseguir um
objetivo comum, irredutível às partes componentes. A idéia de fim deve ser
reservada ao plano dos fatos humanos, sociais ou históricos.
A Ciência Jurídica obedece a esse terceiro tipo de unidade, que não é o
físico ou o orgânico, mas sim o finalístico ou teleológico. Às vezes empregamos a
expressão “unidade orgânica”, quando nos referimos ao Direito, mas é preciso
notar que é no sentido de uma unidade de fins. Alguns biólogos afirmam que a
idéia de “fim” é útil à compreensão dos organismos vivos, representando estes
como que uma passagem entre o “natural” e o “histórico”.
É necessário, porém, não incidirmos em perigosas analogias, sob o influxo
ou o fascínio das ciências físicas ou biológicas. Uma delas constitui em conceber
a sociedade como um corpo social, tal como o fizeram os adeptos da teoria
organicista que tanta voga teve entre juristas e teóricos do Estado no fim do
século passado e primeiras décadas deste.
LINGUAGEM DO DIREITO
Para realizarmos, entretanto, esse estudo e conseguirmos alcançar a visão
unitária do Direito, é necessário adquirir um vocabulário. Cada ciência exprime-se
numa linguagem. Dizer que há uma Ciência Física é dizer que existe um
vocabulário da Física. É por esse motivo que alguns pensadores modernos
ponderam que a ciência é a linguagem mesma, porque na linguagem se
expressam os dados e valores comunicáveis. Fazendo abstração do problema da
relação entre ciência e linguagem, preferimos dizer que, onde quer que exista uma
ciência, existe uma linguagem correspondente. Cada cientista tem a sua maneira
própria de expressar-se, e isto também acontece com a Jurisprudência, ou Ciência
do Direito. Os juristas falam uma linguagem própria e devem ter orgulho de sua
linguagem multimilenar, dignidade que bem poucas ciências podem invocar.
Às vezes, as expressões correntes, de uso comum do povo, adquirem, no
mundo jurídico, um sentido técnico especial. Vejam, por exemplo, o que ocorre
com a palavra “competência” – adjetivo: competente. Quando dizemos que o juiz
dos Feitos da Fazenda Municipal é competente para julgar as causas em que a
Prefeitura é autora ou ré, não estamos absolutamente apreciando a “competência”
ou preparo cultural do magistrado. Competente é o juiz que, por força de
dispositivos legais da organização judiciária, tem poder para examinar e resolver
determinados casos, porque competência, juridicamente, é “a medida ou a
extensão da jurisdição”.
Estão vendo, pois, como uma palavra pode mudar de significado, quando
aplicada na Ciência Jurídica. Dizer que um juiz é incompetente para o homem do
povo é algo de surpreendente. “Como incompetente? Ele é competentíssimo!”,
disse-me certa vez um cliente perplexo. Tive de explicar-lhe que não se tratava do
valor, do mérito ou demérito do magistrado, mas da sua capacidade legal de tomar
conhecimento da ação que nos propúnhamos intentar.
É necessário, pois, que dediquem a maior atenção à terminologia jurídica,
sem a qual não poderão penetrar no mundo do Direito. Por que escolheram os
senhores o estudo do Direito e não o de outra ciência qualquer? Se pensarem
bem, nós estamos aqui nesta Faculdade para realizar uma viagem de cinco anos;
cinco anos para descobrir e conhecer o mundo jurídico, e sem a linguagem do
Direito não haverá possibilidade de comunicação. Não cremos seja necessário
lembrar que teoria da comunicação e teoria da linguagem se desenvolvem em
íntima correlação, sendo essa uma verdade que não deve ser olvidada pelos
juristas.
Uma das finalidades de nosso estudo é esclarecer ou determinar o sentido
dos vocábulos jurídicos, traçando as fronteiras das realidades e das palavras. À
medida que forem adquirindo o vocabulário do Direito, com o devido rigor, o que
não exclui, mas antes exige os valores da beleza e da elegância, sentirão crescer
pari passu os seus conhecimentos jurídicos.
O DIREITO NO MUNDO DA CULTURA
Não pensem que haja só continentes geográficos, formados de terra, mar
etc. Há continentes de outra natureza, que são os da história e da cultura, os do
conhecimento e do operar do homem. Cada um de nós elege um país em um dos
continentes do saber, para o seu conhecimento e a sua morada. Uns escolhem a
Matemática, outros a Física, ou a Medicina; os senhores vieram conhecer o
mundo do Direito. Qual a natureza desse mundo jurídico que nos cabe conhecer?
Quais as vias que devemos percorrer, na perquirição de seus valores? O mundo
jurídico encontra em si a sua própria explicação? Ou explica-se, ao contrário, em
razão de outros valores? O mundo do Direito tem um valor, próprio ou terá um
valor secundário? O Direito existe por si, ou existe em função de outros valores?
Devemos, pois, colocar o fenômeno jurídico e a Ciência do Direito na posição que
lhes cabe em confronto com os demais campos da ação e do conhecimento. A
quarta missão da nossa disciplina consiste em localizar o Direito no mundo da
cultura no universo do saber humano. Que relações prendem o Direito à
Economia? Que laços existem entre o fenômeno jurídico e o fenômeno artístico?
Que relações existiram e ainda existem entre o Direito e a Religião? Quais os
influxos e influências que a técnica e as ciências físico-matemáticas exercem
sobre os fatos jurídicos? É preciso que cada qual conheça o seu mundo, o que é
uma forma de conhecer-se a si mesmo.
O MÉTODO NO DIREITO
Mas, para que todas essas tarefas sejam possíveis, há necessidade de
seguir-se um método, uma via que nos leve a um conhecimento seguro e certo.
Adquirem também os senhores, através da Introdução ao Estudo do Direito, as
noções básicas do método jurídico. Método é o caminho que deve ser percorrido
para a aquisição da verdade, ou, por outras palavras, de um resultado exato ou
rigorosamente verificado. Sem método não há ciência. O homem do vulgo pode
conhecer certo, mas não tem certeza da certeza. O conhecimento vulgar nem
sempre é errado, ou incompleto. Pode mesmo ser certo, mas o que o compromete
é a falta de segurança quanto àquilo que afirma. É um conhecimento parcial,
isolado, fortuito, sem nexo com os demais. Não é o que se dá com o
conhecimento metódico; quando dizemos que temos ciência de uma coisa é
porque verificamos o que a seu respeito se enuncia. A ciência é uma verificação
de conhecimentos, e um sistema de conhecimentos verificados. Seria
simplesmente inútil percorrermos o mundo jurídico buscando a sua visão unitária
sem dispormos dos métodos adequados para conhecê-lo, pois cada ciência tem a
sua forma de verificação, que não é apenas a do modelo físico ou matemático.
Eis aí algumas das finalidades básicas desta disciplina, que é ensinada
muito sabiamente no primeiro ano, porque temos, diante de nós, todo um mundo a
descobrir. Qualquer viajante ou turista, que vai percorrer terras desconhecidas,
procura um guia que lhe diga onde poderá tomar um trem, um navio, um avião;
onde terá um hotel para pernoitar, museus, bibliotecas e curiosidades que de
preferência deva conhecer. Quem está no primeiro ano de uma Faculdade de
Direito deve receber indicações para a sua primeira viagem qüinqüenal, os
elementos preliminares indispensáveis para situar-se no complexo domínio do
Direito, cujos segredos não bastará a vida toda para desvendar.
NATUREZA DA INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
Não é a Introdução ao Estudo de Direito uma ciência no sentido rigoroso da
palavra, por faltar-lhe um campo autônomo e próprio de pesquisa, mas é ciência
enquanto sistema de conhecimentos logicamente ordenados segundo um objetivo
preciso de natureza pedagógica. Não importa, pois, que seja um sistema de
conhecimentos recebidos de outras ciências e artisticamente unificados.
Trata-se, em suma, de ciência introdutória, como a própria palavra está
dizendo, ou seja, uma ciência propedêutica, na qual o elemento de arte é decisivo.
Quem escreve um livro de Introdução ao Estudo do Direito compõe artisticamente
dados de diferentes ramos do saber, imprimindo-lhes um endereço que é a razão
de sua unidade. Não há, pois, que falar numa Ciência Jurídica intitulada
Introdução ao Estudo do Direito como sinônimo, por exemplo, de Teoria Geral do
Direito, ou de Sociologia Jurídica. Ela se serve de pesquisas realizadas em outros
campos do saber e os conforma aos seus fins próprios, tendo como suas fontes
primordiais a Filosofia do Direito, a Sociologia Jurídica, a História do Direito, e, last
but not least, a Teoria Geral do Direito. Podemos, pois, concluir nossa primeira
aula, dizendo que a Introdução ao Estudo do Direito é um sistema de
conhecimentos, recebidos de múltiplas fontes de informação, destinado a oferecer
os elementos essenciais ao estudo do Direito, em termos de linguagem e de
método, com uma visão preliminar das partes que o compõem e de sua
complementaridade, bem como de sua situação na história da cultura.
CAPÍTULO II
O DIREITO E AS CIÊNCIAS AFINS
SUMÁRIO: Noção de Filosofia do Direito. Noção de Ciência do Direito.
Noção de Teoria Geral do Direito. Direito e Sociologia. Direito e
Economia.
Nossa primeira aula destinou-se a situar a Introdução ao Estudo do Direito
como uma forma de conhecimento de natureza propedêutica, ou seja, um sistema
auxiliar e preparatório de conceitos posto na base das disciplinas jurídicas.
Tivemos ocasião de discriminar algumas das finalidades a que essa ordem de
investigação se propõe, mostrando que se trata de um conjunto sistemático de
princípios e noções indispensáveis àquele que vai penetrar no mundo jurídico e
deseja fazê-lo com certa segurança.
Situada, assim, a Introdução ao Estudo do Direito, faz-se mister verificar
quais as suas ligações, os seus nexos com outras ordens de conhecimento,
especialmente com a Filosofia do Direito, a Teoria Geral do Direito e a Sociologia
Jurídica.
NOÇÃO DE FILOSOFIA DO DIREITO
Seria impossível oferecer-lhes, numa aula introdutória, um conceito cabal
de Filosofia do Direito, matéria destinada a ser estudada no fim do curso. De
qualquer maneira, podemos adiantar aqui alguns elementos de informação,
indagando do que significa o termo “Filosofia”.
Filosofia” é uma palavra de origem grega, de philos (amizade, amor) e
sophia (ciência, sabedoria). Surgiu em virtude de uma atitude atribuída a
Pitágoras, que recusava o título de sophos, sábio. O grande matemático e
pensador não se tinha na conta de sábio, capaz de resolver todos os problemas
do universo e de colocar-se tranqüilamente diante deles; preferia ser apenas um
“amigo da sabedoria”. “Filósofo”, portanto, etimologicamente falando, não é o
senhor de todas as verdades, mas apenas um fiel amigo do saber. Ora, a amizade
significa a dedicação de um ser humano a outro, sem qualquer interesse, com
sentido de permanência, de perenidade. A amizade não é relação fortuita, nem
ligação ocasional; constitui-se, ao contrário, como laço permanente de dedicação.
A “Filosofia”, portanto, poderia ser vista, de início, como dedicação desinteressada
e constante ao bem e à verdade: dedicar-se ao conhecimento, de maneira
permanente e não ocasional, sem visar intencionalmente a qualquer escopo
prático ou utilitário, eis a condição primordial de todo e qualquer conhecimento
filosófico.
No que se refere propriamente à Filosofia do Direito, seria ela uma
perquirição permanente e desinteressada das condições morais, lógicas e
históricas do fenômeno jurídico e da Ciência do Direito. Existe, indiscutivelmente,
ao longo do tempo, um fenômeno jurídico que vem se desenrolando, através de
mil vicissitudes e conflitos, apresentando aspectos diferentes de ano para ano, de
século para século. O Direito que hoje estudamos não é, por certo, o Direito que
existia no mundo romano, ou o seguido pelos babilônicos, no tempo do rei
Hamurabi. Por outro lado, o que hoje está em vigor no Brasil não é o mesmo do
tempo do Império, nem tampouco existe identidade entre a vida jurídica brasileira
e aquela que podemos examinar em outros países, como a Itália, a Espanha, ou a
China. O Direito é um fenômeno histórico-social sempre sujeito a variações e
intercorrências, fluxos e refluxos no espaço e no tempo.
Nessa mudança não haverá, entretanto, algo de permanente que nos
permita saber em que o Direito consiste? Se ele muda, não será possível
determinar as razões da mudança? Por outras palavras, se o Direito é um fato
social que se desenvolve através do tempo, não haverá leis governando tal
processo? Como explicar o aparecimento do Direito e o sentido de suas
transformações? Esses problemas são de ordem filosófica, constituindo um
conjunto de indagações indispensáveis para se penetrar nas “razões fundantes da
experiência jurídica”.
Dissemos, na aula anterior, que a Ciência do Direito abrange um conjunto
de disciplinas ou sistemas de normas que exigem dos homens determinadas
formas de conduta. As regras, por exemplo, do Código Comercial estabelecem
como as pessoas devem se comportar quando praticam atos de comércio. Por
outro lado, as normas do Código Penal discriminam as ações reputadas delituosas
e as penas que lhes correspondem. Há, pois, distintas séries de diretrizes dirigindo
o comportamento social. Mas se assim é, surge uma pergunta: por que sou
obrigado a obedecer a regras de direito tão diversas e contrastantes? A resposta
poderá ser simplista: obedeço às regras de direito, porque assim o Estado o
ordena. Mas, essa resposta levanta logo uma dúvida: será porventura o Direito
aquilo que se ordena? Reduz-se o Direito a uma expressão da força? Eis uma
série de outras indagações que também pertence ao campo da Filosofia do
Direito. Bastam, porém, as considerações ora desenvolvidas para verificar-se que,
se resumirmos os tipos de indagações formuladas, chegaremos a três ordens de
pesquisas, a que a Filosofia do Direito responde: Que é Direito? Em que se funda
ou se legitima o Direito? Qual o sentido da história do Direito?
A definição do Direito só pode ser obra da Filosofia do Direito. A nenhuma
Ciência Jurídica particular é dado definir o Direito, pois é evidente que a espécie
não pode abranger o gênero. Não se equivoquem pelo fato de encontrarem uma
definição de Direito no início de um tratado, ou compêndio de Direito Civil. Nada
mais errôneo do que pensar que o que se encontra num livro de Direito Civil seja
sempre de Direito Civil. Antes de entrar propriamente no estudo de sua disciplina,
o civilista é obrigado a dar algumas noções que são pressupostos de sua
pesquisa, como é o caso do conceito de Direito, que é um problema de ordem
filosófica, reapresentando mesmo uma das tarefas primordiais de caráter lógico
que cabe ao filósofo do Direito resolver. Outro problema complementar é o relativo
à legitimidade ou fundamento do Direito mesmo. Por que o Direito obriga? Basearse-
á o Direito na força? Pode-se explicar o Direito segundo critérios de utilidade?
Fundar-se-á o Direito na liberdade ou terá a sua razão de ser na igualdade? Basta
enunciar tais perguntas para se perceber que elas envolvem o problema ético do
Direito, ou, mais amplamente, axiológico, isto é, dos valores do Direito.
Pois bem, ao lado do segundo problema ora apontado, que versa sobre o
fundamento do Direito, há um terceiro, não menos importante, que não se refere à
história do Direito como tal (essa é tarefa do historiador do Direito), mas sim ao
sentido da experiência jurídica. Essa ordem se expressa através de perguntas
como estas: Há progresso na vida jurídica? Pode-se afirmar que existem leis
governando a experiência do homem nessa sua árdua faina de fazer e refazer
leis?
Em conclusão, o filósofo do Direito indaga dos princípios lógicos, éticos e
histórico-culturais do Direito.
A Filosofia do Direito não se confunde com a Ciência do Direito, pois se
coloca perante a indagação científica para examinar as suas condições de
possibilidade. Toda ciência suscita uma indagação referente às condições lógicas
do seu próprio desenvolvimento. Se a Ciência do Direito chega a determinados
resultados, é preciso saber qual é o seu grau de certeza e segurança. Sob esse
ângulo particular poder-se-ia dizer que a Filosofia do Direito é a Filosofia da
Ciência do Direito, mas as perguntas todas que formulamos demonstram que o
filósofo não fica adstrito a esse tema de ordem lógica, indagando,
concomitantemente, dos valores éticos e históricos da juridicidade1.
NOÇÃO DE CIÊNCIA DO DIREITO
A Ciência do Direito, ou Jurisprudência2 – tomada esta palavra na sua
acepção clássica – tem por objeto o fenômeno jurídico tal como ele se encontra
historicamente realizado. Vejam bem a diferença.
A Ciência do Direito estuda o fenômeno jurídico tal como ele se concretiza
no espaço e no tempo, enquanto que a Filosofia do Direito indaga das condições
mediante as quais essa concretização é possível.
A Ciência do Direito é sempre ciência de um Direito positivo, isto é,
positivado no espaço e no tempo, como experiência efetiva, passada ou atual.
Assim é que o Direito dos gregos antigos pode ser objeto de ciência, tanto como o
da Grécia de nossos dias. Não há, em suma, Ciência do Direito em abstrato, isto
é, sem referência direta a um campo de experiência social. Isto não significa,
todavia, que, ao estudarmos as leis vigentes e eficazes no Brasil ou na Itália, não
1 Pra maiores esclarecimentos sobre a tríplice ordem de indagações filosófico-jurídicas, vide Miguel
Reale, Filosofia do Direito, 13.ª ed., Saraiva, 1990.
2 Quando empregarmos a palavra Jurisprudência como sinônimo de Ciência do Direito, sempre a
grafaremos com maiúscula.
devamos estar fundados em princípios gerais comuns, produto de uma
experiência histórica que tem as mesmas raízes, as do Direito Romano.
Mais tarde estudaremos a questão dos princípios gerais que
consubstanciam a experiência jurídica dos povos pertencentes a uma mesma fase
histórica, e de que maneira se pode falar em uma Ciência Jurídica universal. Mas,
por mais que se alargue o campo da experiência social do Direito, será essa
referibilidade imediata à experiência a nota caracterizadora de uma investigação
jurídica de natureza científico-positiva. Donde poder-se dizer que a ciência do
Direito é uma forma de conhecimento positivo da realidade social segundo normas
ou regras objetivadas, ou seja, tornadas objetivas, no decurso do processo
histórico.
Com isso já esclarecemos outro ponto essencial, que é o sentido da
expressão Direito Positivo, como sendo o Direito que, em algum momento
histórico, entrou em vigor, teve ou continua tendo eficácia. A positividade do
Direito pode ser vista como uma relação entre vigência e eficácia, mas ainda é
cedo para compreender-se bem assunto tão relevante.
Também não é possível, a esta altura de nosso curso, esclarecer a
natureza da Ciência Jurídica, que alguns pretendem seja apenas uma Arte, ou
uma Técnica.
Somente após situarmos o Direito entre as formas da investigação social é
que poderemos esclarecer essas e outras questões que muitas vezes
subentendem simples divergências terminológicas.
NOÇÃO DE TEORIA GERAL DO DIREITO
A referência que fizemos à existência de princípios gerais comuns às
investigações sobre o Direito, procedidas no Brasil e no estrangeiro, já nos mostra
que a Ciência Jurídica não fica circunscrita à análise destes ou daqueles quadros
particulares de normas, mas procura estruturá-los segundo princípios ou conceitos
gerais unificadores.
“Teoria”, do grego theoresis, significa a conversão de um assunto em
problema, sujeito a indagação e pesquisa, a fim de superar a particularidade dos
16
casos isolados, para englobá-los numa forma de compreensão, que correlacione
entre si as partes e o todo. Já Aristóteles nos ensinava que não há ciência senão
do genérico, pois enquanto ficamos apegados à miudeza dos casos não captamos
a essência, ou as “constantes” dos fenômenos. Assim é tanto nas ciências
naturais como nas ciências humanas.
É claro, portanto, que a Ciência Jurídica se eleve ao plano de uma Teoria
Geral do Direito, que, como veremos com mais profundidade, ao volvermos a este
assunto, representa a parte geral comum a todas as formas de conhecimento
positivo do Direito, aquela na qual se fixam os princípios ou diretrizes capazes de
elucidar-nos sobre a estrutura das regras jurídicas e sua concatenação lógica,
bem como sobre os motivos que governam os distintos campos da experiência
jurídica.
Alguns autores distinguem entre Teoria Geral do Direito e Enciclopédia
Jurídica, atribuindo a esta a tarefa de elaborar uma súmula de cada uma das
disciplinas do Direito, numa espécie de microcosmo jurídico. Enciclopédia quer
dizer mesmo “conhecimento ou visão de natureza circular”, o que, a bem ver,
redundaria numa seqüência de problemas distribuídos em função do Direito
Constitucional, Civil, Penal etc.
Parece-nos de bem reduzido alcance esse cinerama jurídico, que só pode
ser avaliado por quem já percorreu cada um dos ramos do Direito. É à Introdução
ao Estudo do Direito que cabe, a nosso ver, dar uma noção geral de cada
disciplina jurídica, mas sem a pretensão de realizar uma síntese das respectivas
questões fundamentais. Consoante dizer irônico de João Mendes Júnior, a
Enciclopédia Jurídica nos levaria a conhecer um pouco de cada coisa, e de tudo
nada…
DIREITO E SOCIOLOGIA
A colocação da Sociologia como disciplina obrigatória do currículo jurídico
dispensa-nos de maiores indagações sobre a matéria, mas não será demais
prevenir contra a pretensão de certos sociólogos de reduzir o Direito a um capítulo
da Sociologia.
17
Sabem os senhores que os sociólogos até hoje não conseguiram
estabelecer, sem discrepâncias, o objeto da Sociologia, o que não deve causar
estranheza, pois com o Direito, que é bem mais antigo, acontece o mesmo. O
caráter problemático do objeto parece ser inerente às ciências humanas.
Em linhas gerais, porém, pode-se dizer que a Sociologia tem por fim o
estudo do fato social na sua estrutura e funcionalidade, para saber, em suma,
como os grupos humanos se organizam e se desenvolvem, em função dos
múltiplos fatores que atuam sobre as formas de convivência.
Com essa noção elementar, que nos situa no limiar de um grande tema, já
podemos ver que a Sociologia não tem por objetivo traçar normas ou regras para
o viver coletivo, mas antes verificar como a vida social comporta diversos tipos de
regras, como reage em relação a elas, nestas ou naquelas circunstâncias etc.
Há muito tempo a Sociologia deixou de alimentar o propósito, que animara
a Augusto Cocote, o principal de seus instituidores, de ser a ciência por
excelência, uma verdadeira Filosofia social englobante, na qual culminariam os
valores todos do saber positivo.
Hoje em dia, a Sociologia, sem perder o seu caráter de pesquisa global ou
sistemática do fato social enquanto social, achega-se mais à realidade, sem a
preocupação de atingir formas puras ou arquetípicas. Desenvolve-se antes como
investigação das estruturas do fato social, inseparáveis de sua funcionalidade
concreta, sem considerar acessórios ou secundários os “estudos de campo”,
relativos a áreas delimitadas da experiência social.
É nesse contexto que se situa a atual Sociologia Jurídica, mais preocupada
em determinar as condições objetivas, que favorecem ou impedem a disciplina
jurídica dos comportamentos, do que em tomar o lugar da Filosofia do Direito,
como o pretenderam os adeptos do “sociologismo jurídico”. A Sociologia Jurídica
apresenta-se, hodiernamente, como uma ciência positiva que procura se valer de
rigorosos dados estatísticos para compreender como as normas jurídicas se
apresentam efetivamente, isto é, como experiência humana, com resultados que
não raro se mostram bem diversos dos que eram esperados pelo legislador. Como
18
será observado, oportunamente, a Sociologia Jurídica não visa à norma jurídica
como tal, mas sim à sua eficácia ou efetividade, no plano do fato social.
Desnecessário é encarecer a importância da Sociologia do Direito para o
jurista ou para o legislador. Se ela não tem finalidade normativa, no sentido de
instaurar modelos de organização e de conduta, as suas conclusões são
indispensáveis a quem tenha a missão de modelar os comportamentos humanos,
para considerá-los lícitos ou ilícitos.
DIREITO E ECONOMIA
Entre os fins motivadores da conduta humana destacam-se os relativos à
nossa própria subsistência e conservação, tendo as exigências vitais evidente
caráter prioritário. O primo vivere, deinde philosophari, antes viver e depois
filosofar, é, a bem ver, um enunciado de Filosofia existencial, reconhecendo a
ordem de urgência com que devem ser atendidas as necessidades ligadas à
nossa estrutura corpórea.
É claro que os atos dos heróis, dos sábios e dos santos, assim como de
abnegados anônimos no campo das ciências e das técnicas, estão aí atestando o
possível sacrifício de necessidades vitais em benefício de outros valores, mas a
regra é a satisfação primordial dos interesses relacionados com a vida e o seu
desenvolvimento.
Esse tipo de ação, orientada no sentido da produção e distribuição de bens
indispensáveis ou úteis à vida coletiva, é a razão de ser da Economia, cujo estudo
já iniciaram nesta Faculdade, tornando-se dispensáveis maiores considerações.
O que nos cabe analisar é apenas a relação entre o fenômeno jurídico e o
econômico, inclusive dado o significado da concepção marxista da história na
civilização contemporânea.
Segundo o chamado “materialismo histórico”, o Direito não seria senão uma
superestrutura, de caráter ideológico, condicionada pela infra-estrutura econômica.
É esta que, no dizer de Marx, modela a sociedade, determinando as formas de
Arte, de Moral ou de Direito, em função da vontade da classe detentora dos meios
de produção. Em palavras pobres, quem comanda as forças econômicas, através
19
delas plasma o Estado e o Direito, apresentando suas volições em roupagens
ideológicas destinadas a disfarçar a realidade dos fatos.
Os próprios marxistas mais abertos à crítica já reconheceram o caráter
unilateral dessa colocação do problema, a qual peca inclusive do vício lógico de
conceber uma estrutura econômica anterior ao Direito e independente dele,
quando, na realidade, o Direito está sempre presente, qualquer que seja a
ordenação das forças econômicas. Por outro lado, quando uma nova técnica de
produção determina a substituição de uma estrutura jurídica por outra, a nova
estrutura repercute, por sua vez, sobre a vida econômica, condicionando-a. Há,
pois, entre Economia e Direito uma interação constante, não se podendo afirmar
que a primeira cause o segundo, ou que o Direito seja mera “roupagem
ideológica” de uma dada forma de produção.
Há, em suma, uma interação dialética entre o econômico e o jurídico, não
sendo possível reduzir essa relação a nexos causais, nem tampouco a uma
relação entre forma e conteúdo. Rudolf Stammler, um dos renovadores da
Filosofia do Direito contemporânea, em obra célebre, publicada em fins do século
passado, contrapunha-se ao materialismo histórico afirmando que, se o conteúdo
dos atos humanos é econômico, a sua forma é necessariamente jurídica.
Nada justifica o entendimento do Direito como forma abstrata e vazia
casada a um conteúdo econômico, inclusive porque o Direito está cheio de regras
que disciplinam atos totalmente indiferentes ou alheios a quaisquer finalidades
econômicas. Como bem observa Ascarelli, a questão é bem outra, por ser próprio
do Direito receber os valores econômicos, artísticos, religiosos etc., sujeitando-os
às suas próprias estruturas e fins, tomando-os, assim, jurídicos na medida e
enquanto os integra em seu ordenamento.
Cabe, outrossim, ponderar que, assim como o fator econômico atua sobre o
Direito, este resulta também de elementos outros, de natureza religiosa, ética,
demográfica, geográfica etc., o que demonstra a unilateralidade e a inconsistência
de todas as teorias que, como a marxista, enxergam no homem apenas uma de
suas múltiplas dimensões.
20
Diríamos que o Direito é como o rei Midas. Se na lenda grega esse
monarca convertia em ouro tudo aquilo em que tocava, aniquilando-se na sua
própria riqueza, o Direito, não por castigo, mas por destinação ética, converte em
jurídico tudo aquilo em que toca, para dar-lhe condições de realizabilidade
garantida, em harmonia com os demais valores sociais.
21
CAPÍTULO III
NATUREZA E CULTURA
SUMÁRIO: O dado e o construído. Conceito de cultura. Leis físicomatemáticas
e leis culturais. Bens culturais e ciências culturais.
O DADO E O CONSTRUÍDO
Se volvemos os olhos para aquilo que nos cerca, verificamos que existem
homens e existem coisas. O homem não apenas existe, mas coexiste, ou seja,
vive necessariamente em companhia de outros homens. Em virtude do fato
fundamental da coexistência, estabelecem os indivíduos entre si relações de
coordenação, de subordinação, de integração, ou de outra natureza, relações
essas que não ocorrem sem o concomitante aparecimento de regras de
organização e de conduta.
Pois bem, essas relações podem ocorrer em razão de pessoas, ou em
função de coisas. Verificamos, por exemplo, que um determinado indivíduo tem a
sua casa e que dela pode dispor a seu talante, sendo-lhe facultado tanto vendê-la
como alugá-la. Há um nexo físico entre um homem e um certo bem econômico.
Há relações, portanto, entre os homens e as coisas, assim como existem também
entre as coisas mesmas. Trata-se, é claro, de tipos diferentes de relações, cuja
discriminação vai se enriquecendo à medida que a ciência progride.
Não é necessária muita meditação para se reconhecer, por exemplo, que
existem duas ordens de relações correspondentes a duas espécies de realidade:
uma ordem que denominamos realidade natural, e uma outra, realidade humana,
cultural ou histórica.
No universo, há coisas que se encontram, por assim dizer, em estado bruto,
ou cujo nascimento não requer nenhuma participação de nossa inteligência ou de
nossa vontade. Mas, ao lado dessas coisas, postas originariamente pela natureza,
outras há sobre as quais o homem exerce a sua inteligência e a sua vontade,
adaptando a natureza a seus fins.
Constituem-se, então, dois mundos complementares: o do natural e o do
cultural; do dado e do construído; do cru e do cozido. Havendo necessidade de
22
uma expressão técnica para indicar os elementos que são apresentados aos
homens, sem a sua participação intencional, quer para o seu aparecimento, quer
para o seu desenvolvimento, dizemos que eles formam aquilo que nos é “dado”, o
“mundo natural”, ou puramente natural. “Construído” é o termo que empregamos
para indicar aquilo que acrescentamos à natureza, através do conhecimento de
suas leis visando a atingir determinado fim1.
Diante dessas duas esferas do real, o homem se comporta de maneira
diversa, mas antes procura conhecê-las, descobrindo os nexos existentes entre
seus elementos e atingindo as leis que as governam.
Montesquieu, que é um dos grandes mestres da ciência jurídico-política da
França, no século XVIII, escreveu uma obra de grande repercussão na cultura do
Ocidente, intitulada De l’Esprit des Lois (Do Espírito das Leis), cuja influência se
fez notar na Revolução Francesa, primeiro, e, depois, na organização da
democracia liberal. Pois bem, nesse livro de Montesquieu, a lei é definida como
sendo uma “relação necessária que resulta da natureza das coisas”.
Essa definição vale tanto para as leis físico-matemáticas como para as leis
culturais. Vejamos se se pode falar em “natureza das coisas” ao nos referirmos às
leis que explicam o mundo físico, ou seja o mundo do “dado”, ou às leis morais e
jurídicas, que são as mais importantes dentre as que compreendem o mundo da
cultura e da conduta humana, do “construído”.
CONCEITO DE CULTURA
Esse estudo tornar-se-á mais acessível com o esclarecimento prévio do
que se deva entender pela palavra “cultura”. Dissemos que o universo apresenta
duas ordens de realidade: uma, que chamamos realidade natural ou físico-natural,
e outra, que denominamos realidade cultural. A expressão tem sido impugnada ou
criticada sob a alegação de ter sido trazida para o nosso meio por influência da
filosofia alemã, que se desenvolveu em grande parte ao redor do termo Kultur,
com preterição do termo “civilização”.
1 Observamos que, embora inspirada na terminologia de François Gény, a distinção aqui feita entre
“dado” e “construído” não corresponde à desenvolvida por esse ilustre jurisconsulto francês.
23
Essa objeção não tem qualquer procedência. A palavra em si é
genuinamente latina, e não cremos que se deva condenar o emprego de um
vocábulo só por ter sido objeto, em outros países, de estudos especiais…
Além do mais, a palavra “cultura” já era empregada por escritores latinos,
que, nas pegadas de Cícero, faziam-no em dois sentidos: como cultura agri
(agricultura) e como cultura animi. A agricultura dá-nos bem idéia da interferência
criadora do homem, através do conhecimento das leis que explicam a germinação,
a frutificação etc. Ao lado da cultura do campo, viam os romanos a cultura do
espírito, o aperfeiçoamento espiritual baseado no conhecimento da natureza
humana. É na natureza humana que, efetivamente, repousam, em última análise,
as leis culturais, sem que a aceitação do conceito de “natureza humana” implique,
necessariamente, o reconhecimento de “leis naturais” anteriores às que se
positivam na história.
Pois bem, “cultura” é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e
espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer
para modificar-se a si mesmo. É, desse modo, o conjunto dos utensílios e
instrumentos, das obras e serviços, assim como das atitudes espirituais e formas
de comportamento que o homem veio formando e aperfeiçoando, através da
história, como cabedal ou patrimônio da espécie humana.
Não vivemos no mundo de maneira indiferente, sem rumos ou sem fins. Ao
contrário, a vida humana é sempre uma procura de valores. Viver é
indiscutivelmente optar diariamente, permanentemente, entre dois ou mais
valores. A existência é uma constante tomada de posição segundo valores. Se
suprimirmos a idéia de valor, perderemos a substância da própria existência
humana. Viver é, por conseguinte, uma realização de fins. O mais humilde dos
homens tem objetivos a atingir, e os realiza, muitas vezes, sem ter plena
consciência de que há algo condicionando os seus atos.
O conceito de fim é básico para caracterizar o mundo da cultura. A cultura
existe exatamente porque o homem, em busca da realização de fins que lhe são
próprios, altera aquilo que lhe é “dado”, alterando-se a si próprio.
24
Para ilustrar essa passagem do natural para o cultural, – mesmo porque não
há conflito entre ambos, pois, como adverte Jaspers, a natureza está sempre na
base de toda criação cultural, – costuma-se lembrar o exemplo de um cientista que
encontra, numa caverna, um pedaço de sílex.
À primeira vista, por se tratar de peça tão tosca, tão vizinha do natural
espontâneo, considera-a apenas com olhos de geólogo ou de mineralogista,
indagando de suas qualidades, para classificá-la segundo os esquemas do saber
positivo.
Um exame mais atento revela, todavia, que aquele pedaço de sílex
recebera uma forma resultante da interferência, do trabalho do homem,
afeiçoando-se a fins humanos, para servir como utensílio, um machado, uma
arma. Desde esse instante, o dado da natureza se converte em elemento da
cultura, adquirindo uma
significação ou dimensão nova, a exigir a participação do antropólogo, isto
é, de um estudioso de Antropologia cultural, que é a ciência das formas de vida,
das crenças, das estruturas sociais e das instituições desenvolvidas pelo homem
no processo das civilizações.
Esse exemplo, que nos transporta às origens da cultura, tem o mérito de
mostrar a vinculação originária da cultura com a natureza, evitando-se certos
exageros culturalistas, que fazem do homem um Barão de Münchausen
pretendendo arrancar-se pelos cabelos para se libertar do mundo natural, no qual
se acha imerso… É, ao contrário, com apoio na natureza, que a cultura surge e se
desenvolve.
O sentido ora dado à palavra cultura não deve ser confundido com a
acepção corrente da mesma palavra. “Cultura”, na acepção comum desse termo,
indica antes o aprimoramento do espírito, que possibilita aos homens cultivar
todos os valores humanos. Homem culto é aquele que tem seu espírito de tal
maneira conformado, através de meditações e experiências que, para ele, não
existem problemas inúteis ou secundários, quando eles se situam nos horizontes
de sua existência. O homem culto é bem mais do que o homem erudito. Este
limita-se a reunir e a justapor conhecimentos, enquanto que o homem culto os
25
unifica e anima com um sopro de espiritualidade e de entusiasmo. O termo técnico
“cultura”, embora distinto do usual, guarda o mesmo sentido ético, o que
compreenderemos melhor lembrando que a cultura se desdobra em diversos
“ciclos culturais” ou distintos “estágios históricos”, cada um dos quais corresponde
a uma civilização. O termo “cultura” designa, portanto, um gênero, do qual a
“civilização” é uma espécie.
LEIS FÍSICO-MATEMÁTICAS E LEIS CULTURAIS
A afirmação feita de que a cultura implica a idéia de valor e de fim dá-nos o
critério distintivo entre as duas esferas de realidades que estamos analisando.
Se observarmos bem qual é o trabalho de um físico ou de um químico,
perceberemos que o que ele pretende é explicar a realidade da maneira mais
exata e rigorosa.
Qual o desejo de um químico no seu laboratório? Tornar-se neutro perante
o real, fazendo emudecer todos os seus preconceitos, de maneira que possa,
numa fórmula feliz, abstrata e objetiva, surpreender a realidade na totalidade de
seus elementos componentes. A Ciência Física é uma ciência descritiva do real,
visando a atingir leis que sejam sínteses do fato natural. A lei física ideal deveria
ser neutra, em acréscimos à natureza, espelhando em sua estrutura as relações
observadas, como pura “súmula estatística do fato”.
É inegável que toda investigação científica está condicionada por certos
pressupostos teóricos, e, por conseguinte, por determinadas opções valorativas,
mas isto não impede que, de maneira geral, os fatos possam ser captados em
suas relações objetivas.
Há entre os fatos ou fenômenos da natureza relações de funcionalidade e
sucessão, importando fixar quantitativamente tais relações: o físico tem por mister
e objetivo examinar os fenômenos que se passam e, através de observações,
experimentações e generalizações, alcançar os princípios e as leis que os
governam. A lei física é, de certa maneira, como que o retrato do fato, na plenitude
de seus aspectos. Quando enuncio, por exemplo, a lei que governa a dilatação
26
dos gases, estou indicando de maneira sintética os fatos observados e os que
necessariamente acontecerão sempre que as mesmas circunstâncias ocorrerem.
Sendo a lei física uma expressão neutra do fato, qualquer lei, por mais que
pareça, cede diante de qualquer aspecto factual que venha contrariar o seu
enunciado. Entre a lei e o fato, no mundo físico, não há que hesitar: prevalece o
fato, ainda que seja um só fato observado; modifica-se a teoria, altera-se a lei.
Vejam se isso é possível em todos os campos do “mundo da cultura”, a que
pertence o Direito. Imagine-se um fato alterando a lei jurídica: um indivíduo,
matando alguém, modificaria, mediante o seu ato, o Código Penal… Estão aí
vendo, por um exemplo rude, a diferença fundamental entre as leis físicomatemáticas
e as leis do tipo das leis jurídicas, diferença essa que resulta da
“natureza das coisas” peculiar a cada esfera de realidade. Uma é lei subordinada
ao fato; a outra é lei que se impõe ao fato isolado que conflitar com ela.
As relações que unem, entre si, os elementos de um fenômeno natural
desenvolvem-se segundo o princípio de causalidade ou exprimem meras
referências.funcionais, cegas para os valores. As relações que se estabelecem
entre os homens, ao contrário, envolvem juízos de valor, implicando uma
adequação de meios a fins.
Recapitulando, podemos dizer que, ao contrário das leis físicomatemáticas,
as leis culturais caracterizam-se por sua referibilidade a valores, ou,
mais especificamente, por adequarem meios afins. Daí sua natureza axiológica ou
teleológica, não sendo demais lembrar que Axiologia significa “teoria dos valores”;
e Teleologia, “teoria dos fins”.
Nem todas as leis culturais são, porém, da mesma natureza, pois, enquanto
as leis sociológicas, as históricas e as econômicas são enunciações de juízos de
valor, com base nos fatos observados, – fatos esses que a Sociologia, a História e
a Economia não se limitam a “retratar”, como pretenderam os filósofos positivistas,
- o mesmo não acontece no plano da Ética, que é a ciência normativa dos
comportamentos humanos.
O sociólogo, o historiador e o economista não têm o propósito deliberado
de disciplinar formas de conduta, muito embora suas conclusões possam e devam
27
influir sobre a ordenação dos comportamentos. Costuma-se dizer que a História é
mestra da vida, no sentido de que a experiência passada deve servir-nos de
exemplo, e o mesmo se poderá dizer da Sociologia e da Economia, mas nenhum
de seus cultores, enquanto se mantenham no plano objetivo de suas pesquisas,
pensa converter suas convicções em normas ou regras para o comportamento
coletivo.
É com base nas apreciações ou valorações econômicas, sociológicas,
históricas, demográficas etc. que o legislador (ou, mais genericamente, o político)
projeta normas, sancionando as que considera devam ser obedecidas.
Quando, pois, uma lei cultural envolve uma tomada de posição perante a
realidade, implicando o reconhecimento da obrigatoriedade de um
comportamento, temos propriamente o que se denomina regra ou norma.
Mais tarde cuidaremos de esclarecer outros aspectos dessa questão,
caracterizando melhor o momento normativo da Ética, entendida como Ciência ou
teoria geral dos comportamentos não só valiosos, mas obrigatórios. Por ora, vale a
pena dedicar atenção ao seguinte quadro:
LEI
a) físico-matemática ou natural
b) cultural: b1) sociológica, histórica, econômica etc.
b2) ética ou norma ética (moral, política, religiosa, jurídica etc.)
BENS CULTURAIS E CIÊNCIAS CULTURAIS
Dissemos que existem duas ordens de fenômenos: os da natureza e os da
cultura. No estudo dos fenômenos puramente naturais, o homem chega a uma
soma de conhecimentos que forma, em síntese, as chamadas ciências físicomatemáticas,
como, por exemplo, a Física, a Química, a Matemática, a
Astronomia, a Geologia, e assim por diante. Essas ciências não podem ser
chamadas ciências culturais; elas, entretanto, como ciências que são, constituem
“bens da cultura”. Elas entram a fazer parte do patrimônio da cultura, mas não são
ciências culturais, porquanto o seu objeto é a natureza: são “ciências naturais”, e
28
como produto da atividade criadora do homem, integram também o mundo da
cultura.
Se o homem, por um lado, estuda e explica a natureza, atingindo ciências
especiais, por outro lado, volta-se para o estudo de si mesmo e da sua própria
atividade consciente; ele abre perspectivas para outros campos do saber, que são
a História, a Economia, a Sociologia, o Direito etc.
Essas ciências, que têm por objeto o próprio homem ou as atividades do
homem buscando a realização de fins especificamente humanos, é que nós
chamamos de ciências propriamente culturais. Há, pois, uma distinção bem clara e
necessária: todas as ciências representam fatos culturais, bens culturais, mas,
nem todas as ciências podem ser chamadas, no sentido rigoroso do termo,
ciências culturais.
Ciências culturais são aquelas que, além de serem elementos da cultura,
têm por objeto um bem cultural. A sociedade humana, por exemplo, não é só um
fato natural, mas algo que já sofreu no tempo a interferência das gerações
sucessivas.
Quando uma criança nasce já recebe, através dos primeiros vocábulos,
uma série de ensinamentos das gerações anteriores. Herda ela, indiscutivelmente,
através da linguagem, um acervo de espiritualidade que se integrou na
convivência.
Em seguida, o ser humano vai recebendo educação e adquirindo
conhecimentos para, depois, atuar sobre o meio ambiente e, desse modo,
transformá-lo, através de novas formas de vida. A sociedade está constantemente
em mutação, não obstante ter sua origem na natureza social do homem.
É necessário, pois, esclarecer o valor do ensinamento, que nos vem de
Aristóteles, de que “o homem é um animal político” por sua própria natureza, ou
seja, um animal destinado a viver em sociedade, de tal modo que, fora da
sociedade, não poderia jamais realizar o bem que tem em vista.
É preciso compreender o sentido da palavra “natural” empregada por
Aristóteles e seus continuadores. Não há dúvida que existe, na natureza humana,
a raiz do fenômeno da convivência. É próprio da natureza humana viverem os
29
homens uns ao lado dos outros, numa interdependência recíproca. Isto não quer
dizer que o homem, impelido a viver em conjunto, nada acrescente à natureza
mesma, pois ele a transforma, transformando-se a si mesmo, impelido por
irrenunciável exigência de perfeição.
A sociedade em que vivemos é, em suma, também realidade cultural e não
mero fato natural. A sociedade das abelhas e dos castores pode ser vista como
um simples dado da natureza, porquanto esses animais vivem hoje, como viveram
no passado e hão de viver no futuro. A convivência dos homens, ao contrário, é
algo que se modifica através do tempo, sofrendo influências várias, alterando-se
de lugar para lugar e de época para época. É a razão pela qual a Sociologia é
entendida, pela grande maioria de seus cultores, como uma ciência cultural.
É evidente que o Direito, sendo uma ciência social, é também uma ciência
cultural, como será objeto de estudos especiais2.
Embora devamos volver a este assunto, não é demais ‘acrescentar desde
logo que, graças às ciências culturais, é-nos possível reconhecer que, em virtude
do incessante e multifário processo histórico, o gênero humano veio adquirindo
consciência da irrenunciabilidade de determinados valores considerados
universais e, como tais atribuíveis a cada um de nós. Correspondem eles ao que
denominamos invariantes axiológicas ou valorativas, como as relativas à
dignidade da pessoa humana, à salvaguarda da vida individual e coletiva,
elevando-se até mesmo a uma visão planetária em termos ecológicos3.
Pensamos ter demonstrado, alhures, que esses valores supremos inspiram
e legitimam os atos humanos como se fossem inatos, ainda que se reconheça sua
origem histórica. Pois bem, uma das finalidades do Direito é preservar e garantir
tais valores e os que deles defluem – sem os quais não caberia falar em liberdade,
igualdade e fraternidade – o que demonstra que a experiência jurídica é uma
experiência ética, consoante passamos a examinar.
2 Para um estudo mais amplo da teoria da cultura, essencial à Ciência do Direito, vide meu livro
Experiência e Cultura, São Paulo, Ed. Grijalbo-EDUSP, 1977.
3 Sobre a relação entre as invariantes axiológicas e o Direito, vide supra, pág. 278.
30
CAPÍTULO IV
O MUNDO ÉTICO
SUMÁRIO: Juízos de realidade e de valor. Estrutura das normas
éticas. Formas da atividade ética.
JUÍZOS DE REALIDADE E DE VALOR
Em nossa última aula, lembramos que as leis éticas, ou melhor, as normas
éticas, não envolvem apenas um juízo de valor sobre os comportamentos
humanos, mas culminam na escolha de uma diretriz considerada obrigatória numa
coletividade. Da tomada de posição axiológica resulta a imperatividade da via
escolhida, a qual não representa assim mero resultado de uma nua decisão,
arbitrária, mas é a expressão de um complexo processo de opções valorativas, no
qual se acha, mais ou menos condicionado, o poder que decide.
A característica da imperatividade do Direito como de todas as normas
éticas, embora tenha sido e continue sendo contestada, parece-nos essencial a
uma compreensão realística da experiência jurídica ou moral. Tudo está, porém,
em não se conceber a imperatividade em termos antropomórficos, como se atrás
de cada regra de direito houvesse sempre uma autoridade de arma em punho
para impor seu adimplemento.
Apesar de não se poder negar que, no ato de aprovar uma lei, haja sempre
certa margem de decisão livre, e, às vezes, até mesmo de arbítrio, na realidade a
obrigatoriedade do Direito vem banhada de exigências axiológicas, de um
complexo de opções que se processa no meio social, do qual não se desprende a
autoridade decisória.
O certo é que toda norma enuncia algo que deve ser, em virtude de ter sido
reconhecido um valor como razão determinante de um comportamento declarado
obrigatório. Há, pois, em toda regra um juízo de valor, cuja estrutura mister é
esclarecer, mesmo porque ele está no cerne da atividade do juiz ou do advogado.
Talvez já saibam o que seja um juízo. Juízo é o ato mental pelo qual
atribuímos, com caráter de necessidade, certa qualidade a um ser, a um ente. Se,
por exemplo, digo que “a Terra é um planeta”, estou ligando ao sujeito “Terra”
31
uma determinada qualidade: a de ser planeta, e não estrela ou cometa. A ligação
feita entre o sujeito e o predicado é tida como necessária, sem o que não temos,
propriamente, um juízo. A ligação entre o sujeito e o predicado pode ser de duas
espécies: ou simplesmente indicativa ou, ao contrário, imperativa.
Em todo juízo lógico, cuja expressão verbal se denomina proposição, há
sempre um sujeito de que se predica algo. Ora, a união entre o sujeito e o
predicado pode ser feita pelo verbo copulativo ser ou, então, pelo verbo dever ser,
distinguindo-se, desse modo, os juízos de realidade dos de valor. Podemos
representar esses dois tipos de juízos, da seguinte maneira:
“S” é “P”
“S” deve ser “P”1
Uma lei física, como, por exemplo, a de inércia, explica o fenômeno do
movimento, estabelecendo conexões necessárias entre os fatos observados, mas
não o situa segundo uma escala positiva ou negativa de valores, nem determina
que alguma coisa seja feita como conseqüência da verdade enunciada.
As relações que se passam entre os homens podem ser estudadas
segundo nexos lógicos dessa natureza, como acontece na Sociologia, mas esta
opera também com juízos de valor, formulando apreciações de natureza valorativa
ou axiológica sobre os fatos sociais observados.
Já ocorre algo de diverso nos domínios da Ética, notadamente no que se
refere à Moral e ao Direito, onde juízos de valor assumem uma feição diversa em
virtude do caráter de obrigatoriedade conferido ao valor que se quer preservar ou
efetivar.
O legislador não se limita a descrever um fato tal como ele é, à maneira do
sociólogo, mas, baseando-se naquilo que é, determina que algo deva ser, com a
previsão de diversas conseqüências, caso se verifique a ação ou a omissão, a
obediência à norma ou a sua violação.
Essas diferenças vão se refletir na estrutura de qualquer norma de natureza
ética, consoante passamos a expor.
1 “S” quer dizer “sujeito”, e “P” indica o “predicado” da proposição.
32
ESTRUTURA DAS NORMAS ÉTICAS
Toda norma ética expressa um juízo de valor, ao qual se liga uma sanção,
isto é, uma forma de garantir-se a conduta que, em função daquele juízo, é
declarada permitida, determinada ou proibida.
A necessidade de ser prevista uma sanção, para assegurar o adimplemento
do fim visado, já basta para revelar-nos que a norma enuncia algo que deve ser, e
não algo que inexoravelmente tenha de ser.
A previsão de um dever, suscetível de não ser cumprido, põe-nos diante de
um problema que envolve a substância da estrutura normativa. É que toda norma
é formulada no pressuposto essencial da liberdade que tem o seu destinatário de
obedecer ou não aos seus ditames.
Parece paradoxal, mas é fundamentalmente verdadeira a asserção de que
uma forma ética se caracteriza pela possibilidade de sua violação, enquanto que
não passaria pela cabeça de um físico estabelecer uma lei no pressuposto de sua
não-correspondência permanente aos fatos por ele explicados.
Compreende-se a diferença radical quando se pensa que a norma tem por
objeto decisões e atos humanos, sendo inerente a estes a dialética do sim e do
não, o adimplemento da regra, ou a sua transgressão. É essa alternativa da
conduta positiva ou negativa que explica por que a violação da norma não atinge a
sua validade: como elegantemente disse Rosmini, filósofo italiano da segunda
metade do século passado, a norma ética brilha com esplendor insólito no instante
mesmo em que é violada. A regra, embora transgredida e porque transgredida,
continua válida, fixando a responsabilidade do transgressor.
A imperatividade de uma norma ética, ou o seu dever ser não exclui, por
conseguinte, mas antes pressupõe a liberdade daqueles a que ela se destina. É
essa correlação essencial entre o dever e a liberdade que caracteriza o mundo
ético, que é o mundo do dever ser, distinto do mundo do ser, onde não há deveres
a cumprir, mas previsões que têm de ser confirmadas para continuarem sendo
válidas.
A norma ética estrutura-se, pois, como um juízo de dever ser, mas isto
significa que ela estabelece, não apenas uma direção a ser seguida, mas também
33
a medida da conduta considerada lícita ou ilícita. Se há, com efeito, algo que deve
ser, seria absurdo que a norma não explicitasse o que deve ser feito e como se
deve agir.
Temos dito e repetido que as palavras guardam o segredo do seu
significado. Assim acontece com o termo “regra”, que vem do latim regula. Da
palavra latina originária regula derivaram dois vocábulos para o português: “régua”
e “regra”. Que é régua? É uma direção no plano físico. Que é regra? É a diretriz
no plano cultural, no plano espiritual.
Por outro lado, a palavra norma, que nos lembra incontinenti aquilo que é
normal, traduz a previsão de um comportamento que, à luz da escala de valores
dominantes numa sociedade, deve ser normalmente esperado ou querido como
comportamento normal de seus membros.
A norma é, em geral, configurada ou estruturada em função dos
comportamentos normalmente previsíveis do homem comum, de um tipo de
homem dotado de tais ou quais qualidades que o tornam o destinatário razoável
de um preceito de caráter genérico, o que não impede haja normas
complementares que prevejam situações específicas ou particulares, que agravem
ou atenuem as conseqüências contidas na norma principal.
A regra representa, assim, um módulo ou medida da conduta. Cada regra
nos diz até que ponto podemos ir, dentro de que limites podemos situar a nossa
pessoa e a nossa atividade. Qualquer regra, que examinarem, apresentará esta
característica de ser uma delimitação do agir; regra costumeira, de trato social, de
ordem moral ou jurídica, ou religiosa, é sempre medida daquilo que podemos ou
não podemos praticar, do que se deve ou não se deve fazer.
FORMAS DA ATIVIDADE ÉTICA
Esclarecida a natureza das normas éticas, devemos observar quantas
espécies de normas desse tipo são possíveis numa sociedade. A discriminação
dessas espécies de normas poderá ser feita em função das diferentes finalidades
que os homens se propõem.
34
O filósofo alemão contemporâneo Max Scheler contrapôs à Ética formal de
Kant, ou seja, à Ética do dever pelo dever, uma Ética material de valores,
mostrando-nos que toda e qualquer atividade humana, enquanto intencionalmente
dirigida à realização de um valor, deve ser considerada conduta ética. Pode
mesmo ocorrer que o desmedido apego a um valor, em detrimento de outros,
determine aberrações éticas, como é o caso dos homens que tudo sacrificam no
altar do poder, da beleza, da economia etc.
Aceito o prisma scheleriano do conteúdo axiológico das atividades éticas,
poderemos discriminar as espécies fundamentais de normas, em função de alguns
valores cardinais, que, através dos tempos, têm sido considerados o bem visado
pela ação.
Dedicaremos nossa atenção final à Ética entendida em função do bem
individual ou social.
BELO – As atividades relativas à realização do que é belo, que têm como
conseqüência o aparecimento dos juízos estéticos, das normas estéticas. Há
homens que se preocupam, na vida, única e exclusivamente com o problema da
beleza e a transformam no centro do seu interesse. É o caso dos artistas, dos
poetas, dos homens para os quais a vida tem uma nota dominante, que é a nota
estética. Embora haja homens que se preocupam exclusivamente com esse
problema, ele é, de certa maneira, geral. O crescendo da cultura e da civilização
tem como conseqüência tornar partícipes do problema da beleza um número cada
vez maior de homens.
ÚTIL – Todos nós buscamos a realização de bens econômicos para satisfação de
nossas necessidades vitais. O valor daquilo que é “útil-vital” implica um complexo
de atividades humanas no comércio, na indústria, na agricultura. Assim como ao
belo corresponde uma ciência chamada Estética e uma atividade, que são as
artes, também com relação ao útil, existem a Ciência Econômica e uma série de
atividades empenhadas na produção circulação e distribuição das riquezas.
35
Quando a Ética se subordina ao primado das exigências econômicas, ela se
converte em mera superestrutura ideológica, tal como acontece no materialismo
histórico de Marx e Lenin.
SANTO – É o valor ao qual correspondem as religiões e os cultos. Também neste
campo existem homens que só vivem do valor do “santo”, do “sacro”, embora
todos os homens, mais ou menos, sintam a necessidade dessa complementação
transcendente da vida. É o valor do divino norteando o homem na sociedade,
exigindo determinado comportamento por parte dos indivíduos e dos grupos.
Outro valor, que poderíamos lembrar, seria o que se designa a Filosofia, com a
palavra “amor”.
AMOR – Nas suas diferentes espécies e modalidades, desde a simpatia até à
paixão, passando por todas as relações capazes de estabelecer um nexo
emocional entre dois seres. Também este é, um campo vastíssimo, traduzindo um
fim a ser atingido, um valor a ser realizado, intersubjetivamente. Não faltam
tentativas de fundar-se uma Ética de Amor, ou Erótica, de Eros, o deus do amor.
PODER – É o valor determinante da Política, que é a ciência da organização do
poder e a arte de realizar o bem social com o mínimo de sujeição. Há uma Ética
da política ou Ética do poder, assim como homens há para os quais a “razão de
Estado” deve prevalecer sobre todos os valores. A Política acima de tudo, da
religião, da arte, da ciência etc., todas postas a seu serviço, como nos Estados
totalitários.
Lembraríamos, por fim, os que mais de perto nos interessam, os valores do
BEM INDIVIDUAL E BEM COMUM – Todos os homens procuram alcançar o que
lhes parecer ser o “bem” ou a felicidade. O fim que se indica com a palavra “bem”
corresponde a várias formas de conduta que compõem, em conjunto, o domínio
da Ética. Esta, enquanto ordenação teórico-prática dos comportamentos em geral,
na medida e enquanto se destinam à realização de um bem, pode ser vista sob
dois prismas fundamentais:
36
a) o do valor da subjetividade do autor da ação;
b) o do valor da coletividade em que o indivíduo atua.
No primeiro caso, o ato é apreciado em função da intencionalidade do
agente, o qual visa, antes de mais nada, à plenitude de sua subjetividade, para
que esta se realize como individualidade autônoma, isto é, como pessoa. A Ética,
vista sob esse ângulo, que se verticaliza na consciência individual, toma o nome
de Moral, que, desse modo, pode ser considerada a Ética da subjetividade, ou do
bem da pessoa.
Quando, ao contrário, a ação ou conduta é analisada em função de suas
relações intersubjetivas, implicando a existência de um bem social, que supera o
valor do bem de cada um, numa trama de valorações objetivas, a Ética assume
duas expressões distintas: a da Moral Social (Costumes e Convenções sociais); e
a do Direito.
Bem pessoal é aquele que o indivíduo se põe como seu dever, realizando-o
enquanto indivíduo. Assim, Fulano pode ser temperante sem precisar de quem
quer que seja. A virtude da temperança realiza-se no indivíduo e para o próprio
indivíduo. No entanto, ninguém poderá ser justo para consigo mesmo. A Justiça é,
sempre, um laço entre um homem e outros homens, como bem do indivíduo,
enquanto membro da sociedade, e, concomitantemente, como bem do todo
coletivo. Por conseguinte, o bem social situa-se em outro campo da ação humana,
que chamamos de Direito.
O assunto, porém, exige uma ou mais aulas especiais. Antes, porém, de
passarmos à analise de outros aspectos do problema ético, cumpre-nos
esclarecer que, se o valor da subjetividade é o fundamento da Moral, isto não
significa que o indivíduo como tal seja a medida dos atos morais. Quando os
indivíduos se respeitam mutuamente, põem-se uns perante os outros como
pessoas, só se realizando plenamente a subjetividade de cada um em uma
relação necessária de intersubjetividade. É por essa razão que a Moral, visando
ao bem da pessoa, visa, implicitamente, ao bem social, o que demonstra a
unidade da vida ética, muito embora esta possa ser vista sob diversos prismas.
37
CAPÍTULO V
DIREITO E MORAL
SUMÁRIO: A teoria do mínimo ético. Do cumprimento das regras
sociais. Direito e coação. Direito e heteronomia. Bilateralidade
atributiva. Breves dados históricos. Confronto com as normas de trato
social.
Encontramo-nos, agora, diante de um dos problemas mais difíceis e
também dos mais belos da Filosofia Jurídica, o da diferença entre a Moral e o
Direito. Não pretendo, num curso de Introdução ao Estudo do Direito, esgotar o
assunto mas, apenas, dar alguns elementos necessários para que os senhores
não confundam os dois conceitos, sem, todavia, separá-los. Nesta matéria
devemos lembrar-nos de que a verdade, muitas vezes, consiste em distinguir as
coisas, sem separá-las. Ao homem afoito e de pouca cultura basta perceber uma
diferença entre dois seres para, imediatamente, extremá-los um do outro, mas os
mais experientes sabem a arte de distinguir sem separar, a não ser que haja
razões essenciais que justifiquem a contraposição.
Muitas são as teorias sobre as relações entre o Direito e a Moral, mas é
possível limitarmo-nos a alguns pontos de referência essenciais, inclusive pelo
papel que desempenharam no processo histórico1.
A TEORIA DO MÍNIMO ÉTICO
Em primeiro lugar, recordemos a teoria do “mínimo ético”, já exposta de
certa maneira pelo filósofo inglês Jeremias Bentham e depois desenvolvida por
vários autores, entre os quais um grande jurista e politicólogo alemão do fim do
século passado e do princípio deste, Georg Jellinek.
A teoria do “mínimo ético” consiste em dizer que o Direito representa
apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa
sobreviver. Como nem todos podem ou querem realizar de maneira espontânea
as obrigações morais, é indispensável armar de força certos preceitos éticos, para
1 Para maiores desenvolvimentos, vide a nossa Filosofia do Direito, 13.” ed., cit., Título XI, págs.
621 e segs.
38
que a sociedade não soçobre. A Moral, em regra, dizem os adeptos dessa
doutrina, é cumprida de maneira espontânea, mas como as violações são
inevitáveis, é indispensável que se impeça, com mais vigor e rigor, a transgressão
dos dispositivos que a comunidade considerar indispensável à paz social.
Assim sendo, o Direito não é algo de diverso da Moral, mas é uma parte
desta, armada de garantias específicas.
A teoria do “mínimo ético” pode ser reproduzida através da imagem de dois
círculos concêntricos, sendo o círculo maior o da Moral, e o círculo menor o do
Direito. Haveria, portanto, um campo de ação comum a ambos, sendo o Direito
envolvido pela Moral. Poderíamos dizer, de acordo com essa imagem, que “tudo o
que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral é jurídico”.
São aceitáveis os princípios dessa doutrina? Será certo dizer que todas as
normas jurídicas se contêm no plano moral? Será mesmo que o bem social
sempre se realiza com plena satisfação dos valores da subjetividade, do bem
pessoal de cada um?
Comecemos por observar que fora da Moral existe o “imoral”, mas existe
também que é apenas “amoral”, ou indiferente à Moral. Uma regra de trânsito,
como, por exemplo, aquela que exige que os veículos obedeçam à mão direita, é
uma norma jurídica. Se amanhã, o legislador, obedecendo a imperativos técnicos,
optar pela mão esquerda, poderá essa decisão influir no campo moral?
Evidentemente que não.
Há um artigo no Código de Processo Civil, segundo o qual o réu, citado
para a ação, deve oferecer a sua contrariedade no prazo de 15 dias. E por que
não de 10, de 20, ou de 30? Se assim fosse, porém, influiria isso na vida moral?
Também não.
Outro preceito do Código Civil estabelece que os contratos eivados de erro,
dolo ou coação, só podem ser anulados dentro do prazo de 4 anos. Por que não
no prazo de 5 anos ou de 3 anos e meio? São razões puramente técnicas, de
utilidade social, que resolvem muitos problemas de caráter jurídico. Não é exato,
portanto, dizer que tudo o que se passa no mundo jurídico seja ditado por motivos
de ordem moral.
39
Além disso, existem atos juridicamente lícitos que não o são do ponto de
vista moral. Lembre-se o exemplo de uma sociedade comercial de dois sócios, na
qual um deles se dedica, de corpo e alma, aos objetivos da empresa, enquanto
que o outro repousa no trabalho alheio, prestando, de longe em longe, uma rala
colaboração para fazer jus aos lucros sociais. Se o contrato social estabelecer
para cada sócio uma compensação igual, ambos receberão o mesmo quinhão. E
eu pergunto: é moral? Há, portanto, um campo da Moral que não se confunde com
o campo jurídico. O Direito, infelizmente, tutela muita coisa que não é moral.
Embora possa provocar nossa revolta, tal fato não pode ficar no esquecimento.
Muitas relações amorais ou imorais realizam-se à sombra da lei, crescendo e se
desenvolvendo em meios de obstá-las. Existe, porém, o desejo incoercível de que
o Direito tutele só o “lícito moral”, mas, por mais que os homens se esforcem
nesse sentido, apesar de todas as providências cabíveis, sempre permanece um
resíduo de imoral tutelado pelo Direito.
Há, pois, que distinguir um campo de Direito que, se não é imoral, é pelo
menos amoral, o que induz a representar o Direito e a Moral como dois círculos
secantes. Podemos dizer que dessas duas representações – de dois círculos
concêntricos e de dois círculos secantes, – a primeira corresponde à concepção
ideal, e a segunda, à concepção real, ou pragmática, das relações entre o Direito
e a Moral.
As representações gráficas têm vantagens e desvantagens. Entre as
desvantagens está a de se simplificar excessivamente os problemas. Servem, no
entanto, no início dos estudos, como pontos de referência para ulteriores
pesquisas.
DO CUMPRIMENTO DAS REGRAS SOCIAIS
Se analisarmos os fatos que se passam em geral na sociedade ou os que
nos cercam em nossa vida cotidiana, verificamos que regras sociais há que
cumprimos de maneira espontânea. Outras regras existem, todavia, que os
homens só cumprem em determinadas ocasiões, porque a tal são coagidos. Há
40
pois uma distinção a fazer-se quanto ao cumprimento espontâneo e o obrigatório
ou forçado das regras sociais.
A qual dessas categorias pertencerá a Moral? Podemos dizer que a Moral é
o mundo da conduta espontânea, do comportamento que encontra em si próprio a
sua razão de existir. O ato moral implica a adesão do espírito ao conteúdo da
regra. Só temos, na verdade, Moral autêntica quando o indivíduo, por um
movimento espiritual espontâneo realiza o ato enunciado pela norma. Não é
possível conceber-se o ato moral forçado, fruto da força ou da coação. Ninguém
pode ser bom pela violência. Só é possível praticar o bem, no sentido próprio,
quando ele nos atrai por aquilo que vale por si mesmo, e não pela interferência de
terceiros, pela força que venha consagrar a utilidade ou a conveniência de uma
atitude. Conquanto haja reparos a ser feitos à Ética de Kant, pelo seu excessivo
formalismo, pretendendo rigorosamente que se cumpra “o dever pelo dever”, não
resta dúvida que ele vislumbrou uma verdade essencial quando pôs em evidência
a espontaneidade do ato moral.
A Moral, para realizar-se autenticamente, deve contar com a adesão dos
obrigados. Quem pratica um ato, consciente da sua moralidade, já aderiu ao
mandamento a que obedece. Se respeito meu pai, pratico um ato na plena
convicção da sua intrínseca valia, coincidindo o ditame de minha consciência com
o conteúdo da regra moral. Acontecerá o mesmo com o Direito? Haverá, sempre,
uma adequação entre a minha maneira de pensar e agir e o fim que, em abstrato,
a regra jurídica prescreve? No plano da Moral, já o dissemos, essa coincidência é
essencial, mas o mesmo não ocorre no mundo jurídico.
O exemplo que vou dar esclarece o assunto. É um exemplo trazido de
minha experiência profissional, e que pode repetir-se com qualquer dos senhores,
nesta vida cheia de imprevistos e de dramas que nos deixam perplexos. Certa
vez, fui procurado por um casal de velhos – de quase 80 anos – que me expôs a
sua situação de insuficiência econômica, carecedores que estavam dos mais
elementares meios de subsistência. Como diziam os romanos, na sua
compreensão realística da vida, a velhice é a pior das doenças. Pois bem, o casal
de velhos revelou-me que tinha um filho, um industrial de grande capacidade
41
econômica, possuidor de várias fábricas e estabelecimentos comerciais e que,
entretanto, não admitia que seus prepostos ou a esposa prestassem qualquer
auxilio a seus pais. Ora, o Código Civil brasileiro, como o de todas as nações
civilizadas, consagra o princípio da solidariedade econômica entre os cônjuges e
os parentes. Nesse sentido, os descendentes não podem faltar à assistência
devida aos pais e avós, toda a vez que estes se encontrem em dificuldades
econômicas, por motivos que não possam ser superados. É, evidentemente, um
preceito de ordem jurídica e, ao mesmo tempo, de ordem moral. É o princípio de
solidariedade humana, ou melhor, de solidariedade familiar que dita a regra
jurídica consagrada nos códigos. Se a lei civil estabelece a obrigação de prestar
alimentos, por sua vez, o Código de Processo assegura aos necessitados
remédios indispensáveis à realização desse desideratum, graças à interferência
do juiz.
Admitamos – como no caso concreto que me foi dado apreciar como
advogado – que o filho não ceda a qualquer razão e se recuse, obstinadamente, a
prestar assistência a seus genitores. Não restará aos pais senão uma via – a de
propor uma ação que se chama “ação de alimentos”. Feita a prova, com a
demonstração de carência econômica dos interessados e da abastança do filho,
para pagar a quantia arbitrada pelos peritos, o juiz proferiu a sentença,
condenando o descendente a pagar uma prestação alimentícia mensal. Essa
sentença, depois da apelação, passou em julgado, isto é, tornou-se uma sentença
da qual não cabia qualquer recurso. Sentença passada em julgado é aquela
contra a qual não é possível mais recorrer; é uma sentença que se tornou
exeqüível, por terem os órgãos do Poder Judiciário se pronunciado de maneira
definitiva sobre a lide. Tínhamos uma sentença e podíamos, com ela, promover a
execução e até a penhora dos bens do filho, a fim de garantir o que tinha sido
decidido pelo juiz.
O filho passou a efetuar, mensalmente, o pagamento da pensão, mas com
revolta: vencido, mas não convencido. Eu lhes pergunto: Até que ponto a regra
moral coexistiu, nesse caso, com a regra jurídica? Até que ponto o pagamento se
tornou moral? A regra moral de assistência aos ascendentes coexistiu com a regra
42
jurídica até o momento em que se tornou indeclinável o recurso à força, através do
Judiciário. No momento em que os pais compareceram ao pretório para propor a
ação, visando à prestação compulsória do dever filial, a partir desse instante a
regra moral não acompanhou mais a regra jurídica, mas entrou em eclipse por
falta de apoio no plano da consciência do obrigado.
A Moral é incompatível com a violência, com a força, ou seja, com a
coação, mesmo quando a força se manifesta juridicamente organizada. O filho
que, mensalmente, paga a prestação alimentícia por força do imperativo da
sentença, só praticará um ato moral no dia em que se convencer de que não está
cumprindo uma obrigação, mas praticando um ato que o enriquece
espiritualmente, com tanto mais valia quanto menos pesar nele o cálculo dos
interesses.
DIREITO E COAÇÃO
O cumprimento obrigatório da sentença satisfaz ao mundo jurídico, mas
continua alheio ao campo propriamente moral. Isto nos demonstra que existe,
entre o Direito e a Moral, uma diferença básica, que podemos indicar com esta
expressão: a Moral é incoercível e o Direito é coercível. O que distingue o Direito
da Moral, portanto, é a coercibilidade. Coercibilidade é uma expressão técnica que
serve para mostrar a plena compatibilidade que existe entre o Direito e a força.
Há três posições diferentes em face da relação entre o Direito e a força:
uma teoria imbuída de eticismo absoluto, que sustenta que o Direito nada tem a
ver com a força, não surgindo, nem se realizando graças à intervenção do poder
público. Haveria, segundo os adeptos dessa doutrina, no tocante ao Direito, a
mesma incompatibilidade que há com a Moral. Essa teoria, como se vê, idealiza o
mundo jurídico, perdendo de vista o que efetivamente acontece na sociedade.
Em campo diametralmente oposto, temos a teoria que vê no Direito uma
efetiva expressão da força. Para Jhering, um dos maio-res jurisconsultos da
passada centúria, o Direito se reduz a “norma + coação”, no que era seguido, com
entusiasmo, por Tobias Barreto, ao defini-lo como “a organização da força”. Ficou
43
famoso o seu temerário confronto do direito à “bucha do canhão”, o que se deve
atribuir aos ímpetos polêmicos que arrebatavam aquele grande espírito.
Segundo essa concepção, poderíamos definir o Direito como sendo a
ordenação coercitiva da conduta humana. Esta é definição incisiva do Direito dada
pelo grande mestre contemporâneo, Hans Kelsen, que, com mais de noventa
anos, sempre se manteve fiel aos seus princípios de normativismo estrito.
A título de ilustração, cabe lembrar que Jhering simbolizava a atividade
jurídica com uma espada e uma balança: o Direito não seria o equilíbrio da
balança se não fosse garantido pela força da espada, consoante é exposto em
seu famoso livro A Luta pelo Direito, que a minha geração lia com entusiasmo e
que é pena ande tão esquecido, tantas são as lições magistrais que encerra sobre
a dignidade das tarefas do jurista.
A teoria da coação, se logrou larga adesão na época do predomínio
positivista, foi depois alvo de críticas irrespondíveis, a começar pela observação
fundamental de que, via de regra, há o cumprimento espontâneo do Direito. Para
milhares de contratos que se executam espontaneamente, bem reduzido é o
número dos que geram conflitos sujeitos a decisão judicial. Não se pode, pois,
definir a realidade jurídica em função do que excepcionalmente acontece.
Por outro lado, a coação já é, em si mesma, um conceito jurídico, dando-se
a interferência da força em virtude da norma que a prevê, a qual, por sua vez,
pressupõe outra manifestação de força e, por conseguinte, outra norma superior,
e, assim sucessivamente, até se chegar a uma norma pura ou à pura coação… Foi
essa objeção que Hans Kelsen procurou superar com a sua teoria da “norma
fundamental”, que analisaremos numa de nossas aulas.
O que há, porém, de verdade na doutrina da coação é a verificação da
compatibilidade do Direito com a força, o que deu lugar ao aparecimento de uma
teoria que põe o problema em termos mais rigorosos: é a teoria da coercibilidade,
segundo a qual o Direito é a ordenação coercível da conduta humana.
A diferença está apenas em um adjetivo, mas é fundamental. Para uns, a
força está sempre presente no mundo jurídico, é imanente a ele, e, portanto,
inseparável dele. Para outros, a coação no Direito não é efetiva, mas potencial,
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representando como que uma segunda linha de garantia da execução da norma,
quando se revelam insuficientes os motivos que, comumente, levam os
interessados a cumpri-la.
A teoria da coercibilidade, certa enquanto revela a possibilidade de haver
execuções jurídicas compulsórias, sem que isso comprometa a sua juridicidade
deixa-nos, porém, no vestíbulo do problema, pois surge logo a seguinte pergunta:
“Que é que explica essa compatibilidade entre o Direito e a força?”.
DIREITO E HETERONOMIA
Pelos exemplos dados até agora já se vê que podemos obedecer ou não às
normas de direito das quais somos destinatários. Elas são postas pelo legislador,
pelos juízes, pelos usos e costumes, sempre por terceiros, podendo coincidir ou
não os seus mandamentos com as convicções que temos sobre o assunto.
Podemos criticar as leis, das quais dissentimos, mas devemos agir de
conformidade com elas, mesmo sem lhes dar a adesão de nosso espírito. Isto
significa que elas valem objetivamente, independentemente, e a despeito da
opinião e do querer dos obrigados.
Essa validade objetiva e transpessoal das normas jurídicas, as quais se
põem, por assim dizer, acima das pretensões dos sujeitos de uma relação,
superando-as na estrutura de um querer irredutível ao querer dos destinatários, e
o que se denomina heteronomia. Foi Kant o primeiro pensador a trazer à luz essa
nota diferenciadora, afirmando ser a Moral autônoma, e o Direito heterônomo.
Nem todos pagam imposto de boa vontade. No entanto, o Estado não pretende
que, ao ser pago um tributo, se faça com um sorriso nos lábios; a ele, basta que o
pagamento seja feito nas épocas previstas. Nada mais absurdo e monstruoso do
que a idealização de um homo jurídicus, modelado segundo o Direito e destinado
a praticá-lo com rigorosa fidelidade às estruturas normativas.
Há, no Direito, um caráter de “alheiedade” do indivíduo, com relação à
regra. Dizemos, então, que o Direito é heterônomo, visto ser posto por terceiros
aquilo que juridicamente somos obrigados a cumprir.
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Dirão os senhores que os terceiros são o Estado e que o Estado é
constituído pela sociedade dos homens, de maneira que, em última análise,
estamos nos governando a nós mesmos. É uma satisfação poder pensar que nós
mesmos estamos nos governando e ditando regras a que devemos obedecer.
Nem sempre, contudo, existe essa aquiescência, porque posso estar contra a lei,
em espírito, mas ser obrigado a obedecê-la. A lei pode ser injusta e iníqua mas,
enquanto não for revogada, ou não cair em manifesto desuso, obriga e se impõe
contra a nossa vontade, o que não impede que se deva procurar neutralizar ou
atenuar os efeitos do “direito injusto”, graças a processos de interpretação e
aplicação que teremos a oportunidade de analisar. É inegável, porém, que, em
princípio, o direito obriga, sendo o característico da heteronomia bem mais
profundo do que à primeira vista parece. Daí podermos dar mais um passo e dizer
que o Direito é a ordenação heterônoma e coercível da conduta humana.
Surge agora esta pergunta: O Direito é coercível e heterônomo como razão
última, ou assim se apresenta em virtude de um outro requisito, este sim
essencial?
BILATERALIDADE ATRIBUTIVA
Durante muito tempo, os juristas, sob a influência da Escola Positivista,
contentaram-se com a apresentação do problema em termos de coercitividade;
em seguida, renunciaram à “teoria da coação em ato”, para aceitá-la “em
potência”, ou seja, depois de verem o Direito como coação efetiva, passaram a
apreciá-lo como possibilidade de coação mas nunca abandonaram o elemento
coercitivo. Este permaneceu como critério último na determinação do Direito.
Podemos dizer que o pensamento jurídico contemporâneo, com mais profundeza,
não se contenta nem mesmo com o conceito de coação potencial, procurando
penetrar mais adentro na experiência jurídica, para descobrir a nota distintiva
essencial do Direito. Esta é a nosso ver a bilateralidade atributiva.
A teoria da bilateralidade atributiva, a que tenho dado desenvolvimentos
próprios, corresponde à posição de outros jusfilósofos contemporâneos. Assim,
por exemplo, Del Vecchio diz que a Moral se distingue do Direito pelo elemento de
46
“bilateralidade”, “alteridade” ou “intersubjetividade”, dando a esses termos um
sentido talvez equivalente ao que enunciamos com o acréscimo do adjetivo
“atributivo”. Um jurista polonês integrado na cultura russa do século passado,
Petrazinski, emprega a expressão “imperatividade atributiva”. Por outro lado, não
podemos olvidar os antecedentes da doutrina já contidos nos conceitos de relação
de Aristóteles, de alteritas de Santo Tomás, de exterioridade desenvolvida por
Christian Thomasius, na passagem do século XVII para o XVIII; e no de
heteronomia exposto por Kant, ou no de querer entrelaçante de Stammler etc.2.
Procurando caracterizar o que vem a ser “imperatividade atributiva”, Petrazinski
dá-nos um exemplo, que reproduzimos com algumas alterações.
Imaginemos que um homem abastado, ao sair de sua casa, se encontre
com um velho amigo de infância que, levado à miséria, lhe solicita um auxílio de
cinco rublos, recebendo uma recusa formal e até mesmo violenta. Em seguida, a
mesma pessoa toma um coche para ir a determinado lugar. Ao terminar o
percurso, o cocheiro cobra cinco rublos. A diferença de situação é muito grande
entre o cocheiro que cobra cinco rublos e o amigo que solicitava a mesma
importância.
No caso do amigo, que pedia uma esmola, havia um nexo de possível
solidariedade humana, de caridade, mas, no caso do cocheiro, temos um nexo de
crédito resultante da prestação de um serviço. No primeiro caso, não há laço de
exigibilidade, o que não acontece no segundo, pois o cocheiro pode exigir o
pagamento da tarifa. Eis aí ilustrado como o Direito implica uma relação entre
duas ou mais pessoas, segundo certa ordem objetiva de exigibilidade.
Pelos estudos que temos desenvolvido sobre a matéria pensamos que há
bilateralidade atributiva quando duas ou mais pessoas se relacionam segundo
uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente
algo. Quando um fato social apresenta esse tipo de relacionamento dizemos que
ele é jurídico. Onde não existe proporção no pretender, no exigir ou no fazer não
há Direito, como inexiste este se não houver garantia específica para tais atos.
2 Sobre essas perspectivas históricas, essenciais à plena compreensão do assunto, vide parágrafo
seguinte, e o que escrevemos em Filosofia do Direito, cit., Título XI.
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Bilateralidade atributiva é, pois, uma proporção intersubjetiva, em função da
qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir, ou a fazer,
garantidamente, algo.
Esse conceito desdobra-se nos seguintes elementos complementares:
a) sem relação que una duas ou mais pessoas não há Direito (bilateralidade em
sentido social, como intersubjetividade);
b) para que haja Direito é indispensável que a relação entre os sujeitos seja
objetiva, isto é, insuscetível de ser reduzida, unilateralmente, a qualquer dos
sujeitos da relação (bilateralidade em sentido axiológico);
c) da proporção estabelecida deve resultar a atribuição garantida de uma
pretensão ou ação, que podem se limitar aos sujeitos da relação ou estender-se a
terceiros (atributividade).
É claro que poderíamos empregar outras expressões para designar a nota
distintiva do Direito, como, por exemplo, proporção atributiva, mas o essencial é
compreender a substância do assunto, captando-lhe o conceito em sua
concreção.
Não serão demais algumas considerações complementares, inclusive para
desfazer alguns equívocos que rondam a matéria.
Num contrato de corretagem, por exemplo, o proprietário e o intermediário
se relacionam para efetuar a venda de um prédio, ficando o corretor autorizado a
prestar o seu serviço com a garantia de uma retribuição proporcional ao preço
avençado. Nesse, como nos demais enlaces contratuais, nenhuma das pessoas
deve ficar à mercê da outra, pois a ação de ambas está subordinada a uma
proporção transpessoal ou objetiva, que se resolve numa relação de prestações e
contraprestações recíprocas.
Não é, porém, essencial que a proporção objetiva siga o modelo da
reciprocidade própria das relações contratuais. Basta que a relação se estruture
segundo uma proporção que exclua o arbítrio (que é o não-Direito) e que
represente a concretização de interesses legítimos, segundo critérios de
razoabilidade variáveis em função da natureza e finalidade do enlace. Pode, por
48
exemplo, um negócio ser aleatório, assumindo uma das partes, deliberadamente,
o risco da operação acordada.
Nem se diga que o conceito de bilateralidade ou proporção atributiva só é
aplicável no plano das relações privadas, não sendo conforme com a estrutura das
relações entre os particulares e o Estado, ou para caracterizar, por exemplo, as
regras de organização de um serviço público. Dir-se-á que nesta espécie de
normas não há nem proporção, nem atributividade, mas é preciso não empregar
aquelas palavras em sentido contratualista. Na realidade, quando se institui um
órgão do Estado ou mesmo uma sociedade particular, é inerente ao ato de
organização a atribuição de competências para que os agentes ou representantes
do órgão possam agir segundo o quadro objetivo configurado na lei. Há, por
conseguinte, sempre proporção e atributividade.
BREVES DADOS HISTÓRICOS
Houve, desde a mais remota antiguidade, pelo menos a intuição de que o
problema do Direito não se confunde com o da Moral. Desde os pré-socráticos até
os estóicos, passando pelos ensinamentos de Platão e de Aristóteles, as relações
entre a Moral e o Direito são focalizadas sob diversos ângulos. Alguns deles
coincidem com os que ainda são lembrados atualmente, mas não se pode dizer
que tenha havido na Grécia o deliberado propósito de apresentar notas distintivas
entre o mundo moral e o jurídico. O mesmo se pode dizer quanto aos
jurisconsultos romanos, muito embora já observassem que non omnis quod licet
honestum est, ou que cogitationis nemo poenam patitur. Estas duas afirmações já
demonstram que os juristas romanos vislumbravam a existência de um problema a
ser resolvido, sobre a distinção entre o Direito e a Moral. Daí terem dito que
“ninguém sofre pena pelo simples fato de pensar” e, por outro lado, que “nem tudo
que é lícito é honesto”.
Esse problema, percebido, pois, desde a antiguidade clássica, adquiriu um
sentido mais vital ou pragmático – digamos assim – na época moderna,
especialmente depois dos conflitos surgidos entre a Igreja Católica e os vários
cultos protestantes, e as dissensões que entre estes eclodiram.
49
Com o advento da Reforma luterana ou calvinista, travaram-se lutas
violentíssimas o mundo europeu, com reflexos até mesmo no continente
americano. Os protestantes dividiram-se em diversas correntes, de maneira que
não havia conflito apenas entre a Igreja Católica e os protestantes, mas dos
próprios protestantes entre si. Cada chefe de Estado passou a se atribuir o direito
de intervir na vida particular dos cidadãos, a fim de indagar das suas convicções
religiosas: uns queriam que seus súditos fossem católicos, outros que fossem
protestantes. Houve, então, a necessidade de uma delimitação clara da zona de
interferência do poder publico – o que só seria possível através de uma distinção
entre o mundo jurídico e o mundo moral e religioso. Aí o problema adquiriu um
significado mais profundo e urgente, provocando o pronunciamento de vários
mestres.
O mais notável dos estudiosos desta matéria foi o jurista alemão
Thomasius, que escreveu a sua obra mais importante entre 1700 e 1705. Esse
mestre, que gozava da admiração de outro grande vulto da época, Wilhelm
Leibniz, voltou a sua atenção para o problema, procurando apresentar uma
diferenciação prática entre Direito e a Moral, de maneira a tutelar a liberdade de
pensamento e de consciência, com uma delimitação entre o que chamou “foro
íntimo” e “foro externo”.
O Direito, dizia ele, só deve cuidar da ação humana depois de
exteriorizada; a Moral, ao contrário, diz respeito àquilo que se processa no plano
da consciência. Enquanto uma ação se desenrola no foro íntimo, ninguém pode
interferir e obrigar a fazer ou deixar de fazer. O Direito, por conseguinte, rege as
ações exteriores do homem, ao passo que as ações íntimas pertencem ao
domínio especial da Moral. A Moral e o Direito ficavam assim totalmente
separados, sem possibilidade de invasão recíproca nos seus campos, de maneira
que a liberdade de pensamento e de consciência recebia, através de doutrina
engenhosa, uma tutela necessária.
A doutrina de Thomasius teve grande repercussão porque correspondia, de
certa forma, a uma aspiração da época. Basta lembrar que Kant aceitou a teoria
50
de Thomasius, como quase todos os seus contemporâneos. Qual a resultante
dessa teoria?
Se o Direito só cuida das ações exteriorizadas, somente aquilo que se
projeta no mundo exterior fica sujeito à possível intervenção do Poder Público.
Nenhum cidadão pode ser processado pelo simples fato de pensar, nem pode ser
obrigado a ter esta ou aquela crença. A coação somente surge no momento em
que a atividade do indivíduo se projeta sobre a dos demais indivíduos a ponto de
causar-lhes dano.
Será exato dizer-se que o Direito só cuida daquilo que se exterioriza, não
levando em conta o mundo da intenção? Em primeiro lugar, não é possível
separar a ação dos homens em dois campos estanques. Ela é sempre una e
concreta, embora possa ser examinada em dois momentos, sem se decompor,
propriamente, em partes. Por outro lado, se é certo que o Direito só aprecia a ação
enquanto projetada no plano social, não é menos certo que o jurista deve apreciar
o mundo das intenções. O foro íntimo é de suma importância na Ciência Jurídica.
No Direito Penal, por exemplo, fazemos uma distinção básica entre crimes dolosos
e culposos. Dolosos são as infrações da lei penal que resultam da intenção
propositada do agente. O indivíduo que saca de uma arma com intenção de ferir
seu desafeto, pratica um crime doloso, porque o ato é uma concretização de sua
vontade consciente. O crime culposo, ao contrário, é aquele pelo qual alguém
causa dano, mas sem intenção de praticá-lo. Se uma pessoa atropela um
transeunte, matando-o ou ferindo-o, evidentemente existe uma infração da lei
penal, desacompanhada, no entanto, de intenção dolosa; é um crime culposo. Se
ficasse provado, porém, que o atropelamento se deu intencionalmente, e que o
automóvel foi o instrumento de um desígnio criminoso, teríamos um crime doloso.
Estão vendo, portanto, que na esfera penal e necessário levar em consideração o
elemento íntimo ou intencional.
De maneira idêntica, podemos dizer que o Direito Civil não prescinde do
elemento intencional. Há um dispositivo expresso do Código Civil que declara que
os contratos devem ser interpretados segundo a intenção das partes contratantes.
No mesmo Código Civil, verificamos que os atos jurídicos podem ser anulados por
51
dolo, erro, coação ou fraude. Quando um contrato, por exemplo, resulta de engano
a respeito da substância do negócio, é possível torná-lo nulo. Há atos jurídicos
nulos de pleno direito (os que já nascem eivados de nulidade insanável) e há atos
jurídicos suscetíveis de anulação. A anulabilidade dos atos jurídicos está ligada,
em grande parte, ao exame da intenção.
Deve-se, todavia, observar que a doutrina da “exterioridade do Direito”
contém um elemento de verdade, no sentido de que pressupõe um fato inegável,
por nós já salientado, isto é, que o Direito jamais cuida do homem isolado, em si e
de per si, mas sim do homem enquanto membro da comunidade, em suas
relações “intersubjetivas”, até mesmo quando o que se quer tutelar é a
subjetividade individual. Estão vendo que a teoria de Thomasius nos reconduz à
doutrina da “bilateral idade atributiva”, que, como já dissemos, lança suas raízes
na cultura clássica.
Na história da Jurisprudência, podemos dizer que a apreciação desse dado
fundamental já surge entre os filósofos gregos e especialmente por obra de
Aristóteles, ao tratar, na sua obra intitulada Ética a Ncômaco, do problema da
Justiça. Aristóteles foi o primeiro a vislumbrar, no fenômeno jurídico, o elemento
da proporcionalidade. Depois dele encontramos a obra de Santo Agostinho e,
Finalmente, a de Tomás de Aquino que, escrevendo sobre Teologia, deixaram
páginas admiráveis sobre o problema da Lei e da Justiça.
A propósito da virtude Justiça, afirmava que ela se diferencia das outras por
ser proportio ad alterum, uma virtude objetiva, porquanto sempre implica a relação
de dois sujeitos. É própria do Direito essa nota de “alteridade”. Alteritas, de alter,
outro, é uma expressão bastante significativa. O Direito é sempre “alteridade” e se
realiza sempre através de dois ou mais indivíduos, segundo proporção. Falava
Tomás de Aquino em alteritas, que, segundo Del Vecchio, corresponde,
exatamente, à moderna palavra “bilateralidade”.
No mundo moderno, outros pensadores renovaram o assunto como, por
exemplo, Grócio, que foi o consolidador do Direito Internacional e, depois, Leibniz,
que, além de grande matemático, cientista e filósofo, deixou escritos notáveis
sobre problemas jurídicos. No mundo contemporâneo, especialmente a partir das
52
últimas décadas do século passado, é que o conceito voltou a adquirir nova
profundidade, prevalecendo como critério distintivo fundamental, como resulta da
doutrina de Rudolf Stammler sobre o Direito como “forma de querer entrelaçante,
heterônomo e inviolável”.
CONFRONTO COM AS NORMAS DE TRATO SOCIAL
Há, na sociedade, outra categoria de regras que são seguidas por força do
costume, de hábitos consagrados, ou, como impropriamente se diz, em virtude de
“convenção social”. São as normas de trato social, que vão desde as regras mais
elementares do decoro às mais refinadas formas de etiqueta e de cortesia.
Esse tipo de regras, que alguns autores, como Radbruch e Del Vecchio,
contestam possam constituir um tertium genus, ocupam, por assim dizer, uma
situação intermédia entre a Moral e o Direito. Ninguém pode ser coagido, por
exemplo, a ser cortês, pois é inconcebível a cortesia forçada, como seria uma
saudação feita sob ameaça de agressão. Nesse ponto, as normas “convencionais”
compartilham da espontaneidade e da incoercibilidade próprias da Moral. Quem
desatende a essa categoria de regras sofre uma sanção social, sem dúvida, tal
como a censura ou o desprezo público, mas não pode ser coagido a praticá-las.
Por outro lado, não é indispensável que os atos de bom tom ou de
cavalheirismo sejam praticados com sinceridade. Atende às regras de etiqueta
tanto o homem desinteressado como quem se serve delas com intenções
malévolas. Aliás, é o hipócrita quem mais se esmera na prática de atos
blandiciosos.
Para que seja atendida uma norma de trato social basta, com efeito, a
adequação exterior do ato à regra, sendo dispensável aderir a seu conteúdo:
nesse ponto, as regras de trato social coincidem com o Direito, no que este possui
de heteronomia.
Por outro lado, as regras costumeiras são bilaterais, tanto como as da
Moral, mas não são bilateral-atributivas, razão pela qual ninguém pode exigir que
o saúdem respeitosamente: a atributividade surge tão-somente quando o costume
se converte em norma jurídica consuetudinária, ou então quando o ato de cortesia
53
se transforma em obrigação jurídica, como se dá com a saudação do militar ao
superior hierárquico, que passa ser “continência”.
À vista do exposto, podemos resumir as notas distintivas dos três campos
da Ética, que acabamos de analisar, compondo o seguinte quadro:
Coercibilidade Heteronomia Bilateralidade Atributividade
MORAL – - + -
DIREITO + + + +
COSTUME – + + -
54
CAPÍTULO VI
CONCEITO DE DIREITO – SUA ESTRUTURA TRIDIMENSIONAL
SUMÁRIO: A intuição de Dante. Acepções da palavra “Direito”.
Estrutura tridimensional do Direito.
O estudo das diferenças e correlações entre a Moral e o Direito já nos
permite dar uma noção do Direito, sem que nos mova a preocupação de definir.
Resumindo o já exposto podemos dizer que o Direito é a ordenação bilateral
atributiva das relações sociais, na medida do bem comum.
Todas as regras sociais ordenam a conduta, tanto as morais como as
jurídicas e as convencionais ou de trato social. A maneira, porém, dessa
ordenação difere de uma para outra. É próprio do Direito ordenar a conduta de
maneira bilateral e atributiva, ou seja, estabelecendo relações de exigibilidade
segundo uma proporção objetiva. O Direito, porém, não visa a ordenar as relações
dos indivíduos entre si para satisfação apenas dos indivíduos, mas, ao contrário,
para realizar uma convivência ordenada, o que se traduz na expressão: “bem
comum”. O bem comum não é a soma dos bens individuais, nem a média do bem
de todos; o bem comum, a rigor, é a ordenação daquilo que cada homem pode
realizar sem prejuízo do bem alheio, uma composição harmônica do bem de cada
um com o bem de todos. Modernamente, o bem comum tem sido visto, – e este é,
no fundo, o ensinamento do jusfilósofo italiano Luigi Bagolini, – como uma
estrutura social na qual sejam possíveis formas de participação e de comunicação
de todos os indivíduos e grupos.
A INTUIÇÃO DE DANTE
Essa conceituação ética do Direito, que coloca a coação como elemento
externo e não como elemento intrínseco da própria vida jurídica, teve uma
formulação bastante feliz, por obra não de um jurista, mas de um poeta.
Conhecem os senhores evidentemente a personalidade extraordinária do
poeta Dante Alighieri. O “divino poeta”, além de ternos legado a Divina Comédia -
o poema maravilhoso da Cristandade – deixou obras de Política e Filosofia e,
55
numa delas, referindo-se ao Direito, escreveu estas palavras que devem ficar
esculpidas no espírito dos juristas, pela apreensão genial daquilo que no Direito
existe de substancial: Jus est realis ac personalis hominis ad hominem proportio,
quae servata servat societatem; corrupta, corrumpit. Esta definição de Dante
merece nossa análise demorada pois, de maneira límpida, é apresentada a ordem
jurídica como fundamento inarredável da sociedade. Vamos traduzir, se é
necessário fazê-lo, uma vez que as palavras são transparentes: “O Direito é uma
proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a
sociedade; corrompida, corrompe-a”.
Dante esclarece que a relação é uma proporção. A proporção é, sempre,
uma expressão de medida. O Direito não é uma relação qualquer entre os
homens, mas sim aquela relação que implica uma proporcionalidade, cuja medida
é o homem mesmo. Notem como o poeta viu coisas que, antes dele, os juristas
não tinham visto, oferecendo-nos uma compreensão do Direito, conjugando os
conceitos de proporção e socialidade. Proporção entre quem? De homem para
homem. Quando a proporção e respeitada, realiza-se a harmonia ” …quae servata,
servat societatem…” e, quando corrompida, corrompe a mesma sociedade. Mas,
Dante não diz que há apenas uma proporção de homem para homem. Ele delimita
melhor o sentido da palavra proportio esclarecendo, quase com o rigor da técnica
moderna: realis ac personalis.
É aqui que se nota a atualidade da conceituação jurídica oferecida por
Dante, pois, dentre as múltiplas distinções do Direito, nenhuma é tão fundamental
como a que distingue os direitos em reais e pessoais.
“O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem…”
parece, à primeira vista, uma expressão redundante: pessoal, de homem para
homem. Se é pessoal, por que dizer de homem para homem? É que, para Dante,
o Direito tutela as coisas somente em razão dos homens: a relação jurídica
conclui-se entre pessoas, não entre homens e coisas, mas é “real” quando tem
uma coisa (res) como seu objeto.
A sua definição inspirava-se na obra e nos ensinamentos aristotélicotomistas
e, também, nas grandes lições dos jurisconsultos romanos,
56
especialmente nas lições de Cícero, que dizia que devemos conhecer
perfeitamente o homem, a natureza humana para, depois, conhecer o Direito.
Segundo o grande orador e político romano devemos procurar o segredo do
Direito na própria natureza do homem: natura juris ab homine repetenda est
natura. Vamos buscar o elemento fundamental do Direito no exame mesmo da
natureza humana, pois é ele uma expressão ou dimensão da vida humana, como
intersubjetividade e convivência ordenada.
Quer dizer que essas idéias, que hoje nos parecem tão modernas, como a
da humanização e da socialização do Direito, já encontram os seus antecedentes
através de uma tradição histórica mais que milenar. O Direito, indiscutivelmente,
inova, apresenta elementos de renovação permanente, mas conserva, sempre,
um fulcro de tradição.
ACEPÇÕES DA PALAVRA “DIREITO”
Com a palavra “Direito” acontece o que sempre se dá quando um vocábulo,
que se liga intimamente às vicissitudes da experiência humana, passa a ser usado
séculos a fio, adquirindo muitas acepções, que devem ser cuidadosamente
discriminadas.
Em primeiro lugar, lembremos que esta é uma Faculdade de Direito, o que
quer dizer de Ciência Jurídica. Estudar o Direito é estudar um ramo do
conhecimento humano, que ocupa um lugar distinto nos domínios das ciências
sociais, ao lado da História, da Sociologia, da Economia, da Antropologia etc.
A Ciência do Direito, durante muito tempo teve o nome de Jurisprudência,
que era a designação dada pelos jurisconsultos romanos.Atualmente, a palavra
possui uma acepção estrita, para indicar a doutrina que se vai firmando através de
uma sucessão convergente e coincidente de decisões judiciais ou de resoluções
administrativas (jurisprudências judicial e administrativa). Pensamos que tudo
deve ser feito para manter-se a acepção clássica dessa palavra, tão densa de
significado, que põe em realce uma das virtudes primordiais que deve ter o jurista:
a prudência, o cauteloso senso de medida das coisas humanas.
57
Pois bem, esse primeiro sentido da palavra “Direito” está em correlação
essencial com o que denominamos “experiência jurídica”, cujo conceito implica a
efetividade de comportamentos sociais em função de um sistema de regras que
também designamos com o vocábulo Direito.
Não há nada de estranhável nesse fato, pois é comum vermos uma palavra
designar tanto a ciência como o objeto dessa mesma ciência, isto é, a realidade
ou tipo de experiência que constitui a razão de ser de suas indagações e
esquemas teóricos.
“Direito” significa, por conseguinte, tanto o ordenamento jurídico, ou seja, o
sistema de normas ou regras jurídicas que traça aos homens determinadas formas
de comportamento, conferindo-lhes possibilidades de agir, como o tipo de ciência
que o estuda, a Ciência do Direito ou Jurisprudência.
Muitas confusões surgem do fato de não se fazer uma distinção clara entre
um sentido e outro. Quando dizemos, por exemplo, que o Direito do Brasil
contemporâneo é diferente do que existia no Império e na época colonial, embora
mantendo uma linha de continuidade, de acordo com a índole da nossa gente e
nossas contingências sócio-econômicas, estamos nos referindo, de preferência, a
um momento da vida da sociedade, a um fato social. É o Direito como fenômeno
histórico-cultural.
Não pensem, entretanto, que se deva fazer uma identificação entre o
Direito como experiência social e o Direito como ciência. A prova de que essa
identificação não se justifica está neste fato, de conseqüências relevantes: não é
apenas a Ciência do Direito que estuda a experiência social que chamamos
Direito. O fenômeno jurídico pode ser estudado, como já vimos, também pelo
sociólogo, dando lugar a um campo de pesquisas que se chama Sociologia
Jurídica. A experiência jurídica pode ser igualmente estudada em seu
desenvolvimento no tempo, surgindo assim a História do Direito.
História do Direito, Sociologia Jurídica e Ciência do Direito são três campos
de conhecimento distintos, que se constituem sobre a base de uma única
experiência humana, que é o Direito como fato de convivência ordenada.
58
Não param aí, todavia, as acepções da palavra. Às vezes dizemos que
Fulano ou Beltrano se bateram ardorosamente “pelo Direito”, ou que a
“Organização das Nações Unidas propugna pelo Direito”. Nesses casos, a palavra
indica algo que está acima das duas acepções já examinadas, traduzindo um ideal
de Justiça.
Direito, em tais casos, significa “Justo”. Quando nos referimos à luta, aos
embates em favor do Direito, estamos empregando a palavra Direito em sentido
axiológico, como sinônimo de “Justiça”.
Resta ainda focalizar uma outra conotação da palavra Direito, que se
identifica facilmente quando dizemos que o proprietário tem o direito de dispor do
que é seu: é o sentido subjetivo do Direito, inseparável do objetivo, ao qual já nos
referimos. É, por assim dizer, a regra de direito vista por dentro, como ação
regulada.
Dissemos, numa das aulas anteriores, que as regras representam sempre o
traçado dos âmbitos de atividade dos homens e dos grupos. Examinando qualquer
norma de direito que discipline o comportamento humano, percebemos que nela
coexistem dois aspectos bem distintos: se, por um lado, ela ordena a conduta, de
outro, assegura uma possibilidade ou poder de agir. Temos, assim, um módulo de
comportamento, com dois efeitos concomitantes: ao mesmo tempo que delimita a
ação, garante-a dentro do espaço social delimitado. Quando o Estado edita uma
norma de direito, fixando limites ao comportamento dos homens, não visa ao valor
negativo da limitação em si, mas sins ao valor positivo da possibilidade de se
pretender algo na esfera previamente circunscrita.
Não pensem que há na ordem jurídica a preocupação de levantar paredes
em torno da atividade individual. O ideal é que cada homem possa realizar os
seus fins da maneira mais ampla, mas é intuitivo que não poderia coexistir o
arbítrio de cada um como o dos demais sem uma delimitação harmônica das
liberdades, consoante clássico ensinamento de Kant. Desse modo, o Direito
delimita para libertar: quando limita, liberta.
59
Pois bem, esse é o problema do Direito Subjetivo, que será melhor
analisado uma de nossas próximas aulas, após mais precisa determinação do
Direito Objetivo, do qual é inseparável.
Como vêem, a palavra Direito tem diferentes acepções, o que pode parecer
estranho, mas já advertimos que é impossível nas ciências humanas ter-se
sempre uma só palavra para indicar determinada idéia e apenas ela. O químico
tem a vantagem de empregar símbolos distintos: o símbolo CO2, por exemplo, se
refere a um único e determinado ser. Isso dá segurança no campo da pesquisa e
põe o problema da comunicação sobre bases mais sólidas, o que tem induzido
alguns juristas a tentar axiomatizar o Direito, mas tais formalizações de tipo
matemático sacrificam o conteúdo axiológico, essencial à compreensão da
experiência jurídica. No campo das ciências sociais, não podemos alimentar
ilusões no sentido de extremado rigor terminológico, mas nem por isso nos faltam
estruturas conceituais ajustáveis à complexa e matizada conduta humana.
ESTRUTURA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO
O simples fato de existirem várias acepções da palavra Direito já devia ter
suscitado uma pergunta, que, todavia, só recentemente veio a ser formulada, isto
é: esses significados fundamentais que, através do tempo, têm sido atribuídos a
uma mesma palavra, já não revelam que há aspectos ou elementos
complementares na experiência jurídica? Uma análise em profundidade dos
diversos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três
aspectos básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um
aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um
aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um
aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça).
Nas últimas quatro décadas o problema da tridimensionalidade do Direito
tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso
ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que:
a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e
necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico,
60
demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada
significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens
no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e,
finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida
que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor;
b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados
um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta;
c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem
reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (já vimos que o
Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do
Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que
a integram1.
Isto posto, analisemos o esquema ou estrutura de uma norma ou regra jurídica de
conduta:
a) Se F é, deve ser P;
b) Se não for P, deverá ser SP2.
Há, por exemplo, norma legal que prevê o pagamento de uma letra de
câmbio na data de seu vencimento, sob pena do protesto do título e de sua
cobrança, gozando o credor, desde logo, do privilégio de promover a execução do
crédito.
Logo, diríamos:
a) se há um débito cambiário (F), deve ser pago (P);
b) se não for quitada a dívida (não P), deverá haver uma sanção penal
(SP).
Mais tarde, estudaremos melhor essa questão. O que por ora desejamos
demonstrar é que, nesse exemplo, a norma de direito cambial representa uma
disposição legal que se baseia num fato de ordem econômica (o fato de, na época
moderna, as necessidades do comércio terem exigido formas adequadas de
1 Sobre esses e outros aspectos da minha teoria tridimensional, vide nossas Filosofia do Direito,
13.a ed., São Paulo, 1990; Teoria Tridimensional do Direito, 4.a ed., São Paulo, 1986, e O Direito
como Experiência, São Paulo, 1968, 2.a ed., 1992. Cf., também, Recaséns Siches, Tratado
General de Filosofia del Derecho, México, 1959, págs. 158 a 164, e Introducción al Estudio del
Derecho, México, 1970, págs. 40 e segs.
2 F = fato; P = prestação; SP = sanção penal. Vide págs. 101 e segs. deste livro.
61
relação) e que visa a assegurar um valor, o valor do crédito, a vantagem de um
pronto pagamento com base no que é formalmente declarado na letra de câmbio.
Como se vê, um fato econômico liga-se a um valor de garantia para se
expressar através de uma norma legal que atende às relações que devem existir
entre aqueles dois elementos.
Pois bem, se estudarmos a história da letra de câmbio, que, numa
explicação elementar e sumária, surgiu como um documento mediante o qual
Fulano ordenava a Beltrano que pagasse a Sicrano determinada importância, à
vista da apresentação do título; se estudarmos a evolução dessa notável criação
do Direito mercantil, verificamos que ela veio sofrendo alterações através dos
tempos, quer em virtude de mudanças operadas no plano dos fatos (alterações
nos meios de comunicação e informação, do sistema de crédito ou organização
bancária), quer devido à alteração nos valores ou fins econômico-utilitários do
crédito e da circulação garantida da riqueza, até se converter num título de crédito
de natureza autônoma, literal, abstrata e exeqüível.
Desse modo, fatos, valores e normas se implicam e se exigem
reciprocamente, o que, como veremos, se reflete também no momento em que o
jurisperito (advogado, juiz ou administrador) interpreta uma norma ou regra de
direito (são expressões sinônimas) para dar-lhe aplicação.
Desde a sua origem, isto é, desde o aparecimento da norma jurídica, – que
é síntese integrante de fatos ordenados segundo distintos valores, – até ao
momento final de sua aplicação, o Direito se caracteriza por sua estrutura
tridimensional, na qual fatos e valores se dialetizam, isto é, obedecem a um
processo dinâmico que aos poucos iremos desvendando. Nós dizemos que esse
processo do Direito obedece a uma forma especial de dialética que denominamos
“dialética de implicação-polaridade”, que não se confunde com a dialética
hegeliana ou marxista dos opostos. Esta é, porém, uma questão que só poderá
ser melhor esclarecida no âmbito da Filosofia do Direito. Segundo a dialética de
implicação-polaridade, aplicada à experiência jurídica, o fato e o valor nesta se
correlacionam de tal modo que cada um deles se mantém irredutível ao outro
(polaridade) mas se exigindo mutuamente (implicação) o que dá origem à
62
estrutura normativa como momento de realização do Direito. Por isso é
denominada também “dialética de complementaridade”.
Isto posto, podemos completar a nossa noção inicial de Direito, conjugando
a estrutura tridimensional com a nota específica da bilateralidade atributiva, neste
enunciado: Direito é a realização ordenada e garantida do bem comum numa
estrutura tridimensional bilateral atributiva, ou, de uma forma analítica:
Direito é a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das
relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo
valores.
Ultimamente, pondo em realce a idéia de justiça, temos apresentado, em
complemento às duas noções supra da natureza lógico-descritiva, esta outra de
caráter mais ético: Direito é a concretização da idéia de justiça na pluridiversidade
de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores.
Se analisarmos essas três noções do Direito veremos que cada uma delas
obedece, respectivamente, a uma perspectiva do fato (“realização ordenada do
bem comum”), da norma (“ordenação bilateral-atributiva de fatos segundo
valores”) ou do valor (“concretização da idéia de justiça”).
Donde devemos concluir que a compreensão integral do Direito somente
pode ser atingida graças à correlação unitária e dinâmica das três apontadas
dimensões da experiência jurídica, que se confunde com a história mesma do
homem na sua perene faina de harmonizar o que é com o que deve ser.
Se, como bem adverte Jackson de Figueiredo, a vida vale sobretudo como
oportunidade de aperfeiçoar-nos, o Direito, em razão de sua própria estrutura e
destinação, representa uma das dimensões essenciais da vida humana.
63
CAPÍTULO VII
SANÇÃO E COAÇÃO – A ORGANIZAÇÃO DA
SANÇÃO E O PAPEL DO ESTADO
SUMÁRIO: Acepções da palavra “coação”. Conceito de sanção. O
Estado como ordenação objetiva e unitária da sanção. As ordenações
jurídicas não estatais.
ACEPÇÕES DA PALAVRA “COAÇÃO”
Pelas lições anteriores, já tivemos ocasião de dizer que a Moral se
distingue do Direito por vários elementos, sendo um deles a coercibilidade. Pela
palavra coercibilidade entendemos a possibilidade lógica da interferência da força
no cumprimento de uma regra de direito. A Moral é incompatível com a força,
especialmente no que se refere à força organizada, que é, ao contrário, própria do
Direito. O ato moral exige espontaneidade por parte do agente, sendo, desse
modo, inconciliável com a coação.
É preciso entender bem os significados que a palavra “coação” comporta.
Coação é um termo técnico, empregado pelos juristas, em duas acepções
bastante diferentes. Em um primeiro sentido, coação significa apenas a violência
física ou psíquica, que pode ser feita contra uma pessoa ou um grupo de pessoas.
A mera violência não é uma figura jurídica, mas quando se contrapõe ao Direito,
torna anuláveis os atos jurídicos. Nesta acepção genérica, a palavra coação é, de
certa maneira, sinônimo de violência praticada contra alguém.
Lendo o Código Civil, os senhores encontrarão uma seção subordinada ao
título “Da coação”. Com o decorrer dos estudos de Teoria Geral do Direito Civil,
vão aprender que nem todos os atos são lícitos juridicamente, porquanto a licitude
do ato exige vários elementos, que o art. 82 do Código Civil discrimina, tais como
a existência de agente capaz, de objeto lícito, de forma prescrita ou não defesa
em lei.
Ora, em muitos casos, existe o agente capaz, mas ele está sendo
influenciado por elementos extrínsecos que deturpam a autenticidade de sua
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maneira de decidir. O agente decide, mas sendo vítima de erro, de ignorância, de
fraude, ou então, sob a irresistível pressão de determinadas circunstâncias.
Dizemos então que, entre os casos de anulabilidade dos atos jurídicos, está
a eventualidade de violência ou de coação. O ato jurídico, praticado sob coação, é
anulável; tem existência jurídica, mas de natureza provisória, até que o ofendido
prove que agiu compelido, sob ameaça física ou psíquica. Dizemos, então, que a
coação é um dos vícios possíveis dos atos jurídicos. Não é aqui o caso de tratar
das várias espécies de atos jurídicos, porquanto esse estudo será desenvolvido no
curso de Direito Civil. Não é demais, entretanto, dizer que os atos jurídicos podem
ser divididos em duas, ou então três categorias.
Segundo alguns autores, especialmente os filiados à civilística francesa, os
atos jurídicos se distinguem em atos inexistentes, nulos de pleno direito e
anuláveis. Outros mestres, especialmente ligados à Ciência Jurídica italiana, não
admitem distinção entre atos jurídicos inexistentes e nulos de pleno direito.
Atos inexistentes são aqueles que não chegam a se completar, ou a se
aperfeiçoar, nem mesmo do ponto de vista formal ou extrínseco; são atos que
abortaram antes de chegar ao seu termo. Os atos nulos de pleno direito, como
veremos melhor mais tarde, revestem-se, ao contrário, de todos os requisitos
formais, mas padecem de um vício substancial irreparável, que não só os impede
de produzir efeitos válidos como também de ser convalidados por atos posteriores.
Alguns autores contestam, a nosso ver sem razão, a distinção tripartida,
dizendo que os atos nulos de pleno direito são inexistentes perante o Direito, e
que de nada aproveita à técnica jurídica o acréscimo de uma categoria, só
concebível fora do âmbito normativo.
Deixando, por ora, de lado esse problema, que é dos mais elegantes da
Ciência Jurídica, devemos reter apenas esta noção básica: existem nulidades de
natureza absoluta e outras de caráter relativo. As absolutas inquinam o ato desde
o seu aparecimento e não produzem efeito válido. O ato anulável, ao contrário,
produz efeitos até e enquanto não declarada a sua nulidade.
Ora, entre os atos anuláveis, estão aqueles que nasceram em virtude de
violência ou de coação. A coação pode ser de ordem física, desde a ameaça de
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agressão caracterizada até ao emprego de todas as formas de sofrimento ou
tortura infligidas à vítima, ou a pessoa de sua estima. A violência pode ser também
de ordem psicológica que, muitas vezes, não é menos forte que a outra. Imaginem
que um indivíduo saiba de determinado segredo, de um fato de natureza íntima de
outrem. Serve-se desse conhecimento para obrigá-lo à prática de um ato que não
se concluiria se a ameaça não existisse. O legislador trata dessa matéria nos arts.
98 e segs. do Código Civil, estabelecendo que a coação, para que se considere
viciada a vontade, há de ser tal que incuta ao paciente forte temor de dano à sua
pessoa, à sua família ou a seus bens.
Não é, entretanto, nesse sentido que empregamos a palavra coação,
quando dizemos que o Direito se distingue da Moral pela possibilidade da
interferência da coação. Neste caso, é esta entendida como força organizada para
fins do Direito mesmo.
O Direito, como já dissemos várias vezes, é de tal natureza que implica
uma organização do poder, a fim de que sejam cumpridos os seus preceitos.
Como as normas jurídicas visam a preservar o que há de essencial na convivência
humana, elas não podem ficar à mercê da simples boa vontade, da adesão
espontânea dos obrigados. É necessário prever-se a possibilidade do seu
cumprimento obrigatório. Quando a força se organiza em defesa do cumprimento
do Direito mesmo é que nós temos a segunda acepção da palavra coação.
Coação, portanto, significa duas coisas: de maneira genérica, tal como
aquela configurada no art. 98 do Código Civil, corresponde à violência, à força
que, interferindo, vicia o ato jurídico; em sua segunda acepção, não é o
contraposto do Direito, mas é, ao contrário, o próprio Direito enquanto se arma da
força para garantir o seu cumprimento. A astúcia do Direito consiste em valer-se
do veneno da força para impedir que ela triunfe…
CONCEITO DE SANÇÃO
Compreenderão melhor essa matéria, uma vez esclarecido o sentido de
uma outra palavra: sanção.
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Todas as regras, quaisquer que sejam, religiosas, morais, jurídicas ou de
etiqueta, são evidentemente emanadas ou formuladas, da ou pela sociedade, para
serem cumpridas. Não existe regra que não implique certa obediência, certo
respeito.
As regras éticas existem para serem executadas. Se a obediência e o
cumprimento são da essência da regra, é natural que todas elas se garantam, de
uma forma ou de outra, para que não fiquem no papel, como simples expectativas
ou promessas. As formas de garantia do cumprimento das regras denominam-se
“sanções”.
Sanção é, pois, todo e qualquer processo de garantia daquilo que se
determina em uma regra. Como podem ser as “sanções”? Apresentam-se tantas
formas de garantia quantas são as espécies dos distintos preceitos. Examinem,
por exemplo, o caso de uma regra moral. As regras morais nós as cumprimos por
motivação espontânea. Mas, quando as deixamos de cumprir, a desobediência
provoca determinadas conseqüências, que valem como sanção.
Quais são as sanções específicas da ordem moral? Em primeiro lugar,
temos o remorso, o arrependimento, o amargo exame de consciência. O homem
bem formado, que faltou a um ditame ético, encontra em si mesmo uma censura,
uma força psíquica que o coloca na situação de réu diante de si próprio. É o
exame de consciência uma forma imediata de sanção dos ditames morais. É a
sanção do foro íntimo. Existe, porém, também uma sanção extrínseca ou externa
que se reflete na sociedade, pelo mérito ou demérito que o indivíduo granjeia, em
razão ou em função dos atos praticados. A sanção de natureza social tem força
bem maior do que se supõe. Nós não vivemos apenas voltados para nós mesmos,
mas também em função do meio, da sociedade em que agimos. O homem é como
que Jano bifronte, com uma face voltada para si próprio e outra que se espelha no
meio social. O homem não é uma coisa posta entre outras coisas, mas uma força
que se integra em um sistema de forças, sem se desprender do todo. A sanção na
Moral obedece a essa dimensão individual-social do homem, porquanto opera
tanto no plano da consciência quanto no plano da chamada consciência coletiva.
Há uma reação por parte da sociedade, quando o homem age de modo contrário à
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tábua de valores vigentes. É o que se denomina mérito ou demérito social, como
formas de sanção das regras morais.
Essas formas de sanção das regras morais não estão, entretanto,
organizadas. De certa maneira, acham-se difusas no espaço social: é a crítica e a
condenação, que a infração suscita; é a opinião pública que se forma sobre a
conduta reprovada; são todos os sistemas de autodefesa da sociedade, que, aos
poucos, eliminam da convivência o indivíduo que não obedece aos preceitos de
ordem moral. Um ostracismo espontâneo é aplicado pela sociedade quando o
indivíduo viola as suas obrigações de natureza ética. Pode-se dizer que a grande
maioria dos homens cede diante da pressão dessa força difusa do meio social.
Há, entretanto, aqueles que nem sequer se arreceiam do exame de sua
própria consciência, por estarem tão embrutecidos que nela é impossível o
fenômeno psíquico do remorso. Nem faltam os que nenhuma importância dão à
reação social, por se considerarem, às vezes, superiores ao meio em que vivem,
como seres acima do bem ou do mal; ou, então, porque na própria “psique” não
haverá repulsa àqueles motivos de conduta imoral, que atuam, poderosamente,
sobre o homem normal. É nesse momento que se torna necessário organizar as
sanções. O fenômeno jurídico representa, assim, uma forma de organização da
sanção.
Na passagem da sanção difusa para a sanção predeterminadamente
organizada, poderíamos ver a passagem paulatina do mundo ético em geral para
o mundo jurídico. Das regras religiosas e morais, que enfeitavam primitivamente
todo mundo jurídico, este foi se despregando, até adquirir contornos próprios e
formando um todo homogêneo pela organização progressiva da própria sanção.
A sanção, portanto, é gênero de que a sanção jurídica é espécie. Existem
sanções morais e jurídicas, correspondentes, respectivamente, às regras de
natureza moral e jurídica. Há também sanções próprias das normas religiosas,
que dizem respeito à crença e à fé, fundadas na esperança ou certeza de uma
vida ultraterrena, na qual cada homem receberá a retribuição de sua conduta, a
paga ética, ideal, de seu comportamento.
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A idéia fundamental da religião é a de que vivemos uma vida transitória,
que não tem em si a medida de seu valor, mas que se mede, segundo valores
eternos, à luz da idéia de uma vida ultraterrena, na qual os homens serão julgados
segundo o valor ético de sua própria existência. O remorso é também, para o
crente, uma força de sanção imediata e imperiosa. Todas as regras possuem, em
suma, sua forma de sanção.
Alguns autores pretendem estabelecer um tipo de Moral sem sanção, mas,
na realidade, todas essas tentativas tem falhado, reconhecendo-se, em geral, que
a estrutura mesma de uma regra, qualquer que seja o seu objetivo, já implica esta
ou aquela forma de sanção como um de seus elementos constitutivos, embora
extrinsecamente aditados ao preceito.
O que caracteriza a sanção jurídica é a sua predeterminação e
organização. Matar alguém é um ato que fere tanto um mandamento éticoreligioso
como um dispositivo penal. A diferença está em que, no plano jurídico, a
sociedade se organiza contra o homicida, através do aparelhamento policial e do
Poder Judiciário. Um órgão promove as investigações e toma as medidas
necessárias à determinação do fato; um outro órgão examina a conduta do agente
e pronuncia um veredicto de absolvição ou de condenação. Condenado, eis
novamente a ação dos órgãos administrativos para aplicar a pena.
Tudo no Direito obedece a esse princípio da sanção organizada de forma
predeterminada. A existência mesma do Poder Judiciário, como um dos três
poderes fundamentais do Estado, dá-se em razão da predeterminação da sanção
jurídica. Um homem lesado em seus direitos sabe de antemão que pode recorrer à
Justiça, a fim de que as relações sejam objetivamente apreciadas e o equilíbrio
restabelecido.
As leis todas têm, portanto, uma sanção, motivo pelo qual o Código Civil,
em seu art. 75, reza que a “todo direito corresponde uma ação que o assegura”.
Pode-se mesmo dizer que o progresso da cultura humana, que anda pari
passu com o da vida jurídica, obedece a esta lei fundamental: verifica-se uma
passagem gradual na solução dos conflitos, do plano da força bruta para o plano
da força jurídica. Nas sociedades primitivas, tudo se resolve em termos de
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vingança, prevalecendo a força, quer do indivíduo, quer da tribo a que ele
pertence. Ofendido o indivíduo, a ofensa se estende imediatamente ao clã, que
reage contra o outro grupo social, numa forma de responsabilidade coletiva.
Existiu, com efeito, primeiro, a vingança social para, depois, surgir a
vingança privada. De certa maneira, esta já representa um progresso, porquanto
personaliza a responsabilidade. Com o decorrer do tempo, o fenômeno da
vingança privada veio sendo submetido a regras, a formas delimitadoras. Há uma
passagem lenta do período da vingança privada, como simples força bruta, ao
período em que as contendas passam a ser resolvidas obedecendo a certas
injunções ainda de força, mas já contida em certos limites. É o período dos duelos,
das ordálias, do talião. Finalmente, o Estado proíbe o duelo, que já é um
abrandamento da força. O Poder Público coloca-se em lugar dos indivíduos,
chamando a si a distribuição da justiça, o que assinala um momento crucial na
história da civilização.
Podemos dizer que, atualmente, excogitam-se técnicas mais aperfeiçoadas
para obter-se o cumprimento das normas jurídicas, através não de sanções
intimidativas, mas sim através de processos que possam influir no sentido da
adesão espontânea dos obrigados, como os que propiciam incentivos e
vantagens.
Assim, ao lado das sanções penais, temos as sanções premiais que
oferecem um benefício ao destinatário, como, por exemplo, um desconto ao
contribuinte que paga o tributo antes da data do vencimento.
O ESTADO COMO ORDENAÇÃO OBJETIVA E UNITÁRIA DA SANÇÃO
Visto sob esse prisma, que é o Estado?
É a organização da Nação em uma unidade de poder, a fim de que a
aplicação das sanções se verifique segundo uma proporção objetiva e
transpessoal. Para tal fim o Estado detém o monopólio da coação no que se refere
à distribuição da justiça. É por isto que alguns constitucionalistas definem o Estado
como a instituição detentora da coação incondicionada. Como, porém, a coação é
exercida pelos órgãos do Estado, em virtude da competência que lhes é atribuída,
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mais certo será dizer que o Estado, no seu todo, consoante ensinamento de
Laband, tem “a competência da competência”.
O Estado, como ordenação do poder, disciplina as formas e os processos
de execução coercitiva do Direito. Esta pode consistir na penhora, como quando o
juiz determina que certo bem seja retirado do patrimônio do indivíduo, para
garantia de um seu débito, se as circunstâncias legais o autorizarem. Coação
pode ser a própria prisão, ou seja, a perda de liberdade infligida ao infrator de uma
lei penal. Coação pode ser a perda da própria vida, como acontece nos países
que consagram a pena de morte. Pode chegar-se ao extremo de tirar o bem
supremo, que é a vida, a fim de preservar-se a ordem jurídica, o que não nos
parece harmonizável com a natureza do Direito.
Podemos afirmar que, em nossos dias, o Estado continua sendo a entidade
detentora por excelência da sanção organizada e garantida, muito embora não
faltem outros entes, na órbita internacional, que aplicam sanções com maior ou
menor êxito, como é o caso, por exemplo, da Organização das Nações Unidas
(ONU). Cresce, porém, dia a dia, a importância de entidades supranacionais, que
dispõem de recursos eficazes para lograr a obediência de seus preceitos.
Instituições, como o Mercado Comum Europeu, cada vez mais se convertem em
unidades jurídico-econômicas integradas, marcando, sem dúvida, uma segunda
fase no processo objetivo de atualização das sanções. Seria, todavia, exagero
concluir, à luz desses exemplos, pela evanescência do Estado ou seu progressivo
desaparecimento, quando, na realidade, o poder estatal cresce,
concomitantemente, como aqueles organismos internacionais.
AS ORDENAÇÕES JURÍDICAS NÃO ESTATAIS
Aqui, surge um problema muito interessante, mas que naturalmente não
poderá ser examinado em seus detalhes. Se o Estado é o detentor da coação
incondicionada, não haverá outros organismos internos com análogo poder? Nós
sustentamos, em nosso livro Teoria do Direito e do Estado, que a coação existe
também fora do Estado. O Estado é o detentor da coação em última instância.
Mas, na realidade, existe Direito também em outros grupos, em outras instituições,
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que não o Estado. Existe, por exemplo, um Direito no seio da Igreja. A Igreja é
uma instituição e, dentro do corpo institucional da Igreja, há um complexo de
normas suscetíveis de sanção organizada. É o Direito canônico, que não se
confunde com o Direito do Estado.
Mas não é só. Como contestar a juridicidade das organizações esportivas?
Não possuem elas uma série de normas, e até mesmo de tribunais, impondo a um
número imenso de indivíduos determinadas formas de conduta sob sanções
organizadas? Lembre-se outro fenômeno do maior alcance, que é o profissional
ou sindical, estabelecendo, no campo das atividades de classe, um conjunto de
normas que também são protegidas por sanções organizadas. Parece-nos, pois,
procedente a teoria da pluralidade das ordens jurídicas positivas.
Há, em suma, todo um Direito “grupalista” que surge ao lado ou dentro do
Estado. É preciso, porém, reconhecer também que existe uma graduação no
Direito, segundo o índice de organização e de generalidade da coação. O Estado
caracteriza-se por ser a instituição, cuja sanção possui caráter de universalidade.
Nenhum de nós pode fugir à coação do Estado. O Estado circunda-nos de tal
maneira que até mesmo quando saímos do território nacional, continuamos
sujeitos a uma série de regras que são do Direito brasileiro, do Estado brasileiro.
Há um meio de escaparmos à coação grupalista, que é o abandono do
grupo, mas ninguém pode abandonar o Estado. O Estado é a instituição de que
não se abdica. Os indivíduos que deixam o território nacional carregam consigo o
Direito brasileiro, que vai proteger a sua vida, assim como exercer influência sobre
sua pessoa e seus bens. De certa forma, podemos dizer que o Estado, com seu
Direito, nos acompanha até mesmo após a morte, porquanto determina a maneira
pela qual os nossos bens devem ser divididos entre os herdeiros, preserva nosso
nome de agravos e injúrias etc.
Pois bem, em nenhuma das entidades internas ou internacionais, com
competência para aplicar sanções a fim de garantir as suas normas, em nenhuma
delas encontramos a universalidade da sanção, nem a força impositiva eficaz que
se observa no Estado.
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Daí dizermos que, se num país são múltiplos os entes que possuem ordem
jurídica própria (teoria da pluralidade dos ordenamentos jurídicos internos), só o
Estado representa o ordenamento jurídico soberano, ao qual todos recorrem para
dirimir os conflitos recíprocos. Há, como escrevemos no citado livro1, uma
gradação de positividade jurídica, ou seja, diversos graus de incidência do Direito
positivo, quer em extensão, quer em intensidade, devido exatamente à maior ou
menor organização da sanção, sua objetividade e eficácia.
Apesar, por conseguinte, de poder haver organismos de coação fora do
Estado, é neste que tal fato se reveste de maior intensidade e vigor. Nada exclui,
porém, que venha a existir, num futuro ainda imprevisível, um Estado ou
Organização Universal, cujas sanções sejam tão ou mais eficazes que as do
próprio Estado.
Há autores que, sob a influência de ensinamentos de Karl Marx, ou
fascinados pela expansão de certos organismos internacionais, apresentam o
Estado como uma entidade evanescente, isto é, destinada a perecer, substituída
por outras formas de vida social, descentralizadas ou com menor quantum
despótico. Estamos, porém, no plano de meras conjeturas, pois, por ora, o que
vemos é o predomínio e a competição das soberanias estatais, em função de
distintas comunidades, conscientes e zelosas de seus direitos e interesses.
A atual “crise de energia”, produzida pela viravolta na “política do petróleo”,
veio, aliás, demonstrar a fragilidade de certos organismos internacionais, em
conflito com cujos desígnios passaram a atuar os seus Estados-membros. Por
outro lado, os marxistas, que se apossaram do poder na Rússia, acabaram por
abandonar a idéia do Estado evanescente para instituir um tenebroso Estado
totalitário, que se caracteriza pela fusão da sociedade civil com o Estado, este
absorvendo aquela. Felizmente, o bolchevismo desapareceu, após mais de sete
décadas de domínio, quando ocorreu a repentina eclosão do chamado “socialismo
real”, em 1991.
1 Cf. Miguel Reale, Teoria do Direito e do Estado, 4.a ed., São Paulo, 1984, onde expomos a teoria
da “gradação da positividade jurídica” dos vários ordenamentos existentes num País. Sobre esse
assunto, v., especialmente, nosso livro Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, São Paulo, 1978,
págs. 35-51.
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A bem ver, para que haja distinção efetiva entre a Moral e o Direito e,
paralelamente, um Estado de Direito, que só pode ser de base democrática, o
essencial é que a sociedade civil e o Estado não se confundam, mas se
mantenham como valores distintos e complementares, correlacionados entre si,
mas cada um deles irredutível ao outro.
Quando se pretende dissolver o Estado na sociedade, pondo-se termo às
relações de poder e de direito, caímos no equívoco do anarquismo que, de tanto
se prevenir contra o poder, acaba sendo vítima do poder anônimo, tão condenável
como o poder totalitário que aniquila as forças criadoras dos indivíduos e da
sociedade civil.
Dissemos que o Estado é uma instituição, da qual não se abdica, mas nem
por isso pode ele ser visto como um ente absoluto, superior aos indivíduos e à
sociedade civil, visto como é em razão destes que o Estado se constitui.
Donde dizer-se com razão que o Estado é, ao mesmo tempo e
complementarmente, um meio e um fim. É um meio na medida em que sua
estrutura e sua força originam-se historicamente, através de mil vicissitudes, para
possibilitar aos indivíduos uma vida condigna no seio de uma comunidade fundada
nos valores da paz e do desenvolvimento.
Por outro lado, o Estado se põe como fim, enquanto representa, e tão somente
enquanto representa, concomitantemente, uma ordem jurídica e uma
ordem econômica, cujos valores devem ser respeitados por todos como condição
de coexistência social harmônica, onde os direitos de cada um pressupõem iguais
direitos dos demais, assegurando-se cada vez mais a plena realização desse ideal
ético”.

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