Trabalho escravo, reincidência e perspectivas
Vinte
e um milhões. Este é o número estimado de trabalhadores em regime de
trabalho análogo à escravidão em todo o mundo. Os dados são da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), e apontam também que 60%
dos trabalhadores resgatados retornam à exploração. Como quebrar esse
círculo representa hoje um dos maiores desafios das instituições que
combatem o trabalho escravo no Brasil.
Na
opinião de Lelio Bentes Corrêa, ministro do Tribunal Superior do
Trabalho (TST), para romper esse círculo vicioso é necessário que haja
simultaneamente o endurecimento das ações ao combate e repressão ao
trabalho escravo. Ele acredita que a aprovação da Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) n.º 57-A/1999 é fundamental. Assim será possível
punir de forma dura os exploradores do trabalho escravo, justifica.
A
PEC 57 prevê a expropriação de propriedades nas quais for constatada a
prática de trabalho escravo e sua destinação para reforma agrária ou uso
social. Há mais de dez anos em tramitação no Congresso, ela volta a ser
discutida nessa quarta-feira (19) na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania do Senado Federal. Embora já tenha sido aprovada
anteriormente no Senado, a proposta terá de passar por nova votação
devido a alterações introduzidas em 2004 na Câmara dos Deputados, quando
foi incluída também a possibilidade de expropriação de propriedades
urbanas.
Referência
O
Brasil é referência na implantação de mecanismos de combate ao trabalho
escravo, apesar de ter reconhecido oficialmente a existência de formas
contemporâneas de escravidão em seu território apenas em 1995. Segundo
especialistas, a eficácia dessas ações só está sendo possível pela
articulação entre o governo brasileiro, a sociedade civil, o setor
privado e os organismos internacionais. Ainda assim, são mais 40 mil
brasileiros em situação análoga à de escravo.
A
advogada Débora Neves, autora do livro Trabalho Escravo e Aliciamento,
explica que o ciclo começa e termina com o aliciamento ilegal de mão de
obra. O trabalhador resgatado não tem qualificação profissional e se vê
em situação de extrema vulnerabilidade e sem alternativa de trabalho e
renda, afirma. Isso contribui, segundo Débora, para que novamente seja
submetido ao trabalho análogo ao de escravo.
Parcerias
O
Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), com
apoio técnico da OIT, lançou em maio deste ano o programa Movimento Ação
Integrada. A ideia é firmar parceria com entidades educacionais,
empresas e associações para qualificar e contratar os trabalhadores
resgatados e reinseri-los no mercado formal.
A
presidenta do sindicato, Rosângela Rassy, explica que não basta
resgatar, é preciso inserir os trabalhadores no mercado de trabalho, e
para isso o passo inicial é a educação profissional. É um olhar
diferente e sensível dos auditores fiscais do trabalho para resgatar a
cidadania de centenas de trabalhadores, defende. Rassy ainda afirma que a
parceria com SESC, SENAC, SENAI e outras instituições é fundamental, a
fim de possibilitar a formação profissional. Empresas privadas também
poderiam contribuir oferecendo vagas para os empregados resgatados.
Lista suja e repressão
O
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) possui um cadastro de empresas e
pessoas autuadas por exploração do trabalho escravo. Até janeiro,
estavam na chamada lista suja do trabalho escravo 409 empregadores.
Na
última semana, o TST julgou o caso de um fazendeiro do Paraná que teve
seu nome incluído no cadastro. Em 2007, ele foi autuado por manter 26
trabalhadores sem registro, trabalhando na extração de pinus e corte de
lenha e da utilização fraudulenta pelo empregador da figura de gatos que
contratavam os trabalhadores. Hoje, o agropecuarista luta para excluir
seu nome da lista. Incluídos no cadastro, os empregadores sofrem
restrições na obtenção de crédito em instituições financeiras públicas,
entre outras sanções.
Segundo
Neves, para que o quadro atual do combate ao trabalho escravo avance, é
necessário, além da repressão por meio dos resgates, que o Estado atue
de forma preventiva, combatendo as causas do problema, direcionando o
trabalho de fiscalização para o momento da arregimentação da mão de
obra, regularizando a relação de emprego antes da chegada às fazendas,
garantindo a manutenção do vínculo de forma lícita. O ciclo do trabalho
escravo somente será combatido de forma eficaz se o Estado conjugar o
trinômio prevenção-repressão-reinserção social, com qualificação do
trabalhador e alternativas de emprego e renda, argumenta.
Ministro Lelio Bentes defende PEC 57 como instrumento de combate ao trabalho escravo
O
ministro Lelio Bentes Corrêa, do Tribunal Superior do Trabalho, atua,
há anos, em frentes de combate ao trabalho em condições análogas às de
escravo. Na condição de membro do Ministério Público do Trabalho,
posteriormente de ministro do TST e, paralelamente, de integrante da
Comissão de Peritos em Aplicação de Normas Internacionais da Organização
Internacional do Trabalho, ele acompanha o problema de perto não apenas
no Brasil, e defende o endurecimento das ações de combate àqueles que
negam aos trabalhadores um trabalho decente. Aqui, ele fala sobre como
evitar que os trabalhadores resgatados voltem às condições degradantes e
coibir a ação de empregadores e arregimentadores de mão-de-obra.
Como quebrar o ciclo que leva 60% dos trabalhadores resgatados, segundo a OIT, a retornar à atividade?
O
trabalho escravo se alimenta de dois nutrientes: a vulnerabilidade e a
fragilidade econômica das vítimas e a perspectiva de impunidade do
explorador. Para romper esse círculo vicioso, é necessário que haja
simultaneamente o endurecimento das ações de combate e repressão, e para
isso é fundamental que se aprove a PEC 57-A de 1999. Assim, será
possível punir de forma dura os exploradores do trabalho escravo, com a
pena de perdimento daquela propriedade. Ao mesmo tempo, é fundamental
que haja investimentos massivos do governo nas zonas de baixo índice de
desenvolvimento humano, que são as grandes fornecedoras desse tipo de
mão de obra. Esse mapeamento já foi feito pelo Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE), e é realmente uma questão de vontade política prover
essas áreas específicas com alternativas de geração de trabalho e
emprego que permitam aos trabalhadores adultos serem agentes de resgate
de sua própria cidadania.
É
possível explicar o retorno desses trabalhadores apenas pela falta de
renda e de perspectivas, ou haveria aí também um componente psicológico e
cultural?
Creio
que não há uma justificativa psicológica ou cultural para que o
trabalhador volte a uma situação em que ele já sabe que vai ser vítima,
como é cultura do local, ele está melhor do que estaria em seu local de
origem. Não penso que se possa cogitar de um elemento psicológico quando
o trabalhador tem de optar entre comer ou não comer, alimentar ou não
alimentar sua família. Não há margem numa situação como essa para se
considerar qualquer manifestação espontânea desses trabalhadores; eles
são vítimas de uma situação de exclusão econômica e social que
infelizmente ainda não foi corrigida por meio dos necessários
investimentos públicos e de programas de emprego e geração renda.
Essas
pessoas vêm de comunidades extremamente pobres, não tiveram acesso à
escolaridade ou a uma qualificação profissional eficiente, e que acabam
encontrando nessas situações arriscadas a única chance de prover seu
sustento e de sua família. Outro elemento que se alia a essa situação é a
impunidade do explorador, e é justamente isso que permite que a
estrutura se aproveite da fragilidade desses trabalhadores. Por um lado,
há uma oferta de mão de obra passível de ser explorada, e por outro uma
demanda de grupos que a exploram. Esses dois fatores se combinam e
geram essa situação de retorno ao trabalhado escravo.
A cidadania seria o melhor antídoto?
Na
medida em que se dá a essas pessoas acesso à educação, qualificação
profissional que permita uma existência digna, elas mesmas serão os
agentes de resgate de sua cidadania. É óbvio que em situações
emergenciais, um trabalhador que acaba de sair de uma frente de trabalho
explorado em regime de mão de obra escrava vai necessitar de algum tipo
de assistência do Estado durante algum tempo. Mas esse tempo deve ser
investido na elevação do seu nível educacional e no aprimoramento de sua
qualificação profissional, para que ao final ele esteja em condições de
ter acesso aos direitos inerentes à cidadania e de exercê-la
plenamente.
No
TST ainda não temos, a exemplo da Comissão de Erradicação do Trabalho
Infantil, uma comissão destinada ao trabalho escravo. Não seria a hora
de criar essa comissão?
É
interessante notar que o tema do trabalho escravo, contrariamente ao
trabalho infantil, em que há ainda um número muito pequeno de casos na
Justiça do Trabalho, tem sido objeto de ações, sobretudo ações civis
públicas, promovidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), e tem
tido boa acolhida pelos juízes do trabalho. Um dos objetivos da Comissão
de Erradicação do Trabalho Infantil é ajudar a construir e disseminar
uma cultura de combate ao trabalho infantil. Creio que, quanto ao
trabalho escravo, essa cultura já está muito bem assentada na nossa
instituição. Prova disso são os relatórios da própria OIT que apontam a
Justiça do Trabalho brasileira, juntamente com o MPT, como responsáveis
pelas soluções mais criativas encontradas do mundo no combate ao
trabalho escravo, como por exemplo, as indenizações por danos morais
coletivos. Nós tivemos um caso na Primeira Turma, confirmando decisão
que impunha multa de R$ 5 milhões para empresa reincidente na exploração
do trabalho escravo. Claro, é perfeitamente possível constituir uma
comissão de erradicação de trabalho escravo no TST, mas é necessário
reconhecer que essa consciência da importância do combate ao trabalho
escravo já está muito bem assentada na Justiça do Trabalho brasileira,
em todas as suas esferas.
Fonte: Tribunal Superior do Trabalho
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