DIREITOS HUMANOS, POBREZA E GLOBALIZAÇÃO

“DIREITOS HUMANOS, POBREZA E GLOBALIZAÇÃO*
José Reinaldo de Lima Lopes**
                                                                                                                                      Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP.


"Sabedoria é uma teoria das máximas para escolher os meios mais adequados a trazer vantagem às nossas intenções premeditadas, o que vem a ser negar em suma a existência de uma moral. (...) Sem dúvida, quando não existe liberdade nem lei moral fundada nela, mas tudo o que acontece, ou pode acontecer, é puro mecanismo da natureza, a política (enquanto arte de utilizar este mecanismo para o governo dos homens) equipara-se à sabedoria prática inteira e o conceito de direito é uma idéia desprovida de conteúdo."
(I. KANT, Sobre a concordância entre a moral
e a política a propósito da paz perpétua).
Atualmente tentam convencer-nos de que o mundo da política é um mundo de sabedoria sem moral. Tentam convencer-nos que a única tarefa da política é promover a adaptação dos homens a forças naturais inelutáveis. Uma destas forças naturais seria o mercado. Outra força seria a ordem natural tradicional, impondo um mundo dividido entre pessoas respeitáveis e respeitadas e pessoas desprezíveis e desprezadas. Tentam convencer-nos que esta invenção humana, histórica e social chamada mercado, chamada capital e capitalismo é um dado da natureza exterior à ação humana; dado, sim, mas do mundo da ação humana e da liberdade. Para aqueles que recusam aceitar este senso comum, sobra a desconfortável posição de minoria, resta a tarefa de atuar alternativamente, demonstrando na prática o equívoco da teoria alheia, e permanece o dever de racionalmente debater e demonstrar o engano de seus opositores.

1. GLOBALIZAÇÃO, POBREZA E DIREITOS HUMANOS - UMA CONEXÃO DOS TEMAS
A globalização é essencialmente uma nova etapa na liberdade de circulação dos capitais. Sinto-me dispensado de defini-la com maior rigor. Aproveito, no entanto, lições alheias para apontar alguns elementos estruturais do fenômeno. Em primeiro lugar, na esfera da produção, amplia-se a internacionalização dos produtos: se o capitalismo do século XIX e XX precisou do colonialismo e do imperialismo para garantir o fluxo de matérias primas para os países centrais, nacionalmente divididos, e o refluxo dos produtos acabados para os países periféricos, a produção dita global supera algumas fronteiras entre estados das economias mais avançadas. O produto é um composto de projeto, financiamento, componentes, montagem e marketing elaborados por uma rede de unidades produtivas, organizadas em uma empresa multinacional ou em várias empresas ligadas entre si por laços diversos. A maior parte do comércio internacional dá-se entre unidades diferentes de uma mesma rede ou teia de empresas (Reich, 1993:163).
A globalização do sistema financeiro foi a mais avançada. Sua regulação foi deixada a um processo privado, que muitas vezes assumiu a forma da normatização (ou normalização) velha conhecida dos homens de negócios, a lex mercatoria. No caso dos serviços financeiros, a sobrevivência da regulação é clara quando se pensa que os blocos regionais de economia e comércio traçam políticas monetárias comuns e, sobretudo, integram-se de modo a permitir controles transnacionais do movimento de capitais. É neste sentido que alguns falam na existência de um governo mundial de fato cuja sede não se encontra no simbólico edifício sede das Nações Unidas em Nova Iorque, mas noFundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, em Washington.
O papel destes dois organismos na globalização não pode ser exagerado. Por meio dos chamados Programas de Ajuste Estrutural (PAE), os técnicos do FMI foram impondo de modo generalizado aos países do leste europeu, América Latina e África, reformas cujos custos sociais ainda não foram computados. O modelo do FMI, de austeridade fiscal e privatização, aplicado indiscriminadamente, foi chamado por alguns de "a receita para o desastre". O fato de o modelo ser global e não construído para cada caso demonstra seu caráter normativo-ideológico (Fiss, 1996). Como a África tornou-se, no mundo globalizado, um continente esquecido, as mortes pela fome, por guerras civis e por genocídios raramente entram nos cômputos ou nas lembranças da opinião pública. Mais ainda, pouco se fala da responsabilidade mundial, e especialmente das antigas "potências coloniais", hoje respeitáveis países social-democratas do Ocidente europeu, para com a descartada África, cuja situação dramática é uma multiplicação exponencial dos muitos azares com os quais convivemos na América Latina. Regulando o acesso aos mercados financeiros internacionais, seja concedendo recursos do Banco Mundial, seja tornando aceitáveis para a banca e os investidores os países que se submetem a seus programas, estas agências de governo internacional via economia, ajudaram a construir este artefato que se chama mercado global.
O surto inflacionário da década de 1980/90 na América Latina, no qual interveio o FMI, foi dos poucos na história que decorreram não em razão de dívidas de guerra ou em pós-guerra, mas em tempos de paz. Antes desta crise financeira, conhecida como crise da dívida externa da América Latina, outras grandes inflações conhecidas na história ocidental tiveram como causas próximas certas "calamidades". No período de Diocleciano sabe-se que houve um surto inflacionário, combatido com um edito fixando preços em 301 A.D. A peste de 1348 na Europa, além de ser a maior catástrofe demográfica conhecida (aproximadamente 20 milhões de mortos, ou um terço da população européia em cerca de dois anos) provocou uma carestia extraordinária. A chegada da prata americana no mercado europeu no século XVI, via Espanha, marca outro período de inflação histórica. A França atravessou uma crise financeira grave durante quase todo o século XVIII, resultado de sua política militar expansionista, mas é no período revolucionário que a emissão de assignats registra outro pico histórico, dada a situação de guerra. Também a guerra de independência dos EUA provocou notável inflação, para a época. A guerra civil, no século seguinte, comportou outro período inflacionário relevante, no meio de uma certa estabilidade generalizada da moeda que o resto do mundo gozava sob a "pax britannica". Foi a Alemanha, submetida ao pagamento de dívidas de guerra arbitradas como indenização pelo conflito de 1914-18, que deu o exemplo clássico da hiperinflação num mercado de papel-moeda. O dólar americano equivalia a 4 marcos alemães em julho de 1914; em 15 de novembro de 1923, data da reforma monetária que estancou o processo, valia 4,2 trilhões. Processo semelhante deu-se na Áustria. Em 1946 a Hungria conheceu uma inflação de 400 octilhões porcento. Foram processos que seguiram calamidades, a peste, guerras de variadas naturezas etc. A crise da dívida latino-americana deu-se em tempos de paz e, por infeliz coincidência, com a restauração da democracia, que se viu obrigada a pagar o débito das políticas dos regimes de segurança nacional (Paarlberg, 1993; Horsman, 1988; Nussbaum, 1950; Schmukler e Marcus, 1983). A inflação é um fenômeno de redistribuição às avessas e a estabilização termina impondo a conta a alguém, e as soluções econômicas são soluções políticas.
Ao contrário do que se apregoa, portanto, o mercado não é um dado da natureza, e a idéia de lei do mercado comparável com a lei da gravidade é uma brincadeira sem graça, para as vítimas do status quo. O funcionamento do mercado depende sim de leis que policiem a propriedade privada e o cumprimento dos contratos. Neste processo, é bom lembrar, os países do Norte progridem na privatização e na desregulamentação em meio a novas formas de controle dos mercados. Basta ver a disputa acirrada entre Estados Unidos e Japão no que diz respeito a suas diferenças de comércio. Basta lembrar a existência das redes de empresas que controlam extensos setores por meio de franquias, joint-ventures, que impõem regulações semi-públicas ao mercado. Basta ver o papel desempenhado já não pelos estados nacionais mas pelos blocos regionais em que se definem regras de comportamento da economia. Basta ver, finalmente, o interesse com que os países do Norte velam pela imposição dura de leis de patentes uniformes e, o quanto possível, eficientemente aplicadas, aliás aplicadas com rigor em setores de ponta, ou da normalização ou certificação de produtos e serviços.
Com isto quero dizer que as diferenças entre Norte e Sul não podem ser minimizadas, no plano internacional, assim como as diferenças de classe, no plano nacional, não podem ser esquecidas. Se bem que avanços significativos tenham sido feitos no tratamento dos trabalhadores em alguns países do Norte, gerando um aburguesamento no consumo de massa da classe operária, a existência de uma classe ainda não integrada continua a incomodar a Europa Ocidental e os Estados Unidos, para não falar no Japão. Em todos estes lugares os trabalhadores estrangeiros constituem esta nova classe marginal, com a agravante de não serem nacionais e, portanto ao lado de sua pobreza carregarem as marcas étnicas e culturais de suas diferenças. Estes problemas são evidentes nas muitas tentativas que têm havido nos Estados Unidos e na Europa (o Japão é um caso que conheço menos), de retirar estes trabalhadores da rede de proteção universal do bem-estar social.
Nesta altura não é impertinente ressaltar que em meio a todas estas dificuldades dos novos pobres, o ideal dos direitos humanos e da democracia, mesmo que por contraste, mostra um lado luminoso em nossa comum herança cultural e jurídica. É que em todos os lugares em que a globalização e o liberalismo econômico voltam a um primeiro plano, a supressão dos direitos sociais, já ditos humanos, é combatida. Quando em 1994 os eleitores da Califórnia tentaram impedir que filhos dos imigrantes latino-americanos clandestinos fossem excluídos das escolas públicas, um grupo de cidadãos, voltando-se contra a maioria, recorreu ao Judiciário federal, para suspender a aplicação da proposta vitoriosa no referendo. Na Europa Ocidental já se debate a extensão do direito de voto aos "extra-comunitários", mesmo sem serem cidadãos, em casos determinados. Estes exemplos mostram um progresso, uma ampliação da esfera dos direitos fundamentais. A um homem do século XVIII ou mesmo do século XIX parecia muito natural que nem todos votassem ou participassem na vida política: afinal, escravos, mulheres, estrangeiros, analfabetos, filhos-família sem renda própria, "claramente" não dispunham da autonomia que se imaginava necessária para exercer a cidadania ativa. A situação de escravos negros, mulheres, calvinistas e judeus, por exemplo, foi objeto de acirrado debate, não de consenso, entre os revolucionários franceses (cf. Hunt, 1996). Este senso comum foi varrido de nossa história, mesmo que ainda hoje convivamos com enormes distorções, explorações e dominação econômica no processo eleitoral. Nosso senso comum de cidadania também hoje começa a ser abalado com esta "globalização" dos direitos humanos, na medida em que sociedades ainda abertas e democráticas, cujas divergências podem ser expressadas, mantêm este ideário de universalização da dignidade humana legalmente protegida.
Ainda do ponto de vista positivo, a globalização permite que a agenda da defesa da dignidade humana seja minimamente veiculada de forma universal. Se a censura de livros, artes e comunicação podia dar-se num universo de poderes locais e nacionais, com as novas formas de comunicação ela fica dificultada. Notícias de violações de direitos humanos podem ser rápidas, em tempo real, e minimamente podem despertar para uma agenda internacional. Não quero falar de ilusões: o poder dos meios de comunicação é ambíguo, muitas vezes perverso. Pode banalizar nossa indignação até o esgotamento e a indiferença, pode industrializar as imagens da opressão, pode alimentar preconceitos e a custa da repetição e convencer grandes massas, pode, finalmente, colaborar na construção de homens unidimensionais, rasos e não-autônomos, todo o oposto do ideal de agentes morais responsáveis que se encontra no fundamento dos direitos humanos. Mas isto mesmo demonstra o quanto o ideal universal de democracia e direitos humanos têm ainda a dizer neste mundo globalizado, recuperando, por exemplo, a luta pelo pluralismo na informação e na cultura (cf. Holston e Appadurai, 1996). Talvez, como dissera Marx, a humanidade só se coloque os problemas que pode realmente resolver. E os problemas da globalização começam a ter, na esfera dos direitos humanos, algumas respostas criativas e pioneiras: lembremos a existência de um número crescente de entidades não-governamentais voltadas para a defesa dos direitos humanos, ou do fato bastante simples de que o tema já não se consegue retirar da agenda política das democracias.

2. OS DIREITOS HUMANOS E
OS DIREITOS DOS POBRES
Seria fácil dizer que os direitos humanos são fundamentalmente direitos dos pobres. Quem são as vítimas mais freqüentes das violações dos direitos humanos? Em sociedades de consumo tenderão a ser os que consomem menos. Há, pois, uma ligação mais ou menos clara entre a situação social — de classe — das vítimas e a violação de seus direitos. Nestes termos, quando se observam as formas de exclusão que a globalização cria pode-se dizer que os direitos humanos num mundo globalizado são efetivamente direitos destes excluídos. Se a África perde sua importância estratégica como campo de batalha no mundo pós-guerra fria, basta esquecê-la, excluí-la, digamos, da ordem econômica mundial dominante. Ali, os genocídios, a fome, a violência política, tudo se aceita: afinal, eles são diferentes, não pertencem propriamente ao "nosso" mundo. O mesmo pode dizer-se de diversas regiões do mundo. Quem são as vítimas da violência policial, em primeiro lugar, senão os mais pobres? Quem são as vítimas dos ajustes estruturais, senão os que dependem dos hospitais e escolas públicas?
Isto tudo é verdade e, no entanto, a vulnerabilidade e a exclusão atingem outros grupos, que podem converter-se não apenas em classes, mas em castas, excluídos e párias. Em sociedades multiculturais, as exclusões étnicas e culturais são fortíssimas, para não falar nos casos de perseguição religiosa e política, e das discriminações de gênero e orientação sexual, e no fato de haver no mundo campos e campos de refugiados de toda sorte de conflitos. Então, vulnerabilidade e exclusão compõem a agenda normativa e moral de uma luta a favor dos direitos humanos. É fácil perceber a ligação entre a vulnerabilidade econômica e a exclusão. Ela está presente provavelmente na grande maioria dos casos. Mas a vulnerabilidade econômica transforma-se rapidamente em símbolo de identidade. Ninguém quer identificar-se com um pobre, já que o pobre, na sociedade de consumo é, por definição um perdedor. Existem outros perdedores, que vêm a tornar-se mais perdedores por pertencerem a certos grupos (homossexuais, negros e índios entre nós, por exemplo). Desta forma, o fundamento de uma política de direitos humanos é a identificação geral de todos com um grupo universal, o gênero humano, e nestes termos abrange a exclusão econômica — a pobreza, mas não se esgota nela.
Os pobres são vulneráveis, fáceis vítimas da exclusão social, porque não dispõem daquele meio fundamental que permite transitar de um sistema social a outro, o dinheiro. Quando vemos ou ouvimos os programas policiais nos meios de comunicação é muito mais freqüente a violação do direito a ser considerado inocente, de ter sua privacidade preservada quando se trata de "suspeitos" pobres, muitas vezes suspeitos por serem pobres. No entanto, aquilo pode acontecer a qualquer um, mesmo que de forma menos ostensiva. A capacidade de difamação dos meios de comunicação é incalculável, e a reparação dos seus resultados, dificílima.
Os pobres também são os que não podem escapar dos constran-gimentos de uma vida limitada às fronteiras de uma sociedade tradicional, não poucas vezes intolerante, preconceituosa e violenta. Tais estruturas sociais ocultam violências sérias, físicas e psicológicas, cujas vítimas são mulheres e especialmente crianças e adolescentes (vítimas de pais, mães, padrastos, madrastas, tios). Crianças pobres fugindo das violências familiares alimentam contingentes de crianças de rua(1).
No entanto, os direitos humanos contêm um ideal de igualdade universal. E este ideal reconhece que a tarefa dos direitos humanos é a compensação das vulnerabilidades e das desigualdades naturais e sociais. Uma doutrina dos direitos humanos equilibra-se entre dois pólos: o ideal da igualdade e o ideal da diferença. Ao mesmo tempo uma luta pela supressão de certas diferenças e pela preservação de particularismos. A luta pela supressão das diferenças expressa-se no ideal da igualdade perante a lei, direitos civis e políticos, e pela proporcional distribuição dos custos e benefícios da vida social, direitos econômicos e sociais. A luta pela diferença significa valorizar a pluralidade do gênero humano, a luta pela afirmação de identidades (cf. Habermas, 1994 e 1996; Taylor, 1994). Esta luta pelo particularismo apresenta-se de várias formas, algumas com caráter libertário, outras de caráter reacionário. Algumas tentam, em nome do ideal de identidade voltar atrás no ideal de universalidade, e nesta linha manifestam-se certos nacionalismos e fundamentalismos religiosos: trata-se de reduzir o espaço público duramente conquistado e mantido em sociedades pluralistas e democráticas. Algumas destas afirmações de identidade dirigem-se contra o efeito homogeneizador da indústria cultural. De qualquer modo, creio que o contato entre as culturas deve ser orientado pelo ideal do diálogo e da comunicação: nenhuma cultura humana deveria ser preservada como uma espécie ou um animal de zoológico. É tarefa das culturas vivas preservar-se em diálogo com as outras. Por isso regras de convivência, que impeçam o genocídio, são racional e praticamente indispensáveis. Em sociedades plurais, como é o caso da maioria das sociedades americanas, o fundamento da preservação das culturas encontra-se ainda, seja no princípio da igualdade do gênero humano, seja no princípio da autonomia dos grupos e dos indivíduos. Igualdade e autonomia implicam-se. O meu igual é meu igual na sua liberdade ou na sua capacidade para a liberdade. E desta igualdade de liberdade resulta também sua liberdade de viver, donde mais do que seu direito a não ser morto, pode reivindicar legitimamente um direito a subsistência, exigindo condições materiais.

3. OS PROBLEMAS DA EFETIVAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS
3.1. Exigência de uma cultura da universalidade dos direitos

A cultura dos direitos humanos exige universalização (o gênero humano como gênero universal), uma cultura do reconhecimento. A falta de popularidade do tema dos direitos humanos deve-se, sem dúvida, à nossa incapacidade de demonstrar sua universalidade. Como já foi dito por outros (Caldeira, 1991), na cultura brasileira a noção de direito confunde-se com a de privilégio. Por isso, os direitos humanos reivindicados tendem a ser compreendidos como privilégios dos bandidos, ou de grupos que têm como influenciar a feitura ou a aplicação das leis. Se os direitos humanos provêm de uma ética do universalismo, importa refletir em cada caso sobre o potencial conflito entre direitos e interesses, entre o que convém a uma pessoa ou grupo e aquilo que lhe é devido em razão de sua dignidade, e devido a todos e a qualquer um que pertença ao gênero humano. Para ilustrar as dificuldades concretas dos próprios juristas em torno deste tema existem alguns casos.
3.1.1. Apelação Cível 89.04.01659-2 (RS, TRF 4ª Região) julgada em 26.10.89. O Ministério Público Federal propôs ação civil pública contra a União Federal, Conservas Oderich S/A, Frigorífico Ideal S/A, Perdigão Agroindustrial S/A, COBAL, Frigorífico Extremo Sul e Frigorífico Bordon, para impedir a comercialização de carne importada da Europa, sob suspeita de contaminação radioativa por causa do acidente de Chernobyl. A ação foi julgada improcedente, pois os laudos técnicos apontavam inexistência de radiação em níveis perigosos para a saúde. Houve apelação e no curso desta as partes fizeram um acordo, que consistia em desistência do pedido desde que a carne fosse exportada. O fato mostra a incapacidade de se imaginar que alguns direitos são mais do que interesses negociados ou negociáveis, que se inserem numa esfera da dignidade humana e que, portanto, são indisponíveis, para usar a linguagem jurídica mais tradicional. O TRT da 4ª Região teve lucidez suficiente para não aceitar o acordo, por considerá-lo imoral: se a carne era imprópria para consumo de brasileiros, certamente deveria ser imprópria para consumo de bolivianos ou zairenses também. Isto apenas ilustra a dificuldade de se identificar com o gênero humano, de solidarizar-se, de desejar como lei universal aquilo que se deseja para si mesmo, acompanhando o fundamento da moral moderna. Trata-se de uma questão delicada, em que direitos humanos, direito à cidadania dos consumidores envolvem-se sem se confundir.
3.1.2. Outro exemplo concreto pode levar-nos à reflexão. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, anos atrás, conseguiu impedir a exibição pela televisão do filme "Calígula", com cenas de sexo explícito (cf. Recursos Especial n. 2.609-7/RJ, julgado em 14.12.94 no STJ) defendendo o interesse de menores, que merecem ser poupados, pela sua idade, de certas formas de "participação" no mundo adulto. Ocorre que hoje assistimos a cenas estarrecedoras de desrespeito aos direitos fundamentais, em programas de televisão, sem que tenham sido tomadas providências. Dois programas exibidos em São Paulo, "Na Rota do Crime" e "190 Urgente" apresentam sistematicamente cenas explícitas de violação do direito de intimidade, de privacidade, buscas sem mandado judicial etc., e continuam sendo veiculados. Pergunto-me se, neste caso, não contamos com o adormecimento de nossa consciência. Quem tomará a iniciativa de provocar um debate sobre este tema? Alguns certamente alegariam que a proibição judicial de tais programas consistiria censura. Outros poderão dizer que se trata de atividade criminosa, vez que a violação da privacidade que ali se assiste é crime. A verdade é que em geral não nos identificamos com as vítimas destes abusos: eles são os outros, nós somos os certinhos (cf. Cardia, 1995b, 27) e por isso, o mal feito aos outros não é de nossa conta.
3.1.3. Um último exemplo judicial da dificuldade de reconhecimento da dignidade humana fundamental é dado pelo acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (Ap. Civ. 240.511-1/7, rel. des. Raphael Salvador, julg. 03.04.96). A decisão foi por maioria de votos, voto vencido do Des. Willen. Decidindo um pedido de indenização da mãe de um dos 111 detentos mortos na Casa de Detenção (Carandiru) em outubro de 1992 em São Paulo, o desembargador Raphael Salvador faz as seguintes ponderações: que o Estado gastava quase R$ 100 diários com cada preso, enquanto o trabalhador ganha R$ 100 por mês para sustentar sua família; que os culpados pela morte dos 111 detentos foram as próprias vítimas, que haviam iniciado a rebelião; que a situação dos presos poderia ser considerada satisfatória se comparada com o que acontece na China (onde, segundo ele, 30 mil presos são mortos por ano) e em outros lugares da América (onde os presos são lançados na selva); que os presos vivem à custa do Estado, abrigados da chuva e das necessidades alimentares. A mais alta corte de justiça do Estado mais rico da federação termina, neste sentido, por reconhecer que as condições daquele infausto presídio são razoáveis, quando comparadas com outros lugares. Em resumo, na cultura expressa no voto vencedor, a comparação a ser feita, nos casos da espécie, não é com o ideal de direitos humanos expressos normativamente na lei ou nas convenções internacionais, mas com o padrão empiricamente verificável num país notoriamente conhecido no foro internacional como um resistente opositor à aplicação dos direitos humanos dentro de suas fronteiras. Transparece, aqui, a dificuldade em reconhecer-se a dignidade humana independentemente da sua culpa de delinqüente. Que alguém mereça ser punido por um crime é algo bem diferente de dizer que pelo mesmo crime lhe é retirada toda proteção contra a força alheia. Se isto se faz, é porque ele é considerado excluído do grupo, é um de fora, que não merece — por não participar, ser parte do grupo — as regras do próprio grupo. A confusão entre as duas coisas, pena e abandono à própria sorte corresponde a uma pena maior: a perda da qualidade de sujeito daquele grupo, a transformação em pária, para lembrar Hannah Arendt. Quando se vê o censo penitenciário do Estado de São Paulo (1994) mais se percebe que esta exclusão está determinada pela linha da propriedade: 57% dos presos cumprem pena por delitos contra o patrimônio (roubo e furto); homicídio e latrocínio correspondem a 11% do total de presos no Estado.
3.1.4. A mesma dificuldade em reconhecer universalmente a dignidade alheia (a alteridade) pode ser constatada no resultado da pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP a pedido da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo (Cardia, 1995a e 1995b). É notável, como reconhece Nancy Cardia, que haja um núcleo fundamental de direitos, como o direito a ser julgado com rapidez e o direito a ser considerado inocente até prova em contrário, que não recebe de amplos setores da população a devida importância (Cardia 1995b, 25 e 27). Curiosamente, a população reconhece que os direitos sociais e econômicos devem ser considerados direitos humanos. Evidente a confusão entre direitos e interesses, que tem na sociedade brasileira um efeito perverso no sentido de reforçar simbolicamente a luta de todos contra todos pela sobrevivência material, sem mobilizar efetivamente para a luta de todos por todos, isto é solidária, por direitos universais, também inalienáveis. A explicação para isto é complexa, sem dúvida. Preocupa-me apenas que muito da mobilização popular se faça em torno de uma "política de interesses", nem sempre respaldada por uma política dos "princípios".
3.1.5. Em resumo, quero dizer que a consciência moral da universalidade dos direitos humanos está longe de ser forte entre nós. E isto significa que não apenas o Estado é, como se costuma dizer, o grande responsável pela violação dos direitos humanos no Brasil, ou em muitos países do mundo. Por trás destes Estados em geral encontram-se sociedades que cultivam culturas intolerantes, cuja preservação, aliás, depende de seu fechamento ao exterior. Sem dúvida, é difícil encontrar lugares que apresentem o número de mortes pela polícia que nós apresentamos, como no ano de 1991, quando a Polícia Militar do Estado de São Paulo matou 1.140 pessoas, ou no ano de 1992, 1.359 pessoas; após o escândalo do massacre dos 111 detentos, os números caíram para 329 em 1993 e 413 em 1994 (NEV/Com. T. Vilela, 1993, 18). Deve chamar nossa atenção, porém, o fato, para mim alarmante, da indiferença generalizada para com tais números.
A desvalorização da vida democrática retrata-se em pesquisa divulgada este ano dando conta de que o Brasil é, entre os países latino-americanos, aquele em que menos se valoriza a democracia. Entre nós, 24% preferem um regime autoritário, 21% são indiferentes e 50% preferem um regime democrático. A Argentina, nossa parceira de Mercosul, mostra que 15% preferem um regime autoritário, enquanto 71% preferem um regime democrático. Dos números brasileiros que preferem um regime autoritário aproximam-se apenas o México (23%) e o Paraguai (26%). Isto deve levar-nos a suspeitar do grau de autoritarismo compartilhado por boa parcela da população brasileira, inclusive as vítimas preferenciais da violação dos direitos humanos.

3.2. Estado, sociedade e direitos humanos

Creio que ligado a este fenômeno está também a relação da sociedade brasileira com o seu Estado. Incapaz de fazê-lo funcionar como mediador de um sem-número de conflitos, sejam eles individuais — de justiça comutativa, ou plurilaterais — de Justiça distributiva, prefere predá-lo, acusando-o de todos os males, tratando-o como o grande "outro", em todos os sentidos. Não faço aqui a apologia do Estado brasileiro, ou da ordem. Os números de mortos pela polícia falam por si, mostram, sem disfarce, a guerra que este Estado promove a uma parcela de seus cidadãos. Quero apenas dizer que no meio de toda esta violência valeria a pena lembrar que não só a tirania dos governantes precisa ser contida, evitada, eliminada: também a tirania social, tirania dos grandes números, tirania do poder econômico, tirania dos mais fortes ou mais espertos. Temo que nossa cultura jurídica, de longa tradição, cultive ainda neste fim de século XX alguns sentidos (ou mitos) construídos pelos fundadores da República. Como sabemos, um dos ideais mais importantes da República foi o liberalismo econômico; o outro foi o liberalismo político. Este, como já amplamente estudado, limitou-se severamente pelas distorções ocorridas no processo eleitoral. Dentre os ideais liberais estava o do afastamento do Estado da vida privada e este mito escondia o fato de que este afastamento não poderia ser policial ou judicial. O desenvolvimento do liberalismo exigia tanto um judiciário quanto uma polícia suficientemente fortes e grandes para impor universalmente a lei. Neste aspecto, a primeira República teve pouco sucesso: se bem que pelas batalhas judiciais em torno do habeas corpus ampliado firmou-se entre nós uma importante independência do Supremo Tribunal Federal, os beneficiários eram poucos; é certo também que a justiça dos Estados, a justiça comum à qual se submetiam os cidadãos em geral, numericamente não estava equipada para impor universalmente a lei nos amplos sertões, e não gozava de organização e garantias hoje consideradas indispensáveis para seu regular funcionamento. Em tudo isto, a luta contra a arbitrariedade da Administração e a presença dos militares na política, encobriu o fato de que na esfera "privada" do cotidiano, por exemplo na apropriação das novas terras do "oeste paulista", era o poder privado que impunha uma cultura de violência, expropriação e exploração.

3.3. A redistribuição concentradora

Além da falta de universalidade dos direitos humanos, a cultura jurídica estimula em vários casos um iníquo processo de concentração de riqueza. A liberdade dos contratos e o direito adquirido comparecem como grandes obstáculos a todas as tentativas de reforma, que pudesse substancialmente alterar a presente distribuição de poder e de riqueza, ampliando a participação política e econômica de grandes grupos. O problema está, a meu ver, no uso que se faz indiscriminadamente do Estado, pelo qual grupos privilegiados obtém no processo legislativo, mas também freqüentemente no Judiciário, a manutenção ou mesmo a ampliação de sua capacidade de apropriar-se dos fundos públicos. Por vários meios tidos como democráticos, conserva-se um Estado que distribui às avessas os benefícios sociais. Alguns exemplos ajudam a compreender historicamente este processo.

3.3.1. A escravidão

Durante o século XIX discutia-se o fim da escravidão. Dominado por juristas, o debate esbarrava no direito de propriedade, direito adquirido dos senhores de escravos, protegido pelo artigo 179 da Constituição do Império. Aprovada em 1870 a Lei do Ventre Livre, nela foi constituído um título de indenização dos senhores, que seria pago pelo Tesouro imperial. Opiniões como a de Perdigão Malheiro, de que ao libertar os escravos o Império não os estava adquirindo para si e nem faria lucro com isto, de nada adiantaram. As advertências de Condorcet, feitas um século antes na França revolucionária, sobre o assunto, tampouco haviam sensibilizado uma estrutura que parecia natural, inevitável e invencível, como hoje se diz a respeito de alguns temas. As condenações, muitas vezes desastradas e vultosas do tesouro público, vêm freqüentemente recobertas, hoje em dia, pela mesma retórica que durante 65 anos(2) no império impediu o fim da escravidão e perpetuou entre nós um problema cujas conseqüências históricas ainda suportamos.

3.3.2. A inflação

Outro exemplo mais próximo é o da correção monetária das dívidas do Tesouro. Introduzida entre nós pelo regime militar, a correção monetária disseminou-se mantendo diferenças com as quais se beneficiavam alguns grupos. Como a indexação foi feita nos títulos do Tesouro, os grupos econômicos capazes de financiar a emissão de tais títulos resistiram de todos os modos à desindexação e à volta ao nominalismo monetário. Um dos casos mais interessantes ocorreu na tentativa de desindexação do governo Collor: deixando de corrigir os impostos por determinado índice, medida provisória também impôs a desindexação dos títulos a eles atrelados, os Bônus do Tesouro Nacional. Estes BTNs haviam sido emitidos para serem usados no pagamento de impostos, equivalendo pois a um adiantamento que os contribuintes fariam ao Tesouro. Contra a medida de desindexação os grandes detentores de BTNs (ao mesmo tempo grandes contribuintes) ingressaram em juízo e obtiveram em muitos casos o pagamento de seus títulos pela correção originalmente pactuada, em nome do direito adquirido, surpreendentemente por meio de mandados de segurança que, em toda a tradição do direito brasileiro, nunca puderam ser usados como ações de cobrança. Ameaçando prender funcionários da Administração, alguns juízes e tribunais obrigavam ao resgate dos títulos. O Tesouro, em nome do mesmo direito adquirido, não pôde corrigir os tributos na proporção equivalente (cf. Jansen, 1991, 102:121), visto que a parte da medida provisória que beneficiava os contribuintes não foi considerada inconstitucional.

3.3.3. A educação
Este fenômeno concentrador é evidente na educação: num primeiro momento, desinteressada de salvar a escola pública, submetida a uma política pública equivocada, certa faixa da classe média conseguiu transferir seus filhos para a rede privada de escolas. Vendo-se em dificuldades para mantê-los ali, uma parte da classe média passou a exigir do Estado medidas protetivas, tanto na legislação quanto na prestação de um serviço de assistência legal altamente qualificado dos agentes do Ministério Público. Este, em nome da defesa dos consumidores de educação, passou a exigir em juízo a redução das mensalidades ou dos reajustes de mensalidades. Vemos aí a incapacidade jurídica para enfrentar mais decididamente o problema fundamental que é o da reforma da educação pública. Em outros termos, vemos a questão colocar-se como de direito de consumo, o que é compreensível, não em termos de direito social universal. Tal fato não pode ser desqualificado: representa algo que em todos os países industrializados se verificou nos anos 60 e 70: o uso do direito do consumidor como instrumento de cidadania. Nestes outros lugares porém, o direito do consumidor foi usado para tentar controlar o poder econômico privado e cresceu em sociedades que mais enfaticamente, com estados mais fortes do que o brasileiro, foram capazes de impor custos aos capitalistas diante das ameaças do pós-guerra. No Brasil o que temos é uma diferença significativa entre níveis de consumo, dada nossa desigualdade social, e embora o direito do consumidor tenha um enorme potencial simbólico, aplicado em determinados casos pode permitir a apropriação de fundos públicos pelos que menos necessitam deles. Fundamental, pois, é permitir que juridicamente se questionem as formas de distribuição destes fundos. Neste sentido, um autor como o Ministério Público deveria e poderia prioritariamente, no caso da educação, intervir no questionamento das políticas da escola pública. E esta intervenção deve ter como propósito não transferir simplesmente para o judiciário a decisão mas sobretudo ampliar o debate sobre o problema dentro das instâncias administrativas responsáveis.(3)
3.3.4. Em resumo, o que pretendo dizer é que o Estado brasileiro não é, como quer o senso comum, um ente simples com interesses próprios, dominado por uma burocracia conspiratória. É, freqüentemente e onde o olhar dos juristas não suspeita ou não quer ver, um distribuidor às avessas de riqueza dentro da "sociedade civil". Acumula para o Brasil integrado, o Brasil dos que têm, e para eles repassa, por instrumentos tão simples quanto estes vistos acima. Ao mesmo tempo, é arena de uma disputa política que na ideologia jurídica trava-se entre o princípio do direito adquirido e da exclusão do Estado da vida econômica e da segurança (de vida e propriedade), e o princípio da promoção do bem comum, implicando o direito de subsistência de todos e distribuição "justa" dos custos e benefícios da vida social. Estes dois pólos estão contemplados na Constituição brasileira, exemplarmente no artigo 5º e no artigo 6º, assim como estão contemplados nos pactos internacionais sobre direitos civis e políticos e direitos sociais e econômicos. Sua interpretação dependerá de uma permanente batalha entre grupos, a expressar-se na prática e no discurso jurídico. Trata-se também de perceber que o Estado é ao mesmo tempo um dos grandes violadores dos direitos humanos e, na esfera nacional, seu mais visível — ou aparente — mediador institucional (cf. Faria, 1995).

4. A GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS:
PROBLEMAS INSTITUCIONAIS

4.1. Direitos humanos na esfera internacional
Na esfera internacional o modelo de arbitramento judicial das disputas dos direitos humanos tende a seguir o padrão triangular da jurisdição ordinária. As cortes permanentes (a Corte Interamericana, a Corte Européia, v.g.), os tribunais ad hoc (a exemplo do tribunal de Nuremberg, os tribunais para o caso da Bósnia) procuram punir crimes cometidos, pois o modelo aqui é o do direito penal. Outras instâncias internacionais têm outras formas de intervenção, como por exemplo, o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, tendo por tarefa proteger as vítimas, antes que punir os responsáveis.
A democratização dos estados nacionais e a internalização de agendas de defesa dos direitos humanos também está na mira de organizações como o Fundo Monetário Internacional, tendo em vista a constatação de que mesmo num mundo globalizado as instâncias locais de poder continuam sendo fundamentais para a garantia das pessoas. O FMI e o Banco Mundial vêm financiando uma série de estudos na América Latina para promover reformas nos judiciários locais (Dakolias, 1995). Alguns alertam para a ambigüidade de tais processos (Santos, 1996), mas é inegável que reformas são necessárias, como a expansão do controle de atos dos próprios governos.

4.2. O Brasil
O recurso ao judiciário contra a violação dos direitos humanos desenvolveu-se em algumas grandes tendências liberais. No caso do Brasil instituíra-se no império, com o Código do Processo Criminal de 1832, o habeas corpus e o júri, duas instituições alheias à tradição romano-canônica. Estes mesmos institutos foram mantidos na Constituição republicana de 1981, passando o habeas corpus a proteger contra atos de autoridade em geral, até que em 1934 insere-se o mandado de segurança nas disposições constitucionais. Um limite deste desenvolvimento é seu caráter individual, colocando sobre os ombros da vítima uma carga por vezes pesada: tratando-se de direitos patrimoniais ou, em alguns casos, da defesa da liberdade individual, é compreensível que o interessado seja capaz de rebelar-se. O mesmo não se dá, no entanto, nos casos de caráter coletivo, por exemplo quando a violação dos direitos está associada a uma discriminação ou preconceito. Nestes casos, a vítima pode ver-se obrigada a escolher entre submeter-se ao arbítrio de alguém e a vergonha generalizada de expor-se. Vítimas de racismo e discriminação, religiosa, étnica, de gênero e orientação sexual são alvos típicos destas escolhas dramáticas (Noel, 1991; Boswell, 1980). Os "suspeitos" comuns, vítimas freqüentes da violência policial, pertencem a grupos subalternos, para dizer o mínimo. A capacidade de enfrentar estas violações básicas da dignidade pessoal depende da organização de grupos, por isso é indispensável valorizar os direitos civis e políticos: só eles permitem ampliar a consciência da injustiça no espaço público.
A defesa dos direitos humanos em juízo tem um caráter normativo e pedagógico. Ela não supre as políticas de recolhimento ou redistribuição: ela as estimula, provoca ou legitima. Daí a importância da advocacia de interesse público, fato muito desenvolvido no Brasil dos últimos anos, com inúmeros grupos de defesa dos direitos humanos espalhados pelo País. Característica importante de boa parte destes grupos foi seu surgimento em níveis locais, envolvendo diretamente vítimas e vizinhos nos casos e, sobretudo, na apuração. Sem estes grupos, incontáveis casos estariam sem solução até hoje. A tentativa de reforma do judiciário que hoje se discute é fruto destas organizações também(4), que exigem mais transparência e responsabilidade no processamento dos feitos e na administração da justiça.
A defesa dos direitos humanos de caráter sócio-econômico provoca o questionamento institucional do judiciário. Sendo fundado no princípio da legalidade, da inércia da jurisdição (ne procedat iudex sine auctorem) e do contraditório bipolar, estará equipado para dirimir questões distributivas? Seu funcionamento é adequado para aplicar (e fazer com que se apliquem) consistentemente regras definidas a casos ocorridos, para punir e corrigir. Mas não é adequado, por isto mesmo, para resolver conflitos para o futuro, em que a solução não depende de aplicar uma regra, mas criar uma nova regra para a prática futura das partes e, especialmente, em que o conflito não é bipolar mas plurilateral, ou seja, envolvendo um número indeterminado de pessoas com interesses não necessariamente opostos. A função jurisdicional não equivale ao estabelecimento de grupos de cooperação, pois foi desenhada para aplicar regras de exclusão (liberdades negativas). No lugar de disputas arbitradas sob forma judicial, são os centros de negociação os novos mecanismos: conselhos, sobretudo, como já se vê no caso da Lei Orgânica da Saúde e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta consideração seria diferente se houvesse um direito a renda mínima, exigível individualmente, como já se criou em certos lugares. Este sim, seria um instrumento redistributivo colocado nas mãos de cada um para ser reivindicado sob a forma judicial.
Se o judiciário não se adequa a resolver muitos conflitos distributivos em torno dos direitos sociais e econômicos, pode ainda ser explorado na proteção de todos os direitos humanos. Um exemplo do ponto onde confluem políticas públicas e judiciário é o da corrupção. Pode-se imaginar que na corrupção o que está em jogo é a moralidade pública, exigência que os fundos comuns sejam arrecadados com critérios objetivos/universais e impessoais e da mesma forma sejam distribuídos de forma objetiva/universal e impessoal, obedecidos os princípios de justiça distributiva largamente reconhecidos: merecimento (capacidade) e necessidade. Os casos de corrupção, escandalosos no mundo inteiro, são casos de apropriação privada (não necessariamente pessoal) de fundos comuns. Para aumentar a eficácia no julgamento de tais casos é preciso alterar os meios de apuração e de responsabilidade, até hoje voltados majoritariamente para punir os delitos individuais contra patrimônio e vida individuais, é preciso rever a legislação a respeito dos crimes de responsabilidade. Um caso que está hoje nos jornais é o dos bancos estaduais: o que aconteceu em geral foi o uso desses bancos como instrumentos de emissão do Estado. Colocada a questão em termos de atos individuais, do ponto de vista de atividades negociais particulares, dificilmente chegará o Judiciário a alguma decisão razoável.
Mesmo aqui, porém, o papel do judiciário é parcial, visto que ainda seria necessário retirar de certos órgãos a capacidade de conceder privilégios, ampliar participação popular nas decisões, debates, criar conselhos, dar universalidade aos direitos sociais, instituindo-se a renda mínima (cf. Ferrajoli, 1996).
Finalmente, compensa lembrar o problema da impunidade, que tem muitas causas: influências políticas nos casos, problemas na fase de apuração, dificuldades de a cultura jurídica adaptar-se a novos problemas e, como visto em alguns casos retro expostos, incorporar padrões de cidadania mais amplos e mais sensíveis a grupos excluídos. A impunidade resulta, portanto, de um desvio de poder, do exercício privado da violência. Uma nova cultura exige que se aplique a lei, que se imponha a todos o respeito recíproco. Para isto, mudanças na "cabeça" dos juízes, dos advogados, dos promotores, mas também mudança nas instituições.
A administração da justiça também sofre dos mesmos males dos outros serviços públicos brasileiros. Uma sobrecarga que se constata nos números, e uma irracionalidade no uso dos meios. No Brasil existe em média 1 juiz para 29.542 habitantes (Alagoas 1:44 mil, Pernambuco 1:40.228: Maranhão 1:39.383; Bahia 1:38.774), segundo dados divulgados pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV, 1995). Dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para 1994, indicavam uma proporção aproximada de 1 juiz para cada 20.025 habitantes (estimativa de habitantes do Estado feita pela Fundação Seade). Enquanto isto, na Alemanha a relação é de 1 juiz para cada 3.448 habitantes; na Itália, 1 para cada 7.692 habitantes e na França 1 para cada 7.142. Os números também são enormes quanto aos processos nos tribunais brasileiros. O Supremo Tribunal Federal mostra um total de 164.402processos entrados entre outubro de 1988 (data entrada em vigor da Constituição Federal) e primeira semana de agosto de 1996. No mesmo período foram julgados 146.355. Foram 86.278 recursos extraordinários entrados, e julgados 77.705; muitos casos de agravos de instrumento em recursos extraordinários ou não (58.302), ou mesmo ações diretas de inconstitucionalidade (1.465). Mandados de segurança somaram 1.193. Relatório do ano de 1994indica que foram distribuídos no STF 26.441 processos, e em 1995, 25.998. No caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, apenas no ano de 1995, o Departamento de Processamento de 2ª instância informa que entraram no TJ 87.504 processos e foram julgados 74.965. Ações civis públicas, apenas no ano de 1995, foram 652 (na Seção Civil de Direito Privado e na de Direito Público). Mandados de segurança foram 5.337.
Quanto à irracionalidade dos meios é suficiente fazer referência ao sistema cartorial brasileiro. Uma grande reforma guiada não apenas por juristas, mas por especialistas em administração creio que seria mais do que bem vinda. O número de recursos vicia todo o sistema: sabedores de que sempre há um recurso todos tratam de usá-los, e tentando evitá-los, juízes e tribunais decidem os casos com um excesso de procedimentalismo (que beneficia uns mas não qualquer um). Os agravos para fazer chegar ao STJ e ao STF recursos especiais ou extraordinários são numerosíssimos. Como os processos são majoritariamente escritos, a confrontação concentrada das partes na audiência inexiste na prática: as provas e os documentos são juntados numa seqüência alternada, em que se sucedem os despachos de "diga a parte contrária", "ciência disto e daquilo", e assim por diante.
Enfim, há um longo caminho a percorrer para racionalizar o sistema, sem suprimir garantias.
Em tudo isto é notável que as receitas mais comuns da globalização não se prestam para as tarefas da defesa dos direitos humanos de forma muito simples e imediata. Se o propósito destas lutas é, sem dúvida, a imposição universal e igualitária da lei, é também a reforma das leis, das instituições e da cultura que promovem formas permanentes de exclusão moral, social, política e econômica”.

BIBLIOGRAFIA
BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and
homosexuality. Chicago: University of Chicago Press, 1980.
CALDEIRA, Teresa. Direitos humanos ou 'privilégios de bandidos'? Desventuras da democratização brasileira. Novos Estudos Cebrap, 30:162-174, jul. 1991.
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GOMIEN, Donna, (no prelo) "Nothing bad intended: child discipline,
punishment, and survival in a shantytown in Rio de Janeiro, Brazil"
GUTMAN, Amy, (Ed.). Multiculturalism. Princeton (NJ): Princeton
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___________
* Texto da palestra proferida na Seminário Internacional de Direitos Humanos — Direitos Humanos, Globalização e Pobreza, no dia 28.11.96, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP.
** Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP.
(1) Alguns estudos de antropologia mostram entre nós estas formas de violência, exclusão e preconceito. Por exemplo Teresa Caldeira (1992) City of Walls: crime, segregation and citizenship in São Paulo. Berkeley, tese de doutorado, Universidade da Califórnia em Berkeley; Donna Goldstein (no prelo) ""Nothing bad intended: child discipline, punishment and survival in a shantytown in Rio de Janeiro, Brazil", no arquivo pessoal do autor.
(2) Conto os 65 anos a partir da memória sobre a escravidão apresentada por José Bonifácio à assembléia constituinte, em 1823, propondo a abolição gradativa e meios de integração dos libertos à vida econômica, inclusive recebendo dadas de terra.
(3) Um esclarecimento é necessário. Um estudo empírico talvez venha mostrar que esta "classe média" que necessita da intervenção do Ministério Público seja realmente uma parte da classe dos trabalhadores que luta para manter um padrão de consumo que vai perdendo, na medida em que a economia brasileira tem sido incapaz de ampliar generalizadamente — ou seja, sem concentração excessiva — a renda. Neste sentido, a defesa de certos interesses privados pelo Ministério Público é compreensível e, em alguns casos aceitável e justificável. No entanto, formas alternativas de intervenção deveriam ser mais exploradas, tais como a constituição de conselhos capazes de debater as políticas de educação pública, por exemplo, e levá-las a execução.
(4) Há um evidente interesse de organizações internacionais e do grande interesse econômico "global" na reforma do judiciário no Brasil e na América Latina. Esta advertência já foi feita por Boaventura Sousa Santos e é clara no ensaio de Maria Dakolias. Uma das justificativas iniciais para o texto é justamente a necessidade de um judiciário eficiente para fazer cumprir os contratos e, portanto, dar segurança a investidores internacionais. Além de alguns equívocos por causa de generalizações indevidas — o caso brasileiro não corresponde a várias afirmações feitas — o texto é revelador de um juízo prévio com relação à América Latina. Surpreende qualquer latino-americano bem informado: todos sabem que nossos tribunais foram e continuam sendo bastiões seguros do direito de propriedade e dos contratos, condenando com freqüência e facilidade surpreendentes, para os norte-americanos bem informados, todos os níveis de governo. Vários estudos feitos na Europa e nos EUA demonstram que o uso dos tribunais por grandes empresas naquelas regiões é mais complexo do que o que consta nos livros de direito.
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4.2. O Brasil
O recurso ao judiciário contra a violação dos direitos humanos desenvolveu-se em algumas grandes tendências liberais. No caso do Brasil instituíra-se no império, com o Código do Processo Criminal de 1832, o habeas corpus e o júri, duas instituições alheias à tradição romano-canônica. Estes mesmos institutos foram mantidos na Constituição republicana de 1981, passando o habeas corpus a proteger contra atos de autoridade em geral, até que em 1934 insere-se o mandado de segurança nas disposições constitucionais. Um limite deste desenvolvimento é seu caráter individual, colocando sobre os ombros da vítima uma carga por vezes pesada: tratando-se de direitos patrimoniais ou, em alguns casos, da defesa da liberdade individual, é compreensível que o interessado seja capaz de rebelar-se. O mesmo não se dá, no entanto, nos casos de caráter coletivo, por exemplo quando a violação dos direitos está associada a uma discriminação ou preconceito. Nestes casos, a vítima pode ver-se obrigada a escolher entre submeter-se ao arbítrio de alguém e a vergonha generalizada de expor-se. Vítimas de racismo e discriminação, religiosa, étnica, de gênero e orientação sexual são alvos típicos destas escolhas dramáticas (Noel, 1991; Boswell, 1980). Os "suspeitos" comuns, vítimas freqüentes da violência policial, pertencem a grupos subalternos, para dizer o mínimo. A capacidade de enfrentar estas violações básicas da dignidade pessoal depende da organização de grupos, por isso é indispensável valorizar os direitos civis e políticos: só eles permitem ampliar a consciência da injustiça no espaço público.
A defesa dos direitos humanos em juízo tem um caráter normativo e pedagógico. Ela não supre as políticas de recolhimento ou redistribuição: ela as estimula, provoca ou legitima. Daí a importância da advocacia de interesse público, fato muito desenvolvido no Brasil dos últimos anos, com inúmeros grupos de defesa dos direitos humanos espalhados pelo País. Característica importante de boa parte destes grupos foi seu surgimento em níveis locais, envolvendo diretamente vítimas e vizinhos nos casos e, sobretudo, na apuração. Sem estes grupos, incontáveis casos estariam sem solução até hoje. A tentativa de reforma do judiciário que hoje se discute é fruto destas organizações também(4), que exigem mais transparência e responsabilidade no processamento dos feitos e na administração da justiça.
A defesa dos direitos humanos de caráter sócio-econômico provoca o questionamento institucional do judiciário. Sendo fundado no princípio da legalidade, da inércia da jurisdição (ne procedat iudex sine auctorem) e do contraditório bipolar, estará equipado para dirimir questões distributivas? Seu funcionamento é adequado para aplicar (e fazer com que se apliquem) consistentemente regras definidas a casos ocorridos, para punir e corrigir. Mas não é adequado, por isto mesmo, para resolver conflitos para o futuro, em que a solução não depende de aplicar uma regra, mas criar uma nova regra para a prática futura das partes e, especialmente, em que o conflito não é bipolar mas plurilateral, ou seja, envolvendo um número indeterminado de pessoas com interesses não necessariamente opostos. A função jurisdicional não equivale ao estabelecimento de grupos de cooperação, pois foi desenhada para aplicar regras de exclusão (liberdades negativas). No lugar de disputas arbitradas sob forma judicial, são os centros de negociação os novos mecanismos: conselhos, sobretudo, como já se vê no caso da Lei Orgânica da Saúde e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta consideração seria diferente se houvesse um direito a renda mínima, exigível individualmente, como já se criou em certos lugares. Este sim, seria um instrumento redistributivo colocado nas mãos de cada um para ser reivindicado sob a forma judicial.
Se o judiciário não se adequa a resolver muitos conflitos distributivos em torno dos direitos sociais e econômicos, pode ainda ser explorado na proteção de todos os direitos humanos. Um exemplo do ponto onde confluem políticas públicas e judiciário é o da corrupção. Pode-se imaginar que na corrupção o que está em jogo é a moralidade pública, exigência que os fundos comuns sejam arrecadados com critérios objetivos/universais e impessoais e da mesma forma sejam distribuídos de forma objetiva/universal e impessoal, obedecidos os princípios de justiça distributiva largamente reconhecidos: merecimento (capacidade) e necessidade. Os casos de corrupção, escandalosos no mundo inteiro, são casos de apropriação privada (não necessariamente pessoal) de fundos comuns. Para aumentar a eficácia no julgamento de tais casos é preciso alterar os meios de apuração e de responsabilidade, até hoje voltados majoritariamente para punir os delitos individuais contra patrimônio e vida individuais, é preciso rever a legislação a respeito dos crimes de responsabilidade. Um caso que está hoje nos jornais é o dos bancos estaduais: o que aconteceu em geral foi o uso desses bancos como instrumentos de emissão do Estado. Colocada a questão em termos de atos individuais, do ponto de vista de atividades negociais particulares, dificilmente chegará o Judiciário a alguma decisão razoável.
Mesmo aqui, porém, o papel do judiciário é parcial, visto que ainda seria necessário retirar de certos órgãos a capacidade de conceder privilégios, ampliar participação popular nas decisões, debates, criar conselhos, dar universalidade aos direitos sociais, instituindo-se a renda mínima (cf. Ferrajoli, 1996).
Finalmente, compensa lembrar o problema da impunidade, que tem muitas causas: influências políticas nos casos, problemas na fase de apuração, dificuldades de a cultura jurídica adaptar-se a novos problemas e, como visto em alguns casos retro expostos, incorporar padrões de cidadania mais amplos e mais sensíveis a grupos excluídos. A impunidade resulta, portanto, de um desvio de poder, do exercício privado da violência. Uma nova cultura exige que se aplique a lei, que se imponha a todos o respeito recíproco. Para isto, mudanças na "cabeça" dos juízes, dos advogados, dos promotores, mas também mudança nas instituições.
A administração da justiça também sofre dos mesmos males dos outros serviços públicos brasileiros. Uma sobrecarga que se constata nos números, e uma irracionalidade no uso dos meios. No Brasil existe em média 1 juiz para 29.542 habitantes (Alagoas 1:44 mil, Pernambuco 1:40.228: Maranhão 1:39.383; Bahia 1:38.774), segundo dados divulgados pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV, 1995). Dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para 1994, indicavam uma proporção aproximada de 1 juiz para cada 20.025 habitantes (estimativa de habitantes do Estado feita pela Fundação Seade). Enquanto isto, na Alemanha a relação é de 1 juiz para cada 3.448 habitantes; na Itália, 1 para cada 7.692 habitantes e na França 1 para cada 7.142. Os números também são enormes quanto aos processos nos tribunais brasileiros. O Supremo Tribunal Federal mostra um total de 164.402processos entrados entre outubro de 1988 (data entrada em vigor da Constituição Federal) e primeira semana de agosto de 1996. No mesmo período foram julgados 146.355. Foram 86.278 recursos extraordinários entrados, e julgados 77.705; muitos casos de agravos de instrumento em recursos extraordinários ou não (58.302), ou mesmo ações diretas de inconstitucionalidade (1.465). Mandados de segurança somaram 1.193. Relatório do ano de 1994indica que foram distribuídos no STF 26.441 processos, e em 1995, 25.998. No caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, apenas no ano de 1995, o Departamento de Processamento de 2ª instância informa que entraram no TJ 87.504 processos e foram julgados 74.965. Ações civis públicas, apenas no ano de 1995, foram 652 (na Seção Civil de Direito Privado e na de Direito Público). Mandados de segurança foram 5.337.
Quanto à irracionalidade dos meios é suficiente fazer referência ao sistema cartorial brasileiro. Uma grande reforma guiada não apenas por juristas, mas por especialistas em administração creio que seria mais do que bem vinda. O número de recursos vicia todo o sistema: sabedores de que sempre há um recurso todos tratam de usá-los, e tentando evitá-los, juízes e tribunais decidem os casos com um excesso de procedimentalismo (que beneficia uns mas não qualquer um). Os agravos para fazer chegar ao STJ e ao STF recursos especiais ou extraordinários são numerosíssimos. Como os processos são majoritariamente escritos, a confrontação concentrada das partes na audiência inexiste na prática: as provas e os documentos são juntados numa seqüência alternada, em que se sucedem os despachos de "diga a parte contrária", "ciência disto e daquilo", e assim por diante.
Enfim, há um longo caminho a percorrer para racionalizar o sistema, sem suprimir garantias.
Em tudo isto é notável que as receitas mais comuns da globalização não se prestam para as tarefas da defesa dos direitos humanos de forma muito simples e imediata. Se o propósito destas lutas é, sem dúvida, a imposição universal e igualitária da lei, é também a reforma das leis, das instituições e da cultura que promovem formas permanentes de exclusão moral, social, política e econômica.

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* Texto da palestra proferida na Seminário Internacional de Direitos Humanos — Direitos Humanos, Globalização e Pobreza, no dia 28.11.96, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP.
** Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP.
(1) Alguns estudos de antropologia mostram entre nós estas formas de violência, exclusão e preconceito. Por exemplo Teresa Caldeira (1992) City of Walls: crime, segregation and citizenship in São Paulo. Berkeley, tese de doutorado, Universidade da Califórnia em Berkeley; Donna Goldstein (no prelo) ""Nothing bad intended: child discipline, punishment and survival in a shantytown in Rio de Janeiro, Brazil", no arquivo pessoal do autor.
(2) Conto os 65 anos a partir da memória sobre a escravidão apresentada por José Bonifácio à assembléia constituinte, em 1823, propondo a abolição gradativa e meios de integração dos libertos à vida econômica, inclusive recebendo dadas de terra.
(3) Um esclarecimento é necessário. Um estudo empírico talvez venha mostrar que esta "classe média" que necessita da intervenção do Ministério Público seja realmente uma parte da classe dos trabalhadores que luta para manter um padrão de consumo que vai perdendo, na medida em que a economia brasileira tem sido incapaz de ampliar generalizadamente — ou seja, sem concentração excessiva — a renda. Neste sentido, a defesa de certos interesses privados pelo Ministério Público é compreensível e, em alguns casos aceitável e justificável. No entanto, formas alternativas de intervenção deveriam ser mais exploradas, tais como a constituição de conselhos capazes de debater as políticas de educação pública, por exemplo, e levá-las a execução.

(4) Há um evidente interesse de organizações internacionais e do grande interesse econômico "global" na reforma do judiciário no Brasil e na América Latina. Esta advertência já foi feita por Boaventura Sousa Santos e é clara no ensaio de Maria Dakolias. Uma das justificativas iniciais para o texto é justamente a necessidade de um judiciário eficiente para fazer cumprir os contratos e, portanto, dar segurança a investidores internacionais. Além de alguns equívocos por causa de generalizações indevidas — o caso brasileiro não corresponde a várias afirmações feitas — o texto é revelador de um juízo prévio com relação à América Latina. Surpreende qualquer latino-americano bem informado: todos sabem que nossos tribunais foram e continuam sendo bastiões seguros do direito de propriedade e dos contratos, condenando com freqüência e facilidade surpreendentes, para os norte-americanos bem informados, todos os níveis de governo. Vários estudos feitos na Europa e nos EUA demonstram que o uso dos tribunais por grandes empresas naquelas regiões é mais complexo do que o que consta nos livros de direito.

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