DIREITOS HUMANOS, POBREZA E GLOBALIZAÇÃO
“DIREITOS HUMANOS,
POBREZA E GLOBALIZAÇÃO*
José Reinaldo de Lima
Lopes**
Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP.
"Sabedoria é uma teoria das
máximas para escolher os meios mais adequados a trazer vantagem às nossas
intenções premeditadas, o que vem a ser negar em suma a existência de uma
moral. (...) Sem dúvida, quando não existe liberdade nem lei moral fundada
nela, mas tudo o que acontece, ou pode acontecer, é puro mecanismo da natureza,
a política (enquanto arte de utilizar este mecanismo para o governo dos homens)
equipara-se à sabedoria prática inteira e o conceito de direito é uma idéia
desprovida de conteúdo."
(I. KANT, Sobre a concordância entre a moral
e a política a
propósito da paz perpétua).
Atualmente tentam convencer-nos de que
o mundo da política é um mundo de sabedoria sem moral. Tentam convencer-nos que
a única tarefa da política é promover a adaptação dos homens a forças naturais
inelutáveis. Uma destas forças naturais seria o mercado. Outra força seria a
ordem natural tradicional, impondo um mundo dividido entre pessoas respeitáveis
e respeitadas e pessoas desprezíveis e desprezadas. Tentam convencer-nos que
esta invenção humana, histórica e social chamada mercado, chamada capital e
capitalismo é um dado da natureza exterior à ação humana; dado, sim, mas do
mundo da ação humana e da liberdade. Para aqueles que recusam aceitar este
senso comum, sobra a desconfortável posição de minoria, resta a tarefa de atuar
alternativamente, demonstrando na prática o equívoco da teoria alheia, e
permanece o dever de racionalmente debater e demonstrar o engano de seus
opositores.
1. GLOBALIZAÇÃO,
POBREZA E DIREITOS HUMANOS - UMA CONEXÃO DOS TEMAS
A globalização é essencialmente uma
nova etapa na liberdade de circulação dos capitais. Sinto-me dispensado de
defini-la com maior rigor. Aproveito, no entanto, lições alheias para apontar
alguns elementos estruturais do fenômeno. Em primeiro lugar, na esfera da
produção, amplia-se a internacionalização dos produtos: se o capitalismo do
século XIX e XX precisou do colonialismo e do imperialismo para garantir o
fluxo de matérias primas para os países centrais, nacionalmente divididos, e o
refluxo dos produtos acabados para os países periféricos, a produção dita
global supera algumas fronteiras entre estados das economias mais avançadas. O
produto é um composto de projeto, financiamento, componentes, montagem e
marketing elaborados por uma rede de unidades produtivas, organizadas em uma
empresa multinacional ou em várias empresas ligadas entre si por laços
diversos. A maior parte do comércio internacional dá-se entre unidades
diferentes de uma mesma rede ou teia de empresas (Reich, 1993:163).
A globalização do sistema financeiro
foi a mais avançada. Sua regulação foi deixada a um processo privado, que
muitas vezes assumiu a forma da normatização (ou normalização) velha conhecida
dos homens de negócios, a lex mercatoria. No caso dos serviços
financeiros, a sobrevivência da regulação é clara quando se pensa que os blocos
regionais de economia e comércio traçam políticas monetárias comuns e,
sobretudo, integram-se de modo a permitir controles transnacionais do movimento
de capitais. É neste sentido que alguns falam na existência de um governo
mundial de fato cuja sede não se encontra no simbólico edifício sede das Nações
Unidas em Nova Iorque, mas noFundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, em Washington.
O papel destes dois organismos na
globalização não pode ser exagerado. Por meio dos chamados Programas de Ajuste Estrutural (PAE), os técnicos do FMI foram impondo de
modo generalizado aos países do leste europeu, América Latina e África,
reformas cujos custos sociais ainda não foram computados. O modelo do FMI, de
austeridade fiscal e privatização, aplicado indiscriminadamente, foi chamado
por alguns de "a receita para o desastre". O fato de o modelo ser
global e não construído para cada caso demonstra seu caráter normativo-ideológico
(Fiss, 1996). Como a África tornou-se, no
mundo globalizado, um continente esquecido, as mortes pela fome, por guerras
civis e por genocídios raramente entram nos cômputos ou nas lembranças da
opinião pública. Mais ainda, pouco se fala da responsabilidade mundial, e
especialmente das antigas "potências coloniais", hoje respeitáveis
países social-democratas do Ocidente europeu, para com a descartada África,
cuja situação dramática é uma multiplicação exponencial dos muitos azares com
os quais convivemos na América Latina. Regulando o acesso aos mercados
financeiros internacionais, seja concedendo recursos do Banco Mundial, seja
tornando aceitáveis para a banca e os investidores os países que se submetem a
seus programas, estas agências de governo internacional via economia, ajudaram
a construir este artefato que se chama mercado global.
O surto inflacionário da década de
1980/90 na América Latina, no qual interveio o FMI, foi dos poucos na história
que decorreram não em razão de dívidas de guerra ou em pós-guerra, mas em
tempos de paz. Antes desta crise financeira, conhecida como crise da dívida
externa da América Latina, outras grandes inflações conhecidas na história
ocidental tiveram como causas próximas certas "calamidades". No
período de Diocleciano sabe-se que houve um surto inflacionário, combatido com
um edito fixando preços em 301 A.D. A peste de 1348 na Europa, além de ser a
maior catástrofe demográfica conhecida (aproximadamente 20 milhões de mortos,
ou um terço da população européia em cerca de dois anos) provocou uma carestia
extraordinária. A chegada da prata americana no mercado europeu no século XVI,
via Espanha, marca outro período de inflação histórica. A França atravessou uma
crise financeira grave durante quase todo o século XVIII, resultado de sua
política militar expansionista, mas é no período revolucionário que a emissão
de assignats registra outro pico histórico, dada a situação de guerra. Também a
guerra de independência dos EUA provocou notável inflação, para a época. A
guerra civil, no século seguinte, comportou outro período inflacionário
relevante, no meio de uma certa estabilidade generalizada da moeda que o resto
do mundo gozava sob a "pax britannica". Foi a Alemanha, submetida ao pagamento de dívidas de guerra arbitradas
como indenização pelo conflito de 1914-18, que deu o exemplo clássico da
hiperinflação num mercado de papel-moeda. O dólar americano equivalia a 4
marcos alemães em julho de 1914; em 15 de novembro de 1923, data da reforma
monetária que estancou o processo, valia 4,2 trilhões. Processo semelhante
deu-se na Áustria. Em 1946 a Hungria conheceu uma inflação de 400 octilhões
porcento. Foram processos que seguiram calamidades, a peste, guerras de
variadas naturezas etc. A crise da dívida latino-americana deu-se em tempos de
paz e, por infeliz coincidência, com a restauração da democracia, que se viu
obrigada a pagar o débito das políticas dos regimes de segurança nacional (Paarlberg, 1993; Horsman, 1988; Nussbaum, 1950; Schmukler e Marcus, 1983). A inflação é um fenômeno de redistribuição às avessas e a
estabilização termina impondo a conta a alguém, e as soluções econômicas são
soluções políticas.
Ao contrário do que se apregoa,
portanto, o mercado não é um dado da natureza, e a idéia de lei do mercado
comparável com a lei da gravidade é uma brincadeira sem graça, para as vítimas
do status quo. O funcionamento do
mercado depende sim de leis que policiem a propriedade privada e o cumprimento
dos contratos. Neste processo, é bom lembrar, os países do Norte progridem na
privatização e na desregulamentação em meio a novas formas de controle dos
mercados. Basta ver a disputa acirrada entre Estados Unidos e Japão no que diz
respeito a suas diferenças de comércio. Basta lembrar a existência das redes de
empresas que controlam extensos setores por meio de franquias, joint-ventures, que impõem regulações semi-públicas ao mercado. Basta ver o papel
desempenhado já não pelos estados nacionais mas pelos blocos regionais em que
se definem regras de comportamento da economia. Basta ver, finalmente, o
interesse com que os países do Norte velam pela imposição dura de leis de
patentes uniformes e, o quanto possível, eficientemente aplicadas, aliás
aplicadas com rigor em setores de ponta, ou da normalização ou certificação de
produtos e serviços.
Com isto quero dizer que as diferenças
entre Norte e Sul não podem ser minimizadas, no plano internacional, assim como
as diferenças de classe, no plano nacional, não podem ser esquecidas. Se bem
que avanços significativos tenham sido feitos no tratamento dos trabalhadores
em alguns países do Norte, gerando um aburguesamento no consumo de massa da
classe operária, a existência de uma classe ainda não integrada continua a
incomodar a Europa Ocidental e os Estados Unidos, para não falar no Japão. Em
todos estes lugares os trabalhadores estrangeiros constituem esta nova classe
marginal, com a agravante de não serem nacionais e, portanto ao lado de sua
pobreza carregarem as marcas étnicas e culturais de suas diferenças. Estes problemas
são evidentes nas muitas tentativas que têm havido nos Estados Unidos e na
Europa (o Japão é um caso que conheço menos), de retirar estes trabalhadores da
rede de proteção universal do bem-estar social.
Nesta altura não é impertinente
ressaltar que em meio a todas estas dificuldades dos novos pobres, o ideal dos
direitos humanos e da democracia, mesmo que por contraste, mostra um lado
luminoso em nossa comum herança cultural e jurídica. É que em todos os lugares
em que a globalização e o liberalismo econômico voltam a um primeiro plano, a
supressão dos direitos sociais, já ditos humanos, é combatida. Quando em 1994
os eleitores da Califórnia tentaram impedir que filhos dos imigrantes
latino-americanos clandestinos fossem excluídos das escolas públicas, um grupo
de cidadãos, voltando-se contra a maioria, recorreu ao Judiciário federal, para
suspender a aplicação da proposta vitoriosa no referendo. Na Europa Ocidental
já se debate a extensão do direito de voto aos "extra-comunitários",
mesmo sem serem cidadãos, em casos determinados. Estes exemplos mostram um
progresso, uma ampliação da esfera dos direitos fundamentais. A um homem do
século XVIII ou mesmo do século XIX parecia muito natural que nem todos
votassem ou participassem na vida política: afinal, escravos, mulheres,
estrangeiros, analfabetos, filhos-família sem renda própria,
"claramente" não dispunham da autonomia que se imaginava necessária
para exercer a cidadania ativa. A situação de escravos negros, mulheres,
calvinistas e judeus, por exemplo, foi objeto de acirrado debate, não de
consenso, entre os revolucionários franceses (cf. Hunt, 1996). Este senso comum foi varrido de nossa história, mesmo que ainda
hoje convivamos com enormes distorções, explorações e dominação econômica no
processo eleitoral. Nosso senso comum de cidadania também hoje começa a ser
abalado com esta "globalização" dos direitos humanos, na medida em
que sociedades ainda abertas e democráticas, cujas divergências podem ser
expressadas, mantêm este ideário de universalização da dignidade humana
legalmente protegida.
Ainda do ponto de vista positivo, a
globalização permite que a agenda da defesa da dignidade humana seja
minimamente veiculada de forma universal. Se a censura de livros, artes e
comunicação podia dar-se num universo de poderes locais e nacionais, com as
novas formas de comunicação ela fica dificultada. Notícias de violações de
direitos humanos podem ser rápidas, em tempo real, e minimamente podem
despertar para uma agenda internacional. Não quero falar de ilusões: o poder
dos meios de comunicação é ambíguo, muitas vezes perverso. Pode banalizar nossa
indignação até o esgotamento e a indiferença, pode industrializar as imagens da
opressão, pode alimentar preconceitos e a custa da repetição e convencer
grandes massas, pode, finalmente, colaborar na construção de homens
unidimensionais, rasos e não-autônomos, todo o oposto do ideal de agentes
morais responsáveis que se encontra no fundamento dos direitos humanos. Mas
isto mesmo demonstra o quanto o ideal universal de democracia e direitos
humanos têm ainda a dizer neste mundo globalizado, recuperando, por exemplo, a
luta pelo pluralismo na informação e na cultura (cf. Holston e Appadurai, 1996). Talvez, como dissera Marx, a humanidade só se coloque os
problemas que pode realmente resolver. E os problemas da globalização começam a
ter, na esfera dos direitos humanos, algumas respostas criativas e pioneiras:
lembremos a existência de um número crescente de entidades não-governamentais
voltadas para a defesa dos direitos humanos, ou do fato bastante simples de que
o tema já não se consegue retirar da agenda política das democracias.
2. OS DIREITOS
HUMANOS E
OS DIREITOS DOS
POBRES
Seria fácil dizer que os direitos
humanos são fundamentalmente direitos dos pobres. Quem são as vítimas mais
freqüentes das violações dos direitos humanos? Em sociedades de consumo
tenderão a ser os que consomem menos. Há, pois, uma ligação mais ou menos clara
entre a situação social — de classe — das vítimas e a violação de seus
direitos. Nestes termos, quando se observam as formas de exclusão que a
globalização cria pode-se dizer que os direitos humanos num mundo globalizado
são efetivamente direitos destes excluídos. Se a África perde sua importância
estratégica como campo de batalha no mundo pós-guerra fria, basta esquecê-la,
excluí-la, digamos, da ordem econômica mundial dominante. Ali, os genocídios, a
fome, a violência política, tudo se aceita: afinal, eles são diferentes, não
pertencem propriamente ao "nosso" mundo. O mesmo pode dizer-se de
diversas regiões do mundo. Quem são as vítimas da violência policial, em
primeiro lugar, senão os mais pobres? Quem são as vítimas dos ajustes
estruturais, senão os que dependem dos hospitais e escolas públicas?
Isto tudo é verdade e, no entanto, a
vulnerabilidade e a exclusão atingem outros grupos, que podem converter-se não
apenas em classes, mas em castas, excluídos e párias. Em sociedades
multiculturais, as exclusões étnicas e culturais são fortíssimas, para não
falar nos casos de perseguição religiosa e política, e das discriminações de
gênero e orientação sexual, e no fato de haver no mundo campos e campos de
refugiados de toda sorte de conflitos. Então, vulnerabilidade e exclusão
compõem a agenda normativa e moral de uma luta a favor dos direitos humanos. É
fácil perceber a ligação entre a vulnerabilidade econômica e a exclusão. Ela
está presente provavelmente na grande maioria dos casos. Mas a vulnerabilidade
econômica transforma-se rapidamente em símbolo de identidade. Ninguém quer
identificar-se com um pobre, já que o pobre, na sociedade de consumo é, por
definição um perdedor. Existem outros perdedores, que vêm a tornar-se mais
perdedores por pertencerem a certos grupos (homossexuais, negros e índios entre
nós, por exemplo). Desta forma, o fundamento de uma política de direitos
humanos é a identificação geral de todos com um grupo universal, o gênero
humano, e nestes termos abrange a exclusão econômica — a pobreza, mas não se
esgota nela.
Os pobres são vulneráveis, fáceis
vítimas da exclusão social, porque não dispõem daquele meio fundamental que
permite transitar de um sistema social a outro, o dinheiro. Quando vemos ou
ouvimos os programas policiais nos meios de comunicação é muito mais freqüente
a violação do direito a ser considerado inocente, de ter sua privacidade
preservada quando se trata de "suspeitos" pobres, muitas vezes
suspeitos por serem pobres. No entanto, aquilo pode acontecer a qualquer um,
mesmo que de forma menos ostensiva. A capacidade de difamação dos meios de
comunicação é incalculável, e a reparação dos seus resultados, dificílima.
Os pobres também são os que não podem
escapar dos constran-gimentos de uma vida limitada às fronteiras de uma
sociedade tradicional, não poucas vezes intolerante, preconceituosa e violenta.
Tais estruturas sociais ocultam violências sérias, físicas e psicológicas,
cujas vítimas são mulheres e especialmente crianças e adolescentes (vítimas de
pais, mães, padrastos, madrastas, tios). Crianças pobres fugindo das violências
familiares alimentam contingentes de crianças de rua(1).
No entanto, os direitos humanos contêm
um ideal de igualdade universal. E este ideal reconhece que a tarefa dos
direitos humanos é a compensação das vulnerabilidades e das desigualdades
naturais e sociais. Uma doutrina dos direitos humanos equilibra-se entre dois
pólos: o ideal da igualdade e o ideal da diferença. Ao mesmo tempo uma luta
pela supressão de certas diferenças e pela preservação de particularismos. A
luta pela supressão das diferenças expressa-se no ideal da igualdade perante a
lei, direitos civis e políticos, e pela proporcional distribuição dos custos e
benefícios da vida social, direitos econômicos e sociais. A luta pela diferença
significa valorizar a pluralidade do gênero humano, a luta pela afirmação de
identidades (cf. Habermas, 1994 e 1996; Taylor, 1994). Esta luta pelo particularismo apresenta-se de várias formas,
algumas com caráter libertário, outras de caráter reacionário. Algumas tentam,
em nome do ideal de identidade voltar atrás no ideal de universalidade, e nesta
linha manifestam-se certos nacionalismos e fundamentalismos religiosos:
trata-se de reduzir o espaço público duramente conquistado e mantido em
sociedades pluralistas e democráticas. Algumas destas afirmações de identidade
dirigem-se contra o efeito homogeneizador da indústria cultural. De qualquer
modo, creio que o contato entre as culturas deve ser orientado pelo ideal do
diálogo e da comunicação: nenhuma cultura humana deveria ser preservada como
uma espécie ou um animal de zoológico. É tarefa das culturas vivas preservar-se
em diálogo com as outras. Por isso regras de convivência, que impeçam o
genocídio, são racional e praticamente indispensáveis. Em sociedades plurais,
como é o caso da maioria das sociedades americanas, o fundamento da preservação
das culturas encontra-se ainda, seja no princípio da igualdade do gênero
humano, seja no princípio da autonomia dos grupos e dos indivíduos. Igualdade e
autonomia implicam-se. O meu igual é meu igual na sua liberdade ou na sua
capacidade para a liberdade. E desta igualdade de liberdade resulta também sua
liberdade de viver, donde mais do que seu direito a não ser morto, pode
reivindicar legitimamente um direito a subsistência, exigindo condições
materiais.
3. OS PROBLEMAS DA
EFETIVAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS
3.1. Exigência de
uma cultura da universalidade dos direitos
A cultura dos direitos humanos exige universalização (o gênero humano como gênero
universal), uma cultura do reconhecimento. A falta de popularidade do tema dos direitos humanos deve-se, sem
dúvida, à nossa incapacidade de demonstrar sua universalidade. Como já foi dito
por outros (Caldeira, 1991), na cultura
brasileira a noção de direito confunde-se com a de privilégio. Por isso, os direitos humanos reivindicados tendem a ser compreendidos
como privilégios dos bandidos, ou de grupos que têm como influenciar a feitura
ou a aplicação das leis. Se os direitos humanos provêm de uma ética do
universalismo, importa refletir em cada caso sobre o potencial conflito entre
direitos e interesses, entre o que convém a uma pessoa ou grupo e aquilo que
lhe é devido em razão de sua dignidade, e devido a todos e a qualquer um que
pertença ao gênero humano. Para ilustrar as dificuldades concretas dos próprios
juristas em torno deste tema existem alguns casos.
3.1.1. Apelação Cível 89.04.01659-2
(RS, TRF 4ª Região) julgada em 26.10.89. O Ministério Público Federal propôs ação civil pública contra a União
Federal, Conservas Oderich S/A, Frigorífico Ideal S/A, Perdigão Agroindustrial
S/A, COBAL, Frigorífico Extremo Sul e Frigorífico Bordon, para impedir a
comercialização de carne importada da Europa, sob suspeita de contaminação
radioativa por causa do acidente de Chernobyl. A ação foi julgada improcedente,
pois os laudos técnicos apontavam inexistência de radiação em níveis perigosos
para a saúde. Houve apelação e no curso desta as partes fizeram um acordo, que
consistia em desistência do pedido desde que a carne fosse exportada. O fato
mostra a incapacidade de se imaginar que alguns direitos são mais do que
interesses negociados ou negociáveis, que se inserem numa esfera da dignidade
humana e que, portanto, são indisponíveis, para usar a linguagem jurídica mais
tradicional. O TRT da 4ª Região teve lucidez suficiente para não aceitar o
acordo, por considerá-lo imoral: se a carne era imprópria para consumo de
brasileiros, certamente deveria ser imprópria para consumo de bolivianos ou
zairenses também. Isto apenas ilustra a dificuldade de se identificar com o
gênero humano, de solidarizar-se, de desejar como lei universal aquilo que se
deseja para si mesmo, acompanhando o fundamento da moral moderna. Trata-se de
uma questão delicada, em que direitos humanos, direito à cidadania dos
consumidores envolvem-se sem se confundir.
3.1.2. Outro exemplo concreto pode
levar-nos à reflexão. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, anos
atrás, conseguiu impedir a exibição pela televisão do filme
"Calígula", com cenas de sexo explícito (cf. Recursos Especial n. 2.609-7/RJ, julgado em 14.12.94 no STJ) defendendo o
interesse de menores, que merecem ser poupados, pela sua idade, de certas
formas de "participação" no mundo adulto. Ocorre que hoje assistimos
a cenas estarrecedoras de desrespeito aos direitos fundamentais, em programas
de televisão, sem que tenham sido tomadas providências. Dois programas exibidos
em São Paulo, "Na Rota do Crime" e "190 Urgente" apresentam
sistematicamente cenas explícitas de violação do direito de intimidade, de
privacidade, buscas sem mandado judicial etc., e continuam sendo veiculados.
Pergunto-me se, neste caso, não contamos com o adormecimento de nossa
consciência. Quem tomará a iniciativa de provocar um debate sobre este tema?
Alguns certamente alegariam que a proibição judicial de tais programas
consistiria censura. Outros poderão dizer que se trata de atividade criminosa,
vez que a violação da privacidade que ali se assiste é crime. A verdade é que
em geral não nos identificamos com as vítimas destes abusos: eles são os outros,
nós somos os certinhos (cf. Cardia, 1995b, 27) e por isso, o mal feito aos outros não é de nossa conta.
3.1.3. Um último exemplo judicial da
dificuldade de reconhecimento da dignidade humana fundamental é dado pelo
acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (Ap.
Civ. 240.511-1/7, rel. des. Raphael Salvador, julg. 03.04.96). A decisão foi por
maioria de votos, voto vencido do Des. Willen. Decidindo um pedido de
indenização da mãe de um dos 111 detentos mortos na Casa de Detenção
(Carandiru) em outubro de 1992 em São Paulo, o desembargador Raphael Salvador
faz as seguintes ponderações: que o Estado gastava quase R$ 100 diários com
cada preso, enquanto o trabalhador ganha R$ 100 por mês para sustentar sua
família; que os culpados pela morte dos 111 detentos foram as próprias vítimas,
que haviam iniciado a rebelião; que a situação dos presos poderia ser
considerada satisfatória se comparada com o que acontece na China (onde,
segundo ele, 30 mil presos são mortos por ano) e em outros lugares da América
(onde os presos são lançados na selva); que os presos vivem à custa do Estado,
abrigados da chuva e das necessidades alimentares. A mais alta corte de justiça
do Estado mais rico da federação termina, neste sentido, por reconhecer que as
condições daquele infausto presídio são razoáveis, quando comparadas com outros
lugares. Em resumo, na cultura expressa no voto vencedor, a comparação a ser
feita, nos casos da espécie, não é com o ideal de direitos humanos expressos
normativamente na lei ou nas convenções internacionais, mas com o padrão
empiricamente verificável num país notoriamente conhecido no foro internacional
como um resistente opositor à aplicação dos direitos humanos dentro de suas
fronteiras. Transparece, aqui, a dificuldade em reconhecer-se a dignidade
humana independentemente da sua culpa de delinqüente. Que alguém mereça ser
punido por um crime é algo bem diferente de dizer que pelo mesmo crime lhe é
retirada toda proteção contra a força alheia. Se isto se faz, é porque ele é
considerado excluído do grupo, é um de fora, que não merece — por não
participar, ser parte do grupo — as regras do próprio grupo. A confusão entre
as duas coisas, pena e abandono à própria sorte corresponde a uma pena maior: a
perda da qualidade de sujeito daquele grupo, a transformação em pária, para
lembrar Hannah Arendt. Quando se vê o censo penitenciário do Estado de São Paulo (1994) mais se
percebe que esta exclusão está determinada pela linha da propriedade: 57% dos
presos cumprem pena por delitos contra o patrimônio (roubo e furto); homicídio
e latrocínio correspondem a 11% do total de presos no Estado.
3.1.4. A mesma dificuldade em
reconhecer universalmente a dignidade alheia (a alteridade) pode ser constatada
no resultado da pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP a pedido da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo (Cardia, 1995a e 1995b). É notável, como
reconhece Nancy Cardia, que haja um núcleo fundamental de direitos, como o
direito a ser julgado com rapidez e o direito a ser considerado inocente até
prova em contrário, que não recebe de amplos setores da população a devida
importância (Cardia 1995b, 25 e 27). Curiosamente, a
população reconhece que os direitos sociais e econômicos devem ser considerados
direitos humanos. Evidente a confusão entre direitos e interesses, que tem na
sociedade brasileira um efeito perverso no sentido de reforçar simbolicamente a
luta de todos contra todos pela sobrevivência material, sem mobilizar
efetivamente para a luta de todos por todos, isto é solidária, por direitos
universais, também inalienáveis. A explicação para isto é complexa, sem dúvida.
Preocupa-me apenas que muito da mobilização popular se faça em torno de uma
"política de interesses", nem sempre respaldada por uma política dos
"princípios".
3.1.5. Em resumo, quero dizer que a
consciência moral da universalidade dos direitos humanos está longe de ser
forte entre nós. E isto significa que não apenas o Estado é, como se costuma
dizer, o grande responsável pela violação dos direitos humanos no Brasil, ou em
muitos países do mundo. Por trás destes Estados em geral encontram-se
sociedades que cultivam culturas intolerantes, cuja preservação, aliás, depende
de seu fechamento ao exterior. Sem dúvida, é difícil encontrar lugares que
apresentem o número de mortes pela polícia que nós apresentamos, como no ano de
1991, quando a Polícia Militar do Estado de São Paulo matou 1.140 pessoas, ou
no ano de 1992, 1.359 pessoas; após o escândalo do massacre dos 111 detentos,
os números caíram para 329 em 1993 e 413 em 1994 (NEV/Com. T. Vilela, 1993, 18). Deve chamar nossa atenção, porém, o fato, para mim alarmante,
da indiferença generalizada para com tais números.
A desvalorização da vida democrática
retrata-se em pesquisa divulgada este ano dando conta de que o Brasil é, entre
os países latino-americanos, aquele em que menos se valoriza a democracia.
Entre nós, 24% preferem um regime autoritário, 21% são indiferentes e 50%
preferem um regime democrático. A Argentina, nossa parceira de Mercosul, mostra
que 15% preferem um regime autoritário, enquanto 71% preferem um regime
democrático. Dos números brasileiros que preferem um regime autoritário
aproximam-se apenas o México (23%) e o Paraguai (26%). Isto deve levar-nos a
suspeitar do grau de autoritarismo compartilhado por boa parcela da população
brasileira, inclusive as vítimas preferenciais da violação dos direitos
humanos.
3.2. Estado,
sociedade e direitos humanos
Creio que ligado a este fenômeno está
também a relação da sociedade brasileira com o seu Estado. Incapaz de fazê-lo
funcionar como mediador de um sem-número de conflitos, sejam eles individuais —
de justiça comutativa, ou plurilaterais — de Justiça distributiva, prefere
predá-lo, acusando-o de todos os males, tratando-o como o grande
"outro", em todos os sentidos. Não faço aqui a apologia do Estado
brasileiro, ou da ordem. Os números de mortos pela polícia falam por si,
mostram, sem disfarce, a guerra que este Estado promove a uma parcela de seus
cidadãos. Quero apenas dizer que no meio de toda esta violência valeria a pena
lembrar que não só a tirania dos governantes precisa ser contida, evitada,
eliminada: também a tirania social, tirania dos grandes números, tirania do
poder econômico, tirania dos mais fortes ou mais espertos. Temo que nossa
cultura jurídica, de longa tradição, cultive ainda neste fim de século XX
alguns sentidos (ou mitos) construídos pelos fundadores da República. Como
sabemos, um dos ideais mais importantes da República foi o liberalismo
econômico; o outro foi o liberalismo político. Este, como já amplamente
estudado, limitou-se severamente pelas distorções ocorridas no processo
eleitoral. Dentre os ideais liberais estava o do afastamento do Estado da vida
privada e este mito escondia o fato de que este afastamento não poderia ser
policial ou judicial. O desenvolvimento do liberalismo exigia tanto um
judiciário quanto uma polícia suficientemente fortes e grandes para impor
universalmente a lei. Neste aspecto, a primeira República teve pouco sucesso:
se bem que pelas batalhas judiciais em torno do habeas corpus ampliado firmou-se entre nós uma
importante independência do Supremo Tribunal Federal, os beneficiários eram
poucos; é certo também que a justiça dos Estados, a justiça comum à qual se
submetiam os cidadãos em geral, numericamente não estava equipada para impor
universalmente a lei nos amplos sertões, e não gozava de organização e
garantias hoje consideradas indispensáveis para seu regular funcionamento. Em
tudo isto, a luta contra a arbitrariedade da Administração e a presença dos
militares na política, encobriu o fato de que na esfera "privada" do
cotidiano, por exemplo na apropriação das novas terras do "oeste
paulista", era o poder privado que impunha uma cultura de violência,
expropriação e exploração.
3.3. A
redistribuição concentradora
Além da falta de universalidade dos
direitos humanos, a cultura jurídica estimula em vários casos um iníquo
processo de concentração de riqueza. A liberdade dos contratos e o direito
adquirido comparecem como grandes obstáculos a todas as tentativas de reforma,
que pudesse substancialmente alterar a presente distribuição de poder e de
riqueza, ampliando a participação política e econômica de grandes grupos. O
problema está, a meu ver, no uso que se faz indiscriminadamente do Estado, pelo
qual grupos privilegiados obtém no processo legislativo, mas também
freqüentemente no Judiciário, a manutenção ou mesmo a ampliação de sua
capacidade de apropriar-se dos fundos públicos. Por vários meios tidos como
democráticos, conserva-se um Estado que distribui às avessas os benefícios
sociais. Alguns exemplos ajudam a compreender historicamente este processo.
3.3.1. A escravidão
Durante o século XIX discutia-se o fim
da escravidão. Dominado por juristas, o debate esbarrava no direito de
propriedade, direito adquirido dos senhores de escravos, protegido pelo artigo 179 da Constituição do
Império. Aprovada em 1870 a Lei do Ventre Livre, nela foi constituído um título
de indenização dos senhores, que seria pago pelo Tesouro imperial. Opiniões
como a de Perdigão Malheiro, de que ao libertar os escravos o Império não os
estava adquirindo para si e nem faria lucro com isto, de nada adiantaram. As
advertências de Condorcet, feitas um século antes na França revolucionária,
sobre o assunto, tampouco haviam sensibilizado uma estrutura que parecia
natural, inevitável e invencível, como hoje se diz a respeito de alguns temas.
As condenações, muitas vezes desastradas e vultosas do tesouro público, vêm
freqüentemente recobertas, hoje em dia, pela mesma retórica que durante 65 anos(2) no império impediu o fim da escravidão e perpetuou entre nós um problema
cujas conseqüências históricas ainda suportamos.
3.3.2. A inflação
Outro exemplo mais próximo é o da
correção monetária das dívidas do Tesouro. Introduzida entre nós pelo regime
militar, a correção monetária disseminou-se mantendo diferenças com as quais se
beneficiavam alguns grupos. Como a indexação foi feita nos títulos do Tesouro,
os grupos econômicos capazes de financiar a emissão de tais títulos resistiram
de todos os modos à desindexação e à volta ao nominalismo monetário. Um dos
casos mais interessantes ocorreu na tentativa de desindexação do governo
Collor: deixando de corrigir os impostos por determinado índice, medida
provisória também impôs a desindexação dos títulos a eles atrelados, os Bônus
do Tesouro Nacional. Estes BTNs haviam sido emitidos para serem usados no
pagamento de impostos, equivalendo pois a um adiantamento que os contribuintes
fariam ao Tesouro. Contra a medida de desindexação os grandes detentores de
BTNs (ao mesmo tempo grandes contribuintes) ingressaram em juízo e obtiveram em
muitos casos o pagamento de seus títulos pela correção originalmente pactuada,
em nome do direito adquirido, surpreendentemente por meio de mandados de
segurança que, em toda a tradição do direito brasileiro, nunca puderam ser
usados como ações de cobrança. Ameaçando prender funcionários da Administração,
alguns juízes e tribunais obrigavam ao resgate dos títulos. O Tesouro, em nome
do mesmo direito adquirido, não pôde corrigir os tributos na proporção
equivalente (cf. Jansen, 1991, 102:121), visto que a parte da medida provisória que beneficiava
os contribuintes não foi considerada inconstitucional.
3.3.3. A educação
Este fenômeno concentrador é evidente
na educação: num primeiro momento, desinteressada de salvar a escola pública,
submetida a uma política pública equivocada, certa faixa da classe média
conseguiu transferir seus filhos para a rede privada de escolas. Vendo-se em
dificuldades para mantê-los ali, uma parte da classe média passou a exigir do
Estado medidas protetivas, tanto na legislação quanto na prestação de um
serviço de assistência legal altamente qualificado dos agentes do Ministério
Público. Este, em nome da defesa dos consumidores de educação, passou a exigir
em juízo a redução das mensalidades ou dos reajustes de mensalidades. Vemos aí
a incapacidade jurídica para enfrentar mais decididamente o problema
fundamental que é o da reforma da educação pública. Em outros termos, vemos a
questão colocar-se como de direito de consumo, o que é compreensível, não em
termos de direito social universal. Tal fato não pode ser desqualificado:
representa algo que em todos os países industrializados se verificou nos anos
60 e 70: o uso do direito do consumidor como instrumento de cidadania. Nestes
outros lugares porém, o direito do consumidor foi usado para tentar controlar o
poder econômico privado e cresceu em sociedades que mais enfaticamente, com
estados mais fortes do que o brasileiro, foram capazes de impor custos aos
capitalistas diante das ameaças do pós-guerra. No Brasil o que temos é uma
diferença significativa entre níveis de consumo, dada nossa desigualdade
social, e embora o direito do consumidor tenha um enorme potencial simbólico,
aplicado em determinados casos pode permitir a apropriação de fundos públicos
pelos que menos necessitam deles. Fundamental, pois, é permitir que
juridicamente se questionem as formas de distribuição destes fundos. Neste
sentido, um autor como o Ministério Público deveria e poderia prioritariamente,
no caso da educação, intervir no questionamento das políticas da escola
pública. E esta intervenção deve ter como propósito não transferir simplesmente
para o judiciário a decisão mas sobretudo ampliar o debate sobre o problema
dentro das instâncias administrativas responsáveis.(3)
3.3.4. Em resumo, o que pretendo dizer
é que o Estado brasileiro não é, como quer o senso comum, um ente simples com
interesses próprios, dominado por uma burocracia conspiratória. É,
freqüentemente e onde o olhar dos juristas não suspeita ou não quer ver, um
distribuidor às avessas de riqueza dentro da "sociedade civil".
Acumula para o Brasil integrado, o Brasil dos que têm, e para eles repassa, por
instrumentos tão simples quanto estes vistos acima. Ao mesmo tempo, é arena de
uma disputa política que na ideologia jurídica trava-se entre o princípio do
direito adquirido e da exclusão do Estado da vida econômica e da segurança (de
vida e propriedade), e o princípio da promoção do bem comum, implicando o
direito de subsistência de todos e distribuição "justa" dos custos e
benefícios da vida social. Estes dois pólos estão contemplados na Constituição
brasileira, exemplarmente no artigo 5º e no artigo 6º, assim como estão
contemplados nos pactos internacionais sobre direitos civis e políticos e
direitos sociais e econômicos. Sua interpretação dependerá de uma permanente
batalha entre grupos, a expressar-se na prática e no discurso jurídico.
Trata-se também de perceber que o Estado é ao mesmo tempo um dos grandes
violadores dos direitos humanos e, na esfera nacional, seu mais visível — ou
aparente — mediador institucional (cf. Faria, 1995).
4. A GARANTIA DOS
DIREITOS HUMANOS:
PROBLEMAS
INSTITUCIONAIS
4.1. Direitos humanos
na esfera internacional
Na esfera internacional o modelo de
arbitramento judicial das disputas dos direitos humanos tende a seguir o padrão
triangular da jurisdição ordinária. As cortes permanentes (a Corte
Interamericana, a Corte Européia, v.g.), os tribunais ad hoc (a exemplo do tribunal de Nuremberg, os
tribunais para o caso da Bósnia) procuram punir crimes cometidos, pois o modelo
aqui é o do direito penal. Outras instâncias internacionais têm outras formas
de intervenção, como por exemplo, o Alto Comissariado da ONU para os
Refugiados, tendo por tarefa proteger as vítimas, antes que punir os
responsáveis.
A democratização dos estados nacionais
e a internalização de agendas de defesa dos direitos humanos também está na
mira de organizações como o Fundo Monetário Internacional, tendo em vista a
constatação de que mesmo num mundo globalizado as instâncias locais de poder
continuam sendo fundamentais para a garantia das pessoas. O FMI e o Banco
Mundial vêm financiando uma série de estudos na América Latina para promover
reformas nos judiciários locais (Dakolias, 1995). Alguns alertam para a
ambigüidade de tais processos (Santos, 1996), mas é inegável que reformas são necessárias, como a expansão do
controle de atos dos próprios governos.
4.2. O Brasil
O recurso ao judiciário contra a
violação dos direitos humanos desenvolveu-se em algumas grandes tendências
liberais. No caso do Brasil instituíra-se no império, com o Código do Processo
Criminal de 1832, o habeas corpus e o júri, duas instituições alheias à tradição romano-canônica. Estes
mesmos institutos foram mantidos na Constituição republicana de 1981, passando
o habeas corpus a proteger contra atos de autoridade em geral, até que em 1934 insere-se
o mandado de segurança nas disposições constitucionais. Um limite deste
desenvolvimento é seu caráter individual, colocando sobre os ombros da vítima
uma carga por vezes pesada: tratando-se de direitos patrimoniais ou, em alguns
casos, da defesa da liberdade individual, é compreensível que o interessado seja
capaz de rebelar-se. O mesmo não se dá, no entanto, nos casos de caráter
coletivo, por exemplo quando a violação dos direitos está associada a uma
discriminação ou preconceito. Nestes casos, a vítima pode ver-se obrigada a
escolher entre submeter-se ao arbítrio de alguém e a vergonha generalizada de
expor-se. Vítimas de racismo e discriminação, religiosa, étnica, de gênero e
orientação sexual são alvos típicos destas escolhas dramáticas (Noel, 1991; Boswell, 1980). Os "suspeitos" comuns, vítimas freqüentes da violência
policial, pertencem a grupos subalternos, para dizer o mínimo. A capacidade de
enfrentar estas violações básicas da dignidade pessoal depende da organização
de grupos, por isso é indispensável valorizar os direitos civis e políticos: só
eles permitem ampliar a consciência da injustiça no espaço público.
A defesa dos direitos humanos em juízo
tem um caráter normativo e pedagógico. Ela não supre as políticas de
recolhimento ou redistribuição: ela as estimula, provoca ou legitima. Daí a
importância da advocacia de interesse público, fato muito desenvolvido no
Brasil dos últimos anos, com inúmeros grupos de defesa dos direitos humanos
espalhados pelo País. Característica importante de boa parte destes grupos foi
seu surgimento em níveis locais, envolvendo diretamente vítimas e vizinhos nos
casos e, sobretudo, na apuração. Sem estes grupos, incontáveis casos estariam
sem solução até hoje. A tentativa de reforma do judiciário que hoje se discute
é fruto destas organizações também(4), que exigem mais transparência e
responsabilidade no processamento dos feitos e na administração da justiça.
A defesa dos direitos humanos de
caráter sócio-econômico provoca o questionamento institucional do judiciário.
Sendo fundado no princípio da legalidade, da inércia da jurisdição (ne
procedat iudex sine auctorem) e do contraditório bipolar, estará equipado
para dirimir questões distributivas? Seu funcionamento é adequado para aplicar
(e fazer com que se apliquem) consistentemente regras definidas a casos
ocorridos, para punir e corrigir. Mas não é adequado, por isto mesmo, para
resolver conflitos para o futuro, em que a solução não depende de aplicar uma
regra, mas criar uma nova regra para a prática futura das partes e,
especialmente, em que o conflito não é bipolar mas plurilateral, ou seja,
envolvendo um número indeterminado de pessoas com interesses não
necessariamente opostos. A função jurisdicional não equivale ao estabelecimento
de grupos de cooperação, pois foi desenhada para aplicar regras de exclusão
(liberdades negativas). No lugar de disputas arbitradas sob forma judicial, são
os centros de negociação os novos mecanismos: conselhos, sobretudo, como já se
vê no caso da Lei Orgânica da Saúde e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Esta consideração seria diferente se houvesse um direito a renda mínima,
exigível individualmente, como já se criou em certos lugares. Este sim, seria
um instrumento redistributivo colocado nas mãos de cada um para ser
reivindicado sob a forma judicial.
Se o judiciário não se adequa a
resolver muitos conflitos distributivos em torno dos direitos sociais e
econômicos, pode ainda ser explorado na proteção de todos os direitos humanos.
Um exemplo do ponto onde confluem políticas públicas e judiciário é o da corrupção. Pode-se imaginar que na corrupção o que está em jogo é a moralidade
pública, exigência que os fundos comuns sejam arrecadados com critérios
objetivos/universais e impessoais e da mesma forma sejam distribuídos de forma
objetiva/universal e impessoal, obedecidos os princípios de justiça
distributiva largamente reconhecidos: merecimento (capacidade) e necessidade.
Os casos de corrupção, escandalosos no mundo inteiro, são casos de apropriação
privada (não necessariamente pessoal) de fundos comuns. Para aumentar a
eficácia no julgamento de tais casos é preciso alterar os meios de apuração e
de responsabilidade, até hoje voltados majoritariamente para punir os delitos
individuais contra patrimônio e vida individuais, é preciso rever a legislação
a respeito dos crimes de responsabilidade. Um caso que está hoje nos jornais é
o dos bancos estaduais: o que aconteceu em geral foi o uso desses bancos como
instrumentos de emissão do Estado. Colocada a questão em termos de atos
individuais, do ponto de vista de atividades negociais particulares,
dificilmente chegará o Judiciário a alguma decisão razoável.
Mesmo aqui, porém, o papel do
judiciário é parcial, visto que ainda seria necessário retirar de certos órgãos
a capacidade de conceder privilégios, ampliar participação popular nas decisões,
debates, criar conselhos, dar universalidade aos direitos sociais,
instituindo-se a renda mínima (cf. Ferrajoli, 1996).
Finalmente, compensa lembrar o problema
da impunidade, que tem muitas causas: influências políticas nos casos, problemas na
fase de apuração, dificuldades de a cultura jurídica adaptar-se a novos
problemas e, como visto em alguns casos retro expostos, incorporar padrões de
cidadania mais amplos e mais sensíveis a grupos excluídos. A impunidade
resulta, portanto, de um desvio de poder, do exercício privado da violência.
Uma nova cultura exige que se aplique a lei, que se imponha a todos o respeito
recíproco. Para isto, mudanças na "cabeça" dos juízes, dos advogados,
dos promotores, mas também mudança nas instituições.
A administração da justiça também sofre
dos mesmos males dos outros serviços públicos brasileiros. Uma sobrecarga que
se constata nos números, e uma irracionalidade no uso dos meios. No Brasil
existe em média 1 juiz para 29.542 habitantes (Alagoas 1:44 mil, Pernambuco
1:40.228: Maranhão 1:39.383; Bahia 1:38.774), segundo dados divulgados pelo
Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV, 1995). Dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para 1994,
indicavam uma proporção aproximada de 1 juiz para cada 20.025 habitantes
(estimativa de habitantes do Estado feita pela Fundação Seade). Enquanto isto,
na Alemanha a relação é de 1 juiz para cada 3.448 habitantes; na Itália, 1 para
cada 7.692 habitantes e na França 1 para cada 7.142. Os números também são
enormes quanto aos processos nos tribunais brasileiros. O Supremo Tribunal Federal mostra um total de 164.402processos entrados entre outubro de 1988 (data entrada em vigor da
Constituição Federal) e primeira semana de agosto de 1996. No mesmo período
foram julgados 146.355. Foram 86.278 recursos extraordinários entrados, e julgados 77.705; muitos casos de agravos de instrumento
em recursos extraordinários ou não (58.302), ou mesmo ações diretas de
inconstitucionalidade (1.465). Mandados de segurança somaram 1.193. Relatório do ano de 1994indica que foram distribuídos no STF 26.441 processos, e em 1995, 25.998. No caso do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, apenas no ano de 1995, o Departamento de Processamento de 2ª instância
informa que entraram no TJ 87.504 processos e foram julgados 74.965. Ações civis
públicas, apenas no ano de 1995, foram 652 (na Seção Civil de Direito Privado e na de Direito Público). Mandados de
segurança foram 5.337.
Quanto à irracionalidade dos meios é
suficiente fazer referência ao sistema cartorial brasileiro. Uma grande reforma
guiada não apenas por juristas, mas por especialistas em administração creio
que seria mais do que bem vinda. O número de recursos vicia todo o sistema:
sabedores de que sempre há um recurso todos tratam de usá-los, e tentando
evitá-los, juízes e tribunais decidem os casos com um excesso de
procedimentalismo (que beneficia uns mas não qualquer um). Os agravos para
fazer chegar ao STJ e ao STF recursos especiais ou extraordinários são
numerosíssimos. Como os processos são majoritariamente escritos, a confrontação
concentrada das partes na audiência inexiste na prática: as provas e os
documentos são juntados numa seqüência alternada, em que se sucedem os
despachos de "diga a parte contrária", "ciência disto e
daquilo", e assim por diante.
Enfim, há um longo caminho a percorrer
para racionalizar o sistema, sem suprimir garantias.
Em tudo isto é notável que as receitas
mais comuns da globalização não se prestam para as tarefas da defesa dos
direitos humanos de forma muito simples e imediata. Se o propósito destas lutas
é, sem dúvida, a imposição universal e igualitária da lei, é também a reforma
das leis, das instituições e da cultura que promovem formas permanentes de
exclusão moral, social, política e econômica”.
BIBLIOGRAFIA
BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and
homosexuality. Chicago: University of Chicago Press, 1980.
CALDEIRA, Teresa. Direitos humanos ou
'privilégios de bandidos'? Desventuras da democratização brasileira. Novos Estudos Cebrap, 30:162-174, jul.
1991.
CARDIA, Nancy. Direitos humanos:
ausência de cidadania e exclusão moral. In: Princípios de Justiça e Paz. São Paulo: Comissão
de Justiça e Paz, 1995.
. Direitos humanos e exclusão moral.
In: Os direitos humanos no Brasil. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência/Comissão Teotônio Vilela,
1995.
DAKOLIAS, Maria. A strategy for
judicial reform: the
experience in Latin America. Virginia Journal of International Law. 36 (1) 167:231, 1995.
FERRAJOLI, Luigi. El Estado
constitucional de derecho hoy: el modelo y su divergencia de la realidad. In:
ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto (Org.). Corrupcion y Estado de Derecho: el
papel de la jurisdición. Madrid: Trotta, 1996.
FISS, Owen. Globalization and its
consequences for democracy: the case of the World Bank. Paper apresentado no Seminario de
Latinoamerica sobre temas Constitucionales, Buenos Aires, 1996.
GOMIEN, Donna, (no prelo) "Nothing bad intended: child discipline,
punishment, and survival in a shantytown in Rio de Janeiro,
Brazil"
GUTMAN, Amy, (Ed.). Multiculturalism. Princeton (NJ): Princeton
University Press, 1994.
HABERMAS, Juergen. Struggles for recognition in the democratic
constitutional state. GUTMAN, Amy, (Ed.). Multiculturalism. Princeton (NJ): Princeton University Press, 1994.
.
Citizenship and national identity. In: Betwen facts and
norms. Cambridge (Ma): MIT
Press, 1996.
HOLSTON, James, Appadurai, Arjun.
Cities and Citizenship. Public Culture, 8(2):187-204, 1996.
HORSMAN, George. Inflation in the Twentieth Century: evidence from Europe and North
America. New York: St.
Martin's Press, 1988.
HUNT, Lynn (Ed.). The French Revolution: a brief documentary history. Boston/New York: St. Martin's Press, 1996.
JANSEN, Letácio. A face legal do dinheiro. Rio de Janeiro:
Renovar. 1991.
KANT, Imanuel. Textos seletos (edição bilíngue). Tradução de Raimundo
Vier e Floriano de Sousa Fernandes e introdução de Emmanuel Carneiro Leão.
Petrópolis: Vozes, 1974.
NOEL, Lise. L'intolérance. Quebec/Paris:
Boreal/Seuil, 1991.
Núcleo de Estudos da Violência/Comissão
Teotônio Vilela. Os direitos humanos no Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo
(NEV/CTV), 1993.
. Os direitos humanos no Brasil, 2. ed. São Paulo:
USP/NEV/CTV, 1995.
NUSSBAUM, Arthur. Money in the law: national and international. Brooklyn: The Foundation Press, 1950.
PAARLBERG, Don. An analysis and history of inflation. Westport (Ct)/London: Praeger, 1993.
REICH, Charles. O trabalho das nações. Trad. José Maria
Castro Caldas. Lisboa: Quetzal, 1993.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os
Tribunais e a globalização. O Estado de São Paulo, de 9.11.96, p. A2.
SCHMUKLER, Nathan, Marcus, Edward. Inflation through the ages: economic, social, psychological and
historical aspects. New York: Brooklyn College
Press/Columbia University Press, 1983.
TAYLOR, Charles. The ethics of authenticity. Cambridge
(Ma)/London: Harvard University Press, 1991.
.
The politics of recognition. GUTMAN, Amy (Ed.). Multiculturalism. Princeton (NJ):
Princeton University Press, 1994.
___________
* Texto da palestra proferida na Seminário
Internacional de Direitos Humanos — Direitos Humanos, Globalização e Pobreza,
no dia 28.11.96, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP.
** Professor Doutor da Faculdade de Direito da
USP.
(1) Alguns estudos de antropologia mostram
entre nós estas formas de violência, exclusão e preconceito. Por exemplo Teresa
Caldeira (1992) City of Walls:
crime, segregation and citizenship in São Paulo. Berkeley, tese de doutorado, Universidade da
Califórnia em Berkeley; Donna Goldstein (no prelo) ""Nothing bad
intended: child discipline, punishment and survival in a shantytown in Rio de
Janeiro, Brazil", no
arquivo pessoal do autor.
(2) Conto os 65 anos a partir da memória sobre
a escravidão apresentada por José Bonifácio à assembléia constituinte, em 1823,
propondo a abolição gradativa e meios de integração dos libertos à vida
econômica, inclusive recebendo dadas de terra.
(3) Um esclarecimento é necessário. Um estudo
empírico talvez venha mostrar que esta "classe média" que necessita
da intervenção do Ministério Público seja realmente uma parte da classe dos
trabalhadores que luta para manter um padrão de consumo que vai perdendo, na
medida em que a economia brasileira tem sido incapaz de ampliar
generalizadamente — ou seja, sem concentração excessiva — a renda. Neste
sentido, a defesa de certos interesses privados pelo Ministério Público é
compreensível e, em alguns casos aceitável e justificável. No entanto, formas
alternativas de intervenção deveriam ser mais exploradas, tais como a
constituição de conselhos capazes de debater as políticas de educação pública,
por exemplo, e levá-las a execução.
(4) Há um evidente interesse de organizações
internacionais e do grande interesse econômico "global" na reforma do
judiciário no Brasil e na América Latina. Esta advertência já foi feita por
Boaventura Sousa Santos e é clara no ensaio de Maria Dakolias. Uma das
justificativas iniciais para o texto é justamente a necessidade de um
judiciário eficiente para fazer cumprir os contratos e, portanto, dar segurança
a investidores internacionais. Além de alguns equívocos por causa de
generalizações indevidas — o caso brasileiro não corresponde a várias
afirmações feitas — o texto é revelador de um juízo prévio com relação à
América Latina. Surpreende qualquer latino-americano bem informado: todos sabem
que nossos tribunais foram e continuam sendo bastiões seguros do direito de
propriedade e dos contratos, condenando com freqüência e facilidade
surpreendentes, para os norte-americanos bem informados, todos os níveis de
governo. Vários estudos feitos na Europa e nos EUA demonstram que o uso dos
tribunais por grandes empresas naquelas regiões é mais complexo do que o que
consta nos livros de direito.
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista2/artigo6.htm.
Acesso: 10/7/2013
t-� kYl : �� �� ew Roman'; font-size: medium; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; letter-spacing: normal; line-height: normal; orphans: auto; text-align: start; text-indent: 0px; text-transform: none; white-space: normal; widows: auto; word-spacing: 0px; -webkit-text-stroke-width: 0px; background-color: rgb(242, 254, 255);">
4.2. O Brasil
O recurso ao judiciário contra a violação dos direitos humanos desenvolveu-se em algumas grandes tendências liberais. No caso do Brasil instituíra-se no império, com o Código do Processo Criminal de 1832, o habeas corpus e o júri, duas instituições alheias à tradição romano-canônica. Estes mesmos institutos foram mantidos na Constituição republicana de 1981, passando o habeas corpus a proteger contra atos de autoridade em geral, até que em 1934 insere-se o mandado de segurança nas disposições constitucionais. Um limite deste desenvolvimento é seu caráter individual, colocando sobre os ombros da vítima uma carga por vezes pesada: tratando-se de direitos patrimoniais ou, em alguns casos, da defesa da liberdade individual, é compreensível que o interessado seja capaz de rebelar-se. O mesmo não se dá, no entanto, nos casos de caráter coletivo, por exemplo quando a violação dos direitos está associada a uma discriminação ou preconceito. Nestes casos, a vítima pode ver-se obrigada a escolher entre submeter-se ao arbítrio de alguém e a vergonha generalizada de expor-se. Vítimas de racismo e discriminação, religiosa, étnica, de gênero e orientação sexual são alvos típicos destas escolhas dramáticas (Noel, 1991; Boswell, 1980). Os "suspeitos" comuns, vítimas freqüentes da violência policial, pertencem a grupos subalternos, para dizer o mínimo. A capacidade de enfrentar estas violações básicas da dignidade pessoal depende da organização de grupos, por isso é indispensável valorizar os direitos civis e políticos: só eles permitem ampliar a consciência da injustiça no espaço público.
A defesa dos direitos humanos em juízo tem um caráter normativo e pedagógico. Ela não supre as políticas de recolhimento ou redistribuição: ela as estimula, provoca ou legitima. Daí a importância da advocacia de interesse público, fato muito desenvolvido no Brasil dos últimos anos, com inúmeros grupos de defesa dos direitos humanos espalhados pelo País. Característica importante de boa parte destes grupos foi seu surgimento em níveis locais, envolvendo diretamente vítimas e vizinhos nos casos e, sobretudo, na apuração. Sem estes grupos, incontáveis casos estariam sem solução até hoje. A tentativa de reforma do judiciário que hoje se discute é fruto destas organizações também(4), que exigem mais transparência e responsabilidade no processamento dos feitos e na administração da justiça.
A defesa dos direitos humanos de caráter sócio-econômico provoca o questionamento institucional do judiciário. Sendo fundado no princípio da legalidade, da inércia da jurisdição (ne procedat iudex sine auctorem) e do contraditório bipolar, estará equipado para dirimir questões distributivas? Seu funcionamento é adequado para aplicar (e fazer com que se apliquem) consistentemente regras definidas a casos ocorridos, para punir e corrigir. Mas não é adequado, por isto mesmo, para resolver conflitos para o futuro, em que a solução não depende de aplicar uma regra, mas criar uma nova regra para a prática futura das partes e, especialmente, em que o conflito não é bipolar mas plurilateral, ou seja, envolvendo um número indeterminado de pessoas com interesses não necessariamente opostos. A função jurisdicional não equivale ao estabelecimento de grupos de cooperação, pois foi desenhada para aplicar regras de exclusão (liberdades negativas). No lugar de disputas arbitradas sob forma judicial, são os centros de negociação os novos mecanismos: conselhos, sobretudo, como já se vê no caso da Lei Orgânica da Saúde e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta consideração seria diferente se houvesse um direito a renda mínima, exigível individualmente, como já se criou em certos lugares. Este sim, seria um instrumento redistributivo colocado nas mãos de cada um para ser reivindicado sob a forma judicial.
Se o judiciário não se adequa a resolver muitos conflitos distributivos em torno dos direitos sociais e econômicos, pode ainda ser explorado na proteção de todos os direitos humanos. Um exemplo do ponto onde confluem políticas públicas e judiciário é o da corrupção. Pode-se imaginar que na corrupção o que está em jogo é a moralidade pública, exigência que os fundos comuns sejam arrecadados com critérios objetivos/universais e impessoais e da mesma forma sejam distribuídos de forma objetiva/universal e impessoal, obedecidos os princípios de justiça distributiva largamente reconhecidos: merecimento (capacidade) e necessidade. Os casos de corrupção, escandalosos no mundo inteiro, são casos de apropriação privada (não necessariamente pessoal) de fundos comuns. Para aumentar a eficácia no julgamento de tais casos é preciso alterar os meios de apuração e de responsabilidade, até hoje voltados majoritariamente para punir os delitos individuais contra patrimônio e vida individuais, é preciso rever a legislação a respeito dos crimes de responsabilidade. Um caso que está hoje nos jornais é o dos bancos estaduais: o que aconteceu em geral foi o uso desses bancos como instrumentos de emissão do Estado. Colocada a questão em termos de atos individuais, do ponto de vista de atividades negociais particulares, dificilmente chegará o Judiciário a alguma decisão razoável.
Mesmo aqui, porém, o papel do judiciário é parcial, visto que ainda seria necessário retirar de certos órgãos a capacidade de conceder privilégios, ampliar participação popular nas decisões, debates, criar conselhos, dar universalidade aos direitos sociais, instituindo-se a renda mínima (cf. Ferrajoli, 1996).
Finalmente, compensa lembrar o problema da impunidade, que tem muitas causas: influências políticas nos casos, problemas na fase de apuração, dificuldades de a cultura jurídica adaptar-se a novos problemas e, como visto em alguns casos retro expostos, incorporar padrões de cidadania mais amplos e mais sensíveis a grupos excluídos. A impunidade resulta, portanto, de um desvio de poder, do exercício privado da violência. Uma nova cultura exige que se aplique a lei, que se imponha a todos o respeito recíproco. Para isto, mudanças na "cabeça" dos juízes, dos advogados, dos promotores, mas também mudança nas instituições.
A administração da justiça também sofre dos mesmos males dos outros serviços públicos brasileiros. Uma sobrecarga que se constata nos números, e uma irracionalidade no uso dos meios. No Brasil existe em média 1 juiz para 29.542 habitantes (Alagoas 1:44 mil, Pernambuco 1:40.228: Maranhão 1:39.383; Bahia 1:38.774), segundo dados divulgados pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV, 1995). Dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para 1994, indicavam uma proporção aproximada de 1 juiz para cada 20.025 habitantes (estimativa de habitantes do Estado feita pela Fundação Seade). Enquanto isto, na Alemanha a relação é de 1 juiz para cada 3.448 habitantes; na Itália, 1 para cada 7.692 habitantes e na França 1 para cada 7.142. Os números também são enormes quanto aos processos nos tribunais brasileiros. O Supremo Tribunal Federal mostra um total de 164.402processos entrados entre outubro de 1988 (data entrada em vigor da Constituição Federal) e primeira semana de agosto de 1996. No mesmo período foram julgados 146.355. Foram 86.278 recursos extraordinários entrados, e julgados 77.705; muitos casos de agravos de instrumento em recursos extraordinários ou não (58.302), ou mesmo ações diretas de inconstitucionalidade (1.465). Mandados de segurança somaram 1.193. Relatório do ano de 1994indica que foram distribuídos no STF 26.441 processos, e em 1995, 25.998. No caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, apenas no ano de 1995, o Departamento de Processamento de 2ª instância informa que entraram no TJ 87.504 processos e foram julgados 74.965. Ações civis públicas, apenas no ano de 1995, foram 652 (na Seção Civil de Direito Privado e na de Direito Público). Mandados de segurança foram 5.337.
Quanto à irracionalidade dos meios é suficiente fazer referência ao sistema cartorial brasileiro. Uma grande reforma guiada não apenas por juristas, mas por especialistas em administração creio que seria mais do que bem vinda. O número de recursos vicia todo o sistema: sabedores de que sempre há um recurso todos tratam de usá-los, e tentando evitá-los, juízes e tribunais decidem os casos com um excesso de procedimentalismo (que beneficia uns mas não qualquer um). Os agravos para fazer chegar ao STJ e ao STF recursos especiais ou extraordinários são numerosíssimos. Como os processos são majoritariamente escritos, a confrontação concentrada das partes na audiência inexiste na prática: as provas e os documentos são juntados numa seqüência alternada, em que se sucedem os despachos de "diga a parte contrária", "ciência disto e daquilo", e assim por diante.
Enfim, há um longo caminho a percorrer para racionalizar o sistema, sem suprimir garantias.
Em tudo isto é notável que as receitas mais comuns da globalização não se prestam para as tarefas da defesa dos direitos humanos de forma muito simples e imediata. Se o propósito destas lutas é, sem dúvida, a imposição universal e igualitária da lei, é também a reforma das leis, das instituições e da cultura que promovem formas permanentes de exclusão moral, social, política e econômica.
BIBLIOGRAFIA
BOSWELL, John. Christianity, social tolerance andhomosexuality. Chicago: University of Chicago Press, 1980.CALDEIRA, Teresa. Direitos humanos ou 'privilégios de bandidos'? Desventuras da democratização brasileira. Novos Estudos Cebrap, 30:162-174, jul. 1991.CARDIA, Nancy. Direitos humanos: ausência de cidadania e exclusão moral. In: Princípios de Justiça e Paz. São Paulo: Comissão de Justiça e Paz, 1995.. Direitos humanos e exclusão moral. In: Os direitos humanos no Brasil. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência/Comissão Teotônio Vilela, 1995.DAKOLIAS, Maria. A strategy for judicial reform: theexperience in Latin America. Virginia Journal of International Law. 36 (1) 167:231, 1995.FERRAJOLI, Luigi. El Estado constitucional de derecho hoy: el modelo y su divergencia de la realidad. In: ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto (Org.). Corrupcion y Estado de Derecho: el papel de la jurisdición. Madrid: Trotta, 1996.FISS, Owen. Globalization and its consequences for democracy: the case of the World Bank. Paper apresentado no Seminario de Latinoamerica sobre temas Constitucionales, Buenos Aires, 1996.GOMIEN, Donna, (no prelo) "Nothing bad intended: child discipline,punishment, and survival in a shantytown in Rio de Janeiro, Brazil"GUTMAN, Amy, (Ed.). Multiculturalism. Princeton (NJ): PrincetonUniversity Press, 1994.HABERMAS, Juergen. Struggles for recognition in the democraticconstitutional state. GUTMAN, Amy, (Ed.). Multiculturalism. Princeton (NJ): Princeton University Press, 1994.. Citizenship and national identity. In: Betwen facts and norms. Cambridge (Ma): MIT Press, 1996.HOLSTON, James, Appadurai, Arjun. Cities and Citizenship. Public Culture, 8(2):187-204, 1996.HORSMAN, George. Inflation in the Twentieth Century: evidence from Europe and North America. New York: St. Martin's Press, 1988.HUNT, Lynn (Ed.). The French Revolution: a brief documentary history. Boston/New York: St. Martin's Press, 1996.JANSEN, Letácio. A face legal do dinheiro. Rio de Janeiro: Renovar. 1991.KANT, Imanuel. Textos seletos (edição bilíngue). Tradução de Raimundo Vier e Floriano de Sousa Fernandes e introdução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1974.NOEL, Lise. L'intolérance. Quebec/Paris: Boreal/Seuil, 1991.Núcleo de Estudos da Violência/Comissão Teotônio Vilela. Os direitos humanos no Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo(NEV/CTV), 1993.. Os direitos humanos no Brasil, 2. ed. São Paulo: USP/NEV/CTV, 1995.NUSSBAUM, Arthur. Money in the law: national and international. Brooklyn: The Foundation Press, 1950.PAARLBERG, Don. An analysis and history of inflation. Westport (Ct)/London: Praeger, 1993.REICH, Charles. O trabalho das nações. Trad. José Maria Castro Caldas. Lisboa: Quetzal, 1993.SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Tribunais e a globalização. O Estado de São Paulo, de 9.11.96, p. A2.SCHMUKLER, Nathan, Marcus, Edward. Inflation through the ages: economic, social, psychological and historical aspects. New York: Brooklyn College Press/Columbia University Press, 1983.TAYLOR, Charles. The ethics of authenticity. Cambridge (Ma)/London: Harvard University Press, 1991.
. The politics of recognition. GUTMAN, Amy (Ed.). Multiculturalism. Princeton (NJ): Princeton University Press, 1994.
___________
* Texto da palestra proferida na Seminário Internacional de Direitos Humanos — Direitos Humanos, Globalização e Pobreza, no dia 28.11.96, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP.
** Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP.
(1) Alguns estudos de antropologia mostram entre nós estas formas de violência, exclusão e preconceito. Por exemplo Teresa Caldeira (1992) City of Walls: crime, segregation and citizenship in São Paulo. Berkeley, tese de doutorado, Universidade da Califórnia em Berkeley; Donna Goldstein (no prelo) ""Nothing bad intended: child discipline, punishment and survival in a shantytown in Rio de Janeiro, Brazil", no arquivo pessoal do autor.
(2) Conto os 65 anos a partir da memória sobre a escravidão apresentada por José Bonifácio à assembléia constituinte, em 1823, propondo a abolição gradativa e meios de integração dos libertos à vida econômica, inclusive recebendo dadas de terra.
(3) Um esclarecimento é necessário. Um estudo empírico talvez venha mostrar que esta "classe média" que necessita da intervenção do Ministério Público seja realmente uma parte da classe dos trabalhadores que luta para manter um padrão de consumo que vai perdendo, na medida em que a economia brasileira tem sido incapaz de ampliar generalizadamente — ou seja, sem concentração excessiva — a renda. Neste sentido, a defesa de certos interesses privados pelo Ministério Público é compreensível e, em alguns casos aceitável e justificável. No entanto, formas alternativas de intervenção deveriam ser mais exploradas, tais como a constituição de conselhos capazes de debater as políticas de educação pública, por exemplo, e levá-las a execução.
(4) Há um evidente interesse de organizações internacionais e do grande interesse econômico "global" na reforma do judiciário no Brasil e na América Latina. Esta advertência já foi feita por Boaventura Sousa Santos e é clara no ensaio de Maria Dakolias. Uma das justificativas iniciais para o texto é justamente a necessidade de um judiciário eficiente para fazer cumprir os contratos e, portanto, dar segurança a investidores internacionais. Além de alguns equívocos por causa de generalizações indevidas — o caso brasileiro não corresponde a várias afirmações feitas — o texto é revelador de um juízo prévio com relação à América Latina. Surpreende qualquer latino-americano bem informado: todos sabem que nossos tribunais foram e continuam sendo bastiões seguros do direito de propriedade e dos contratos, condenando com freqüência e facilidade surpreendentes, para os norte-americanos bem informados, todos os níveis de governo. Vários estudos feitos na Europa e nos EUA demonstram que o uso dos tribunais por grandes empresas naquelas regiões é mais complexo do que o que consta nos livros de direito.
Comentários
Postar um comentário
Qualquer sugestão ou solicitação a respeito dos temas propostos, favor enviá-los. Grata!