Fim da vitaliciedade dos juízes é queda da cidadania
Francisco
Glauber Pessoa Alves é juiz federal em Pernambuco, ex-presidente da
Associação dos Juízes Federais da 5ª Região (Rejufe), doutor e mestre
pela PUC-SP e professor universitário.
Na
antiguidade, as questões eram decididas pela comunidade ou pelo líder
local. O sistema foi avançando até o nascimento da jurisdição, com
pessoas regularmente investidas da função de julgar. Como dizer aos
outros como se comportar e resolver seus problemas é atribuição por
vezes ingrata, os ordenamentos jurídicos passaram a reconhecer a
necessidade de garantias mínimas aos encarregados da função julgadora.
Têm-se como garantias do Estado Democrático de Direito brasileiro a
vitaliciedade, além da inamovibilidade e da irredutibilidade vencimental
(artigo 95, da Constituição Federal - CF).
O
sistema responsabilizatório dos magistrados brasileiros pode ser
administrativo, cível e penal. O administrativo é pautado pela
Constituição Federal (artigos 93 a 95) e pela Lei Complementar 35/79 (artigos 35 a
48), a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman). Toca às
corregedorias locais e nacionais a apuração da conduta dos magistrados,
sendo a aposentadoria compulsória a pena máxima prevista - casos de
infrações graves, que muitas vezes são, também, delitos civis e penais.
A
aposentadoria compulsória pode ser integral (se o magistrado
compulsoriamente aposentado já tiver tempo suficiente para se aposentar
voluntariamente) ou proporcional (se não tiver tempo suficiente à
aposentação voluntária). Em razão dessa circunstância (a sanção
meramente administrativa não poder implicar na perda do cargo), diz-se
que os juízes têm a prerrogativa da vitaliciedade (artigo 95, inciso I).
Ela significa que a perda do cargo somente se dá por decisão judicial,
seja em ação civil ou penal, e não por decisão administrativa. A perda,
mediante ação civil ou penal, não resta obstada pelo que
administrativamente decidido. Na seara extrajurisdicional (não na
judicial), a sanção máxima é a aposentadoria compulsória. Nada mais que
isso.
O
âmbito cível lato sensu pode ensejar a indenização pura e simples
perante qualquer indivíduo (artigo 5º, V da CF; artigo 49, da Loman),
parte prejudicada, principalmente, assim como a responsabilização à luz
da Lei 8.429/92, também conhecida como Lei de Improbidade Administrativa
(LIA), que, prevê sanções como multa, ressarcimento, perda da função
pública e suspensão dos direitos políticos (artigo 12).
A
responsabilização criminal dá-se a partir da prática de fato tipificado
como crime ou contravenção, seja no Código Penal, seja em qualquer
outra legislação esparsa. Como efeito da condenação, é possível a perda
da função pública (artigo 92, I do Código Penal). Os crimes mais comuns
estão previstos nos artigos 312 a 327 do CP: corrupção, concussão, prevaricação etc.
As
responsabilidades são independentes: um mesmo fato pode ensejar sanção
administrativa, civil e penal. Pode existir, assim, a pena de
aposentadoria compulsória (via processo administrativo), a perda civil
do cargo (via processo cível) e a perda penal (via processo criminal) do
cargo. Tudo derivando de um mesmo fato. São apurações distintas, em
áreas só episodicamente interligadas. Reitere-se: a apuração
administrativa não esgota a área de sancionamento do magistrado faltoso,
sujeito ainda à sanção civil e penal.
O
Ministério Público (assim como a pessoa jurídica interessada, como
União, estado, município, dentre outros) deve propor ação por
improbidade administrativa (artigo 17 da Lei 8.429/92). O Ministério
Público, se o fato configurar tipo penal, também deve promover a ação
penal. Aliás, isso é sua obrigação (artigo 129, I e III da CF).
Dito
tudo isso, de forma mui sintética, para esclarecer: há hoje um regime
de responsabilização do juiz bastante rigoroso. São muitos deveres
previstos em leis e regulamentos administrativos - alguns, de duvidosa
constitucionalidade. Com a atuação do CNJ, notadamente sua visibilidade
nacional, magistrados passaram a ser punidos, alguns com aposentadoria
compulsória, seja com subsídios proporcionais, seja com subsídios
integrais. O leigo, então, não compreende: o sujeito-juiz comete um fato
grave e recebe como sanção uma aposentadoria que é muito mais um
prêmio, já que muita gente precisa trabalhar muito e por determinada
idade mínima para se aposentar. Voltaremos a essa falsa impressão.
É
bom saber que: a) o Ministério Público atua nos processos
administrativos disciplinares contra magistrados (de onde pode propor as
medidas civis e penais pertinentes); b) o artigo 22 da Resolução CNJ
135/2011 (que regula o processo administrativo contra juízes e aplicável
a todos os tribunais brasileiros, com exceção do STF) determina a
remessa de cópia dos autos ao Ministério Público, em se verificando a
prática, em tese, de crime de ação penal pública incondicionada, para
que ali sejam tomadas as providências cíveis e penais cabíveis; c) a
mesma norma também preceitua a remessa de cópias dos autos ao Ministério
Público, à Advocacia da União ou Procuradoria do Estado quando for
aplicada pena de aposentadoria compulsória, de sorte a que as
providências cíveis sejam tomadas; d) existe um regime legal que obriga o
Ministério Público a atuar, seja na esfera cível, seja na penal,
responsabilizando maus magistrados (artigo 129, da CF; Lei Complementar
75/93; Lei 8.625/93).
Cogita-se
agora, no Congresso Nacional (PEC 53), da discussão, oblíqua que seja,
da garantia da vitaliciedade dos magistrados, para o fim de permitir que
decisões não transitadas em julgado redundem na perda do cargo de juiz.
Há mesmo quem defenda que mesmo decisões administrativas já teriam esse
condão.
Há,
primeiramente, uma séria questão constitucional. Sendo a vitaliciedade
parte integrante do regime jurídico da magistratura e havendo o Brasil
optado pelo princípio da tripartição de funções (artigo 2º da CF),
alterar seu regime legal significa afrontar cláusula pétrea, o que
constitucionalmente vedado (artigo 60, § 4º, III da CF).
Por
outro lado, a vitaliciedade não existe como um privilégio do titular do
cargo. Sua gênese é assegurar independência aos juízes. As questões
envolvidas nos processos julgados por magistrados envolvem,
necessariamente, a propriedade, a vida e a liberdade das pessoas. Em
razão disso, pressões (de políticos, de partes, de advogados e até mesmo
de colegas de instâncias superiores) são comuns.
Não
é difícil imaginar isso. Em razão do recente julgado da AP 470,
conhecida como “mensalão”, assim como com as decisões proferidas pelo
STF suspendendo seja aspectos do processo legislativo, seja mesmo a
vigência de normas aprovadas com grande repercussão, vários
parlamentares mostraram-se indignados com a postura do STF. Há casuísmo e
represália maior ao judiciário do que isso? Felizmente, a maior parte
do Congresso Nacional é formada por parlamentares com preocupações
suficientes com a nossa Constituição para não se deixarem influenciar
por visões açodadas e irresponsáveis.
Conceba:
a) o juiz eleitoral que decida desfavoravelmente ao político “dono” da
situação; b) o magistrado que tiver sob suas mãos o julgamento de casos
de corrupção ou de colarinho branco e proferir sentença condenatória; c)
o juiz estadual que, decidindo corretamente determinada causa (por
exemplo, negando ao seu corregedor, num processo judicial, o direito à
guarda de um filho numa separação), desagrade o tribunal; d) o juiz que
der uma decisão contrária ao Município, ao Estado ou à União. Nenhum
desses (outros inúmeros exemplos poderiam ser dados aqui), sob razoável
risco, decidirá adequadamente se não sentir-se suficientemente seguro e
independente pela vitaliciedade. Numa manobra política, a força dos
prejudicados pode muito bem atuar para impor a perda do cargo ao juiz
que ousou decidir contra o establishment.
Dir-se-á
que isso é um exagero, que as corregedorias, tribunais e conselhos
terão lucidez para separar o joio do trigo. Como, se sem suas garantias,
os magistrados corregedores também estarão sujeitos aos caprichos
políticos dos contrariados?!
Não
faz tantos anos assim, a ditadura estabelecida em 1964 e que durou até
1985 cassou ministros (não simples juízes, mais aqueles situados no topo
da estrutura judiciária) porque atreveram-se a conceder Habeas Corpus
em favor de presos “políticos”. Nomes como Victor Nunes, Hermes Lima e
Evandro Lins e Silva, de inestimáveis serviços prestados à história
brasileira, foram colocados numa berlinda, porque decidiram contra o
Executivo. A atual presidente e alguns dos parlamentares atuais foram
presos políticos: bem sabem a importância de um juiz independente.
Sem
a garantia plena da vitaliciedade, por simples decisão administrativa
(em vez de judicial, com todas as garantias do devido processo legal), o
tribunal ou conselho pode decretar a perda do cargo. É mais grave ainda
do que na época do AI-5, quando apenas a chefia do Executivo cassava
juízes.
Isso
pode parecer algo distante, mas quem tem vivência no meio jurídico,
sabe que as pressões que juízes sofrem são mais comuns, infelizmente, do
que se pensa ou poder-se-ia aceitar. Por outro lado, minorar a
vitaliciedade, permitindo a perda do cargo sem decisão transitada em
julgado, é igualmente gravoso. Só sabe a importância de um juiz
responsavelmente independente quem precisa de um.
Fique
claro: nenhum juiz ou país sério quer ou deseja que juízes não tenham
suas responsabilidades! Como cidadãos que são, devem responder por seus
atos. Existem, sim, infelizmente, maus juízes. Isso é fato e ninguém
nega isso. Mas, não se pode, sob pretexto do que uma pequena minoria faz
de ruim, prejudicar os direitos da imensa maioria que cumpre a contento
seu trabalho, tanto mais quando isso ofenda uma cláusula pétrea da
Constituição Federal.
Uma
proposta bastante simples e útil, se se quer ajudar, seria estabelecer a
obrigatoriedade constitucional: I) de remessa de qualquer decisão
administrativa condenatória de magistrados para o Ministério Público;
II) de propositura, pelo Ministério Público, salvo decisão motivada
sujeita à ratificação pelo Colegiado Superior do órgão (federal ou
estadual), da medida cível e/ou penal cabíveis, na forma, aliás, do que
dispõem já a legislação infraconstitucional (artigo 24 do Código de
Processo Penal; Lei Complementar 75/93; Lei 8.625/93).
Por
último, um dado importante. O CNJ apontou que, em cinco anos, 40
magistrados sofreram punições, dos quais 29 receberam a aposentadoria
compulsória. Existem no Brasil cerca de 16.000 juízes, dos quais apenas
0,18% cometeram atos merecedores de aposentadoria compulsória nos
últimos cinco anos. É mais fácil, correto e responsável apurar a
responsabilidade civil e administrativa desses poucos sancionados do que
transigir com uma conquista que antes de ser corporativa é do próprio
Estado brasileiro. A queda da independência da magistratura será a queda
da cidadania.
Fonte: Associação dois Juízes Federais do Brasil
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