“O Testamento Vital à Luz dos Princípios Constitucionais
Resumo:
O testamento vital, embora já tutelado na legislação de
vários outros países, a exemplo dos Estados Unidos da América, Bélgica,
Argentina, Portugal, além de outros, no Brasil ainda não houve a sua
positivação, inexistindo, assim, legislação específica que regule a matéria.
A resolução nº 1.805/2006, do Conselho Federal de Medicina
Brasileiro, que permitiu ao médico limitar ou suspender procedimentos ou
tratamentos que prolonguem a vida do doente, em fase terminal, vem servindo de
fundamento para o entendimento doutrinário que tem se manifestado
favoravelmente a esse instituto.
Os princípios da Autonomia Privada, Liberdade e da Dignidade
da Pessoa Humana corroboram às teses doutrinárias positivas, servindo, também,
de fonte para as decisões judiciais que, a exemplo da doutrina, têm ido ao
encontro desse posicionamento.
Palavras-chave: Testamento Vital. Ortotanásia. Princípios
Constitucionais. Conselho Federal de Medicina.
Sumário: 1Introdução; 2 A Busca Pela Positivação Do Direito À
Morte Digna; 3 Testamento Vital; 4 O Princípio Da Dignidade Da Pessoa Humana X
O Princípio Da Autonomia Privada; 5 Da Eutanásia, Distanasia E Ortotanasia; 6 O
Testamento Vital Como Exercício Da Autonomia Privada Em Busca Da Diginidade Da
Pessoa Humana; 7 Conclusão; 8 Referências.
1. Introdução:
A Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988
aborda o direito à vida como fundamento supremo, considerado, portanto, a base
de todos os fundamentos e princípios do ordenamento jurídico.
O direito à vida deve ser analisado juntamente com o
fundamento da dignidade da pessoa humana, de maneira que não se pode falar em
direito à vida sem que ela seja digna.
Há de se falar em um assunto que a princípio pareça ser
contraposto, o direito à vida e o direito a se ter uma morte digna. Neste
contexto, pode-se e se tratar a morte como uma fase natural da vida, pois o ser
humano tem o direito de ter uma morte digna, de forma que seja evitado o sofrimento
desnecessário. Assim, para resguardar o direito à morte digna a pessoa,
valendo-se de sua autonomia, redige um documento no qual descreve a maneira que
deseja ser tratada em seu leito de morte.
Apesar de vários debates sobre o tema ainda não há no ordenamento
jurídico brasileiro, uma positivação desse instituto, denominado por muitos
doutrinadores como Testamento Vital ou Biológico. Este artigo pretende
discorrer sobre a definição doutrinária do Testamento Vital, apontando a
aplicação dos princípios da dignidade da pessoa humana e autonomia privada
intimamente ligado ao instituto supracitado.
2. A busca pela positivação do Direito à Morte Digna
A vida e a morte podem ser entendidas como potências opostas
de um mesmo processo. Assim como a insônia e o sono, a velhice e a juventude, o
antigo e o novo, existe a vida e a morte, esse processo faz parte da
experiência humana.
É da cultura ocidental encarar a morte como um evento de
profunda tristeza e sofrimento. Morrer ainda está ligado ao final de tudo. É o
desconhecido que ainda está por vir.
Discorrendo pela o desenvolvimento histórico do tema, é
possível identificar o posicionamento da igreja católica, a contrário senso o
Papa João Paulo II, na Encíclica Evangelium Vitae deixou transparecer a opção
da Igreja Católica pela ortotanásia, expressando-se da seguinte forma:
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado
excesso terapêutico, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à
situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se
poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para sua
família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável,
pode-se, em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um
prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo, interromper os cuidados
normais devidos ao doente em casos semelhantes. Há, sem dúvida, a obrigação
moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há de medir-se
segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios
terapêuticos à disposição são objetivamente proporcionados às perspectivas de
melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não
equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição
humana de fronte à morte. [6]
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em
recente reunião de sua Comissão de Bioética, composta por cientistas, médicos,
juristas e teólogos também deu seu nihil obstat para a aprovação da ortotanásia
no Brasil.
Em 1984, com a proposta de modificação da Parte Geral do
Código Penal, havia também um anteprojeto para modificar a Parte Especial,
contudo ele não ocorreu, esse anteprojeto previa expressamente que, não
constituiria crime deixar de manter a vida de alguém, por meio artificial, se
previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável e
desde que haja consentimento do doente, ou na sua impossibilidade, de
ascendente, descendente, cônjuge ou irmão.
Esse texto se referia à definição dada à ortotanásia e não à
eutanásia, previa a situação em que o processo de morte já se iniciou, estando
a vida mantida artificialmente, sem chance de cura ou melhora, havendo, apenas,
o prolongamento de morte natural por via artificial.
Posteriormente, com a edição da resolução 1.931 do Conselho
Federal de Medicina, em seu artigo 41, foi possibilitado aos médicos, em casos
terminais e sem condições de que seu estado de saúde se reverta, que agissem
dessa forma, desde que preenchidos alguns requisitos. Vejamos:
Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido
deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal,
deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender
ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em
consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, ade seu
representante legal.[7]
Preenchidos os requisitos da declaração de vontade, o médico
poderia abreviar a vida e ficar isento de processo administrativo de natureza
ética e até mesmo afastando a possibilidade de responder criminalmente por
homicídio.
O Representante do Ministério Público Federal ingressou com
uma ação civil pública contra tal resolução, obtendo, em caráter liminar, a
suspensão desta Resolução. Entretanto, a Procuradora Federal que sucedeu o
Procurador Federal, autor da ação, opinou em suas alegações finais pela
improcedência do pedido inicial, feito pelo Ministério Público Federal,
entendendo que se tratava de ortotanásia e não de eutanásia, sendo, o Conselho
Federal de Medicina, legítimo para legislar a respeito da matéria.
3. Testamento Vital
Ainda não existe legislação específica sobre o tema no
Brasil, contudo, tanto o Conselho Federal de Medicina (CFM), quanto o poder
judiciário, já admitem a validade do testamento vital.
A resolução do Concelho Federal de Medicina nº 1.995 de 2012,
regulamentou a matéria possibilitando definir, antecipadamente, os limites nos
quais os médicos podem agir. Vejamos:
Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de
pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se ou de expressar de maneira
livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas
diretivas antecipadas de vontade
§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para
tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.
(omissis)
§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre
qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos
familiares[8].
Essa resolução permite que o paciente, nesta situação, deixe
um testamento relatando sua vontade, e possibilitando que seja nomeado um
representante para que sua pretensão seja cumprida mesmo sem o consentimento de
seus familiares.
Segundo o Conselho Federal de Medicina, os desejos expressos
no documento devem prevalecer, inclusive, sobre a vontade dos familiares, os
quais, na maioria das vezes, relutam em respeitar as vontades do ente querido.
A única exceção ocorre quando as escolhas do autor do testamento vital afrontam
os preceitos da ética médica.
Esse “testamento” é uma forma de registro em que uma pessoa
dispõe acerca de procedimentos médicos aos quais deseja ou não ser submetida em
caso de ser diagnosticada com uma doença terminal que impossibilite-a de se
manifestar. Apesar de não existir um padrão, o testamento vital pode ser
redigido por qualquer pessoa maior de 18 anos, no pleno gozo de sua capacidade
mental, podendo ou não ser registrado em cartório.[9]
Para a confecção desse “testamento”, aconselha-se a ajuda de
um médico, visto que, para ser válido no Brasil, só poderá versar sobre
interrupção ou suspensão de tratamentos extraordinários, ou seja, os que visam
apenas prolongar a vida do paciente como por exemplo a utilização de
desfibrilador. Já, os cuidados paliativos, não podem ser recusados, pois têm o
objetivo de melhorar a qualidade de vida do paciente até a derradeira hora.
No Brasil, esse “testamento” é mais conhecido como Testamento
Vital, mas, também recebe outras denominações tais como: “Diretivas Antecipadas
de Vontade” e “Declaração de Prévia Vontade”. A advogada e doutora em ciências
da saúde Luciana Dadalto Penalva esclarece que o melhor termo a ser utilizado
seria Declaração Prévia de Vontade, porém tem sido mais conhecida e divulgada
por Testamento Vital em decorrência de “errôneas e sucessivas traduções de
living will”.[10]A inadequação do termo mais usual se dá por indevida
aproximação com o instituto do testamento, que tem linhagem patrimonial e
eficácia causa mortis, diferentemente do primeiro, ligado a questões
existenciais e eficaz quando ainda vivo o declarante.
Tal instituo já encontra guarida na legislação de vários
países, tais como: Alemanha, Argentina, Áustria, Espanha, França, Holanda,
Estados Unidos dentre outros.[11]
4. O princípio da dignidade da pessoa humana X o princípio da
Autonomia Privada
O tema é inerente à reivindicação por vários direitos, como a
dignidade da pessoa humana, a liberdade, a autonomia e a consciência
individual; refere-se ao desejo de se ter uma morte humana, sem o prolongamento
da agonia por parte de um tratamento inútil.
Segundo a advogada e especialista em Direito Médico, Luciana
Dadalto[12]:
(...) o testamento vital é uma forma de assegurar os direitos
das pessoas, mesmo quando elas não têm condição de manifestá-los. (...) o
avanço das tecnologias disponíveis na medicina tem possibilitado, cada vez
mais, prolongar a sobrevivência das pessoas, mesmo daquelas em processos
irreversíveis. O problema é que, em alguns casos, a extensão da vida traz não
só sofrimentos desnecessários, como atenta contra a dignidade dos pacientes.
Alguns procedimentos são extremamente invasivos e, no fim, não trazem
benefícios significativos. Mesmo assim, a atual prática médica tende a recorrer
todos os recursos disponíveis, independentemente dos efeitos colaterais e dos
valores em que o paciente acredita.
Porém, no que se refere ao tema testamento vital e aos
princípios constitucionais elencados na Carta Magna, eis que surgem alguns
conflitos ao aplicar os princípios constitucionais ao testamento vital.
A Dignidade da Pessoa Humana é sem dúvida o fundamento
basilar da Constituição Federal, o artigo 1º do referido diploma legal, em seu
texto, assegura o direito a ter uma vida digna.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana; [13]
A aplicação deste princípio fundamental ao testamento vital
engloba uma série de discussões jurídicas e medicinais. Francisco Mori
Rodrigues Motta conceitua o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, senão
vejamos:
A dignidade é essencialmente um atributo da pessoa humana
pelo simples fato de alguém "ser humano”, se tornando automaticamente
merecedor de respeito e proteção, não importando sua origem, raça, sexo, idade,
estado civil ou condição sócio-econômica.
É um princípio fundamental incidente a todos os humanos desde
a concepção no útero materno, não se vinculando e não dependendo da atribuição
de personalidade jurídica ao titular, a qual normalmente ocorre em razão do
nascimento com vida.[14]
É um critério unificador de todos os direitos fundamentais ao
qual todos os direitos humanos e do homem se reportam, em maior ou menor grau,
apesar de poder ser relativizado, na medida em que nenhum direito ou princípio
se apresenta de forma absoluta.
Há que se falar que o Princípio fundamental da Dignidade da Pessoa
Humana é considerado pela doutrina como o “Princípio dos Princípios”, ou seja,
todos os princípios e garantias elencados na Carta Magna são baseados nele.
No que tange ao Princípio da Autonomia Privada, disposto no
artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, segundo a qual a pessoa é capaz
de decidir sobre sua vida, desde que tal ato não seja contrário à lei. In
verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei;[15]
O doutrinador J. J Gomes Canotilho conceitua brilhantemente o
Princípio da Autonomia Privada.
Se as ideias contratuais de Hobbes acabaram na legitimação do
poder absoluto, em Loke a teoria contratual conduzirá a defesa da autonomia
privada, essencialmente cristalizada no direito à vida, à liberdade e à
propriedade. [16]
A doutrinadora Maria Berenice Dias conceitua o Princípio da
Autonomia como sendo:
A autonomia compreende-se como o direito do paciente no uso
pleno de sua razão- ou de seus responsáveis, quando faltar consciência- de
estabelecer os limites em que gostaria de ver respeitada sua vontade em
situações fronteiriças. Por exemplo: em um paciente terminal de câncer, são
validas as tentativas de uso de quimioterapia potentes na esperança de
prolongar a vida? Ou simplesmente deve se tratar a dor, embora sabendo-se que
com essas medidas pode estar sendo apressando seu fim? [17]
Aplicando tais princípios ao tema abordado, verifica-se uma
questão muito relevante a ser debatida. Pois bem, analisando o conceito de
dignidade da pessoa humana chega-se a um impasse. Esse fundamento aplicado no
testamento vital vai de encontro ao princípio da autonomia da vontade e também
a garantia à vida.
Todavia, analisando minuciosamente os princípios pode-se
notar que a pessoa tem o direito a uma vida digna de não querer prolongar seu
sofrimento quando se sabe que não existem procedimentos que possam curá-la.
Nesse mesmo raciocínio, encontra-se o posicionamento de
Roxana Cardoso Brasileiro Borges:
(...) é assegurado o direito à vida (não o dever), mas não se
admite que o paciente seja obrigado a ser submeter a tratamento. O paciente tem
o direito de interromper o tratamento com base do direito constitucional de
liberdade (inclusive liberdade de consciência), de inviolabilidade de sua
intimidade e honra, e além disso de respeito à sua dignidade humana[18].
Continua a autora afirmando que:
(...) aConstituiçãoo não prevê o direito à morte, pelo fato
de que ninguém é imputado o dever de matar. Dever à vida é coisa que não
existe. Tanto é assim que o Código Penal não tipifica como ilícito penal a
tentativa de suicídio. A vontade do paciente expressa no testamento vital de
não se submeter a tratamentos inúteis que apenas prolongam uma mera vida
biológica, sem nenhum outro resultado, não é forma de eutanásia. É
reconhecimento da morte como elemento da vida humana, é da condição humana ser
mortal. É humano deixar que a morte ocorra, sem o recurso a meios artificiais
que prolonguem inutilmente a agonia. A intervenção terapêutica contra a vontade
do paciente é um atentando contra a sua dignidade.
Dessa forma, conclui-se que o testamento vital, mesmo não
sendo legalizado no ordenamento jurídico brasileiro, este possui requisitos de
validade, tendo em vista o respeito da vontade e da autodeterminação da pessoa.
Entretanto, deve-se ressaltar que, para que tal testamento seja aceito, a
doença do paciente deve ser de tratamento e estágio irreversível.
5. Da eutanásia, distanásia e ortotanásia
Para erradicar qualquer dúvida sobre a eutanásia, o
doutrinador Pedro Lenza aborda um conceito muito interessante.
A eutanásia passiva vem adquirindo vários defensores (o
desligamento das maquinas de doentes em estágio terminal, sem diagnóstico de
recuperação), assim como o suicídio assistido. Alguns falam que a eutanásia
ativa (o Estado- médico- provocando a morte) seria homicídio.
A ideia de bom senso, prudência e razoabilidade devem ser
consideradas.
A vida deve ser vivida com dignidade. Definido o seu início
(tecnicamente pelo STF), não se pode deixar de considerar o sentimento de cada
um. A decisão individual terá que ser respeitada. (grifo nosso).[19]
Dessa forma, o que se pretende com o testamento vital é
garantir a pessoa a aplicação de um direito estabelecido na Constituição
Federal, bem como resguardar os médicos de possíveis sanções penais.
De forma a não restar qualquer dúvida sobre a diferença entre
a eutanásia, distanásia e ortotanásia, eis a explanação dos conceitos de
distanásia e ortotanásia.
A distanásia é o prolongamento artificial da vida do paciente
com muito sofrimento para o paciente, mesmo sem haver a possibilidade de
melhora com os tratamentos aplicados. Conforme Maria Helena Diniz, “trata-se do
prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil.
Não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte.[20]
A ortotanásia, por sua vez, significa “morte certa”, é deixar
que a morte ocorra naturalmente, devendo ser acompanhada pelos médicos, seria
um processo de morte assistida.
6. O testamento vital como exercício da autonomia privada em
busca da dignidade da pessoa humana
A Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 não
autoriza de forma expressa a ortotanásia (morte no seu tempo). Os entendimentos
favoráveis à sua aplicação analisam sua vinculação a princípios elencados na
própria Constituição. Entre os princípios analisados estão presentes o
Princípio da Autonomia e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
O Princípio da Autonomia é destacado pelo legislador constituinte
ainda no início do texto constitucional. Artigo 1º, da Constituição Federativa
do Brasil de 1988, com destaque para o inciso IV, traz a seguinte redação:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.[21]
A ideia de autonomia de vontade, de livre iniciativa é
reforçada, ainda, pelo caput do artigo 170 do texto constitucional:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios:[22]
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, a exemplo do
Princípio da Autonomia, também encontra amparo no artigo 1º da Constituição da
Republica Federativa do Brasil de 1988. O inciso III do citado artigo o coloca
como um dos fundamentos da República.
A doutrina apresenta conclusões positivas e favoráveis à
possibilidade jurídica do Testamento Vital. Os conceitos de autonomia privada,
o Princípios da Liberdade e da Dignidade da Pessoa Humana, são utilizados como
base para a sustentação de sua validade. A transcrição das palavras de Flávio
Tartuce:
“Desse modo, delimitada a aplicação do conceito, a resposta
destes autores é positiva quanto a possibilidade jurídica do instituto. A
partir do conceito de autonomia privada, que vem a ser direito que a pessoa tem
de regulamentar os seus interesses, decorrentes dos princípios constitucionais
da liberdade e da dignidade, trata-se de um exercício admissível da vontade
humana. Isso porque a ortotanásia representa um correto meio-termo entre a
eutanásia e a distanásia, uma sabedoria a ser procurada por todos os envolvidos
com o fato, de todas as áreas do pensamento”. [23]
Ainda carecendo de lei específica que discipline o Testamento
Vital, no plano da jurisprudência estadual, julgado do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul abre precedentes para outras decisões, conforme colação a
seguir:
APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA.
TESTAMENTO VITAL.
1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à
amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o
sofrimento”; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das
faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia
mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar
sua vida.
2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da
ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida
por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural.
3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser
combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III,
ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição
institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite
que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime
quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15
do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de
vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a
vida, a pessoa pode ser constrangida a tal.
4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de
eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos
autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012,
do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida.[24]
O caso em comento, teve início com o ingresso de ação do
Ministério Público, com pedido de alvará judicial para suprimento da vontade de
um idoso, que encontrava-se internado, em estado de necrose do pé esquerdo, que
vinha se agravando, pondo em risco sua vida, sendo necessário a amputação do
membro inferior, sob pena de morte por infecção generalizada.
O paciente se opôs aos procedimentos. Laudos médicos
constataram que o paciente não apresentava estado de demência, estando lúcido,
sendo pessoa capaz e estava desistindo da própria vida. Sendo o pedido do
Ministério público indeferido pelo juízo singular.
O Ministério Público apelou da decisão, mas o Desembargador
Relator desproveu a apelação, sendo acompanhado pelos demais Desembargadores,
entendendo que o Estado não pode invadir o corpo do paciente e realizar a
cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo interesse nobre
de salvar sua vida.
Observa-se que a vontade do paciente era morrer para aliviar
o sofrimento. Não era seu desejo se submeter a tratamentos, prolongando a vida
por meios artificiais, além do que seria o processo natural. O Acórdão reforça
a ideia de dignidade humana, voltada para a qualidade de vida.
É justamente esse o objetivo do Testamento Vital:
Possibilitar ao paciente terminal a alternativa entre prolongar o tratamento ou
diminuir o seu sofrimento, dando, assim, um pouco mais de conforto nos momentos
finais de sua vida.
Nesse contexto, é Importante destacar as palavras
esclarecedoras de Leo Pessini, teólogo estudioso do assunto:
“Nasce uma sabedoria a partir da reflexão, da aceitação e da
assimilação do cuidado da vida humana no sofrimento do adeus final. Entre dois
limites opostos: de um lado, a convicção profunda que brota das culturas das
religiões de não matar ou abreviar a vida humana sofrida (eutanásia); de outro
lado, a visão e o compromisso para não prolongar a dor, o sofrimento, a agonia,
ou pura e simplesmente adiar a morte (distanásia, tratamento fútil, obstinação
terapéutica). No não matar e no não agredir terapeuticamente está o amarás,
isto é, o cuidado da dor e do sofrimento humano, que em última instância aceita
a morte e faz desta experiência o último momento de crescimento de vida, como
revela todo o trabalho pioneiro da médica psiquiatra norte-americana Elizabeth
Kubler-Ross. É o ideal da ortotanásia”. (Questões... In: GARRAFA, VOLNEI;
PESSINI, Leo (Org.). Bioética..., 203, p. 406).[25]
7. Conclusão
Proteger a vontade privada, assegurando o direito de escolha,
considerando a autonomia e capacidade para decidir. Esse é o principal objetivo
do Testamento Vital. É, exatamente, em respeito a autonomia da vontade do
paciente em estado irreversível que o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo
ainda carecendo de positivação, tem contemplado a existência de requisitos de
validade no tema discorrido. Em suma, o instituto aqui analisado, se apresenta
como uma alternativa entre uma morte mais confortável e o prolongamento do
sofrimento por meio de tratamentos que não vão reverter o quadro do paciente.
Os princípios constitucionais iluminam o direito do paciente em decidir sobre a
sua vida e também sobre sua morte”.