Processo REsp 808708 / RJ
RECURSO ESPECIAL
2006/0006072-8 Relator(a) Ministro HERMAN BENJAMIN (1132) Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 18/08/2009 Data da Publicação/Fonte DJe 04/05/2011 Ementa
ADMINISTRATIVO. JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO. BEM PÚBLICO.
DECRETO-LEI 9.760/46 PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. BEM
TOMBADO. ARTS. 11 E 17 DO DECRETO-LEI 25/1937. OCUPAÇÃO POR
PARTICULARES. CONSTRUÇÃO. BENFEITORIAS. INDENIZAÇÃO.
IMPOSSIBILIDADE. DIREITO DE RETENÇÃO. DESCABIMENTO. ARTS. 100, 102,
1.196, 1.219 E 1.255 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002.
1. Fundado em 1808 por Dom João VI, o Jardim Botânico do Rio de
Janeiro é um dos tesouros do patrimônio natural, histórico, cultural
e paisagístico do Brasil, de fama internacional, tendo sido um dos
primeiros bens tombados, ainda em 1937, pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, sob o pálio do então
recém-promulgado Decreto-Lei 25/1937.
2. Os remanescentes 140 hectares, que atualmente formam o Jardim
Botânico, são de propriedade da União, o que, independentemente das
extraordinárias qualidades naturais e culturais, já obriga que
qualquer utilização, uso ou exploração privada seja sempre de
caráter excepcional, por tempo certo e cabalmente motivada no
interesse público.
3. Não obstante leis de sentido e conteúdo induvidosos, que
salvaguardam a titularidade dos bens confiados ao controle e gestão
do Estado, a história fundiária do Brasil, tanto no campo como na
cidade, está, infelizmente até os dias atuais, baseada na indevida
apropriação privada dos espaços públicos, com freqüência às claras
e, mais grave, até com estímulo censurável, tanto por ação como por
leniência, de servidores públicos, precisamente aqueles que deveriam
zelar, de maneira intransigente, pela integridade e longevidade do
patrimônio nacional.
4. Além de rasgar a Constituição e humilhar o Estado de Direito,
substituindo-o, com emprego de força ou manobras jurídicas, pela
"lei da selva", a privatização ilegal de espaços públicos,
notadamente de bens tombados ou especialmente protegidos, dilapida o
patrimônio da sociedade e compromete o seu gozo pelas gerações
futuras.
5. Consoante o Código Civil (de 2002), "Os bens públicos não estão
sujeitos a usucapião" (art. 102) e os "de uso comum do povo e os de
uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua
qualificação" (é o caso do Jardim Botânico), nos termos do art. 100.
Mais incisiva ainda a legislação do patrimônio histórico e artístico
nacional, quando dispõe que "As coisas tombadas, que pertençam à
União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só
poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades"
(art. 11, do Decreto-Lei 25/1937, grifo acrescentado).
6. A ocupação, a exploração e o uso de bem público - sobretudo os de
interesse ambiental-cultural e, com maior razão, aqueles tombados -
só se admitem se contarem com expresso, inequívoco, válido e atual
assentimento do Poder Público, exigência inafastável tanto pelo
Administrador como pelo Juiz, a qual se mantém incólume,
independentemente da ancianidade, finalidade (residencial, comercial
ou agrícola) ou grau de interferência nos atributos que justificam
sua proteção.
7. Datar a ocupação, construção ou exploração de longo tempo, ou a
circunstância de ter-se, na origem, constituído regularmente e só
depois se transformado em indevida, não purifica sua ilegalidade,
nem fragiliza ou afasta os mecanismos que o legislador instituiu
para salvaguardar os bens públicos. Irregular é tanto a ocupação,
exploração e uso que um dia foram regulares, mas deixaram de sê-lo,
como os que, por nunca terem sido, não podem agora vir a sê-lo.
8. No que tange ao Jardim Botânico do Rio, nova ou velha a ocupação,
a realidade é uma só: o bem é público, tombado, e qualquer uso,
construção ou exploração nos seus domínios demanda rigoroso
procedimento administrativo, o que não foi, in casu, observado.
9. Na falta de autorização expressa, inequívoca, válida e atual do
titular do domínio, a ocupação de área pública é mera detenção
ilícita ("grilagem", na expressão popular), que não gera - nem pode
gerar, a menos que se queira, contrariando a mens legis, estimular
tais atos condenáveis - direitos, entre eles o de retenção,
garantidos somente ao possuidor de boa-fé pelo Código Civil.
Precedentes do STJ.
10. Os imóveis pertencentes à União Federal são regidos pelo
Decreto-Lei 9.760/46, que em seu art. 71 dispõe que, na falta de
assentimento (expresso, inequívoco, válido e atual) da autoridade
legitimamente incumbida na sua guarda e zelo, o ocupante poderá ser
sumariamente despejado e perderá, sem direito a indenização, tudo
quanto haja incorporado ao solo, ficando ainda sujeito ao disposto
nos arts. 513, 515 e 517 do Código Civil de 1916.
11. A apropriação, ao arrepio da lei, de terras e imóveis públicos
(mais ainda de bem tombado desde 1937), além de acarretar o dever de
imediata desocupação da área, dá ensejo à aplicação das sanções
administrativas e penais previstas na legislação, bem como à
obrigação de reparar eventuais danos causados.
12. Aplica-se às benfeitorias e acessões em área ou imóvel público a
lei especial que rege a matéria, e não o Código Civil, daí caber
indenização tão-só se houver prévia notificação do proprietário
(art. 90 do Decreto-lei 9.760/46).
13. Simples detenção precária não dá ensejo a indenização por
acessões e benfeitorias, nem mesmo as ditas necessárias, definidas
como "as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore"
(Código Civil, art. 96, § 3°). Situação difícil de imaginar em
construções que deverão ser demolidas, por imprestabilidade ou
incompatibilidade com as finalidades do Jardim Botânico (visitação
pública e conservação da flora), a antítese do fim de "conservar o
bem ou evitar que se deteriore".
14. Para fazer jus a indenização por acessões e benfeitorias, ao
administrado incumbe o ônus de provar: a) a regularidade e a boa-fé
da ocupação, exploração ou uso do bem, lastreadas em assentimento
expresso, inequívoco, válido e atual; b) o caráter necessário das
benfeitorias e das acessões; c) a notificação, escorreita na forma e
no conteúdo, do órgão acerca da realização dessas acessões e
benfeitorias.
15. Eventual indenização, em nome das acessões e benfeitorias que o
ocupante ilegal tenha realizado, deve ser buscada após a desocupação
do imóvel, momento e instância em que o Poder Público também terá a
oportunidade, a preço de mercado, de cobrar-lhe pelo período em que,
irregularmente, ocupou ou explorou o imóvel e por despesas de
demolição, assim como pelos danos que tenha causado ao próprio bem,
à coletividade e a outros valores legalmente protegidos.
16. Inexiste boa-fé contra expressa determinação legal. Ao revés,
entende-se agir de má-fé o particular que, sem título expresso,
inequívoco, válido e atual ocupa imóvel público, mesmo depois de
notificação para abandoná-lo, situação típica de esbulho permanente,
em que cabível a imediata reintegração judicial.
17. Na ocupação, uso ou exploração de bem público, a boa-fé é
impresumível, requisitando prova cabal a cargo de quem a alega.
Incompatível com a boa-fé agir com o reiterado ânimo de se furtar e
até de burlar a letra e o espírito da lei, com sucessivas reformas e
ampliações de construção em imóvel público, por isso mesmo feitas à
sua conta e risco.
18. Na gestão e controle dos bens públicos impera o princípio da
indisponibilidade, o que significa dizer que eventual inércia ou
conivência do servidor público de plantão (inclusive com o
recebimento de "aluguel") não tem o condão de, pela porta dos fundos
da omissão e do consentimento tácito, autorizar aquilo que, pela
porta da frente, seria ilegal, caracterizando, em vez disso, ato de
improbidade administrativa (Lei 8.429/1992), que como tal deve ser
tratado e reprimido.
19. A grave crise habitacional que continua a afetar o Brasil não
será resolvida, nem seria inteligente que se resolvesse, com o
aniquilamento do patrimônio histórico-cultural nacional. Ricos e
pobres, cultos e analfabetos, somos todos sócios na titularidade do
que sobrou de tangível e intangível da nossa arte e história como
Nação. Daí que mutilá-lo ou destruí-lo a pretexto de dar casa e
abrigo a uns poucos corresponde a deixar milhões de outros sem teto
e, ao mesmo tempo, sem a memória e a herança do passado para narrar
e passar a seus descendentes.
20. Recurso Especial não provido.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior
Tribunal de Justiça: "A Turma, por unanimidade, negou provimento ao
recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)." Os
Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Eliana Calmon, Castro Meira e
Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Notas
Tema: Meio Ambiente
Palavras de Resgate
POSSE DE ÁREA PÚBLICA, TEORIA OBJETIVA DE IHERING, REGIME JURÍDICO
GERAL, MICROSSISTEMA, UNIVERSITAS IURIS, PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
OBJETIVA.
Referência Legislativa
LEG:FED DEL:009760 ANO:1946
ART:00070 ART:00071 PAR:ÚNICO ART:00090 ART:00091
LEG:FED DEL:000025 ANO:1937
ART:00001 PAR:00002 ART:00011 ART:00017 PAR:ÚNICO
LEG:FED LEI:010406 ANO:2002
***** CC-02 CÓDIGO CIVIL DE 2002
ART:00096 PAR:00003 ART:00100 ART:00102 ART:01196
ART:01219 ART:01255 PAR:ÚNICO
LEG:FED LEI:003071 ANO:1916
***** CC-16 CÓDIGO CIVIL DE 1916
ART:00485 ART:00513 ART:00515 ART:00516 ART:00517
ART:00547
LEG:FED LEI:008429 ANO:1992
***** LIA-92 LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
LEG:FED CFB:****** ANO:1988
***** CF-1988 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
ART:00100 ART:00102 ART:00183 PAR:00003
Veja
(OCUPAÇÃO IRREGULAR DE ÁREA PÚBLICA - DIREITO DE RETENÇÃO OU
INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS)
STJ - REsp 863939-RJ, REsp 699374-DF
Fonte: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=Demoli%E7%E3o+de+constru%E7%F5es&b=ACOR
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