MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DECLARATÓRIA DE
CONSTITUCIONALIDADE 54 DISTRITO FEDERAL
ADC 54 MC / DF
DECISÃO
AÇÃO DECLARATÓRIA DE
CONSTITUCIONALIDADE – MEDIDA
ACAUTELADORA – RELATOR –
ATUAÇÃO – EXCEPCIONALIDADE
VERIFICADA – DEFERIMENTO.
1. Os assessores Dr. Rafael Ferreira de Souza e Dr. Eduardo Ubaldo
Barbosa prestaram as seguintes informações:
O Partido Comunista do Brasil – PCdoB ajuizou ação
declaratória de constitucionalidade, com pedido de liminar,
buscando seja assentada a harmonia do artigo 283 do Código de
Processo Penal com a Constituição Federal. Eis o teor do
dispositivo:
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em
flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente, em decorrência de
sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso
da investigação ou do processo, em virtude de prisão
temporária ou prisão preventiva.
Ressalta a própria legitimidade, aludindo ao artigo 103,
inciso VIII, da Lei Maior, considerada a representação no
Congresso Nacional.
Discorre sobre a pertinência da ação, frisando a existência
de controvérsia sobre a validade do preceito, tida como das
mais relevantes no cenário constitucional brasileiro desde a
promulgação, em 5 de outubro de 1988, da chamada Carta
Cidadã.
Reporta-se à alteração na óptica quanto à questão atinente
à viabilidade de execução provisória, no âmbito penal, de
decisão condenatória em sede de apelação, a partir da
apreciação do habeas corpus nº 126.292, relator ministro Teori
Zavascki, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 17 de
maio de 2016 e, posteriormente, quando do exame, sob a
sistemática da repercussão geral e no denominado Plenário
Virtual, do recurso extraordinário com agravo nº 964.246,
relator ministro Teori Zavascki, com acórdão veiculado no
Diário da Justiça de 25 de novembro seguinte. Diz da
necessidade de o Supremo pronunciar-se, no campo de controle
concentrado, sobre a constitucionalidade da norma em jogo.
Menciona os debates havidos por ocasião da análise do
habeas de nº 152.752, relator ministro Edson Fachin, encerrado
na Sessão Plenária de 4 de abril de 2018. Segundo afirma, a
votação, por maioria simples de 6 votos no sentido do
indeferimento da ordem, não representa a visão majoritária do
colegiado a respeito da constitucionalidade, em tese, do artigo
283 do Código de Processo Penal. Articula com a indicação da
maioria dos integrantes do Tribunal no sentido de vedar-se a
execução precoce de pena após julgamento em segundo grau de
jurisdição, considerada a evolução, no entendimento, do
ministro Gilmar Mendes.
Sublinha que, mesmo não sendo possível assegurar a
existência de maioria formada em favor da conclusão de
condicionar-se o início do cumprimento da sanção ao trânsito
em julgado do título condenatório, a posição majoritariamente
compartilhada pelos Ministros consolidou-se pela
imprescindibilidade de fundamentar-se a custódia em
momento anterior à preclusão maior da condenação,
mostrando-se inconstitucional determinação automática de
execução da pena após a formalização de acórdão condenatório
em grau de apelação, exemplificada no verbete nº 122 da
Súmula do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
No tocante ao mérito, alega que o preceito em questão
revela o alcance do princípio constitucional da não
culpabilidade, conformando-o na moldura normativa prevista
no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.
Sob o ângulo do risco, realça que, na esteira do precedente
firmado no habeas corpus nº 126.292, por apertada maioria de
votos, magistrados têm determinado, sem motivação adequada,
a execução provisória da pena de prisão antes do trânsito em
julgado de decisão condenatória proferida em segunda
instância. Aponta haver fato novo, ante a sinalização da maioria
dos integrantes do Supremo no sentido de vedar a
determinação de execução provisória e automática da sanção
sem que proclamado o preenchimento dos requisitos versados
no artigo 312 do Código de Processo Penal, bem assim levando
em conta a indicação da revisão da óptica anteriormente
assentada quando da apreciação, na Sessão Plenária de 5 de
outubro de 2016, dos pedidos de implemento de medida
acauteladora formulados nas peças primeiras das ações
declaratórias de constitucionalidade nº 43 e 44.
Requer, liminarmente, seja obstada a deflagração de novas
execuções provisórias de pena de prisão até o julgamento final
do contido neste processo e nos alusivos às citadas ações
declaratórias, bem assim suspensas as que já estiverem em
curso, libertando-se os cidadãos recolhidos antes da preclusão
maior do ato condenatório. Sucessivamente, busca impedir e
tornar sem efeito qualquer decisão a revelar a execução
antecipada de sanção quando ausente fundamentação lastreada
no artigo 312 do Código de Processo Penal, suspendendo-se a
eficácia do verbete nº 122 da Súmula do Tribunal Regional
Federal da 4ª Região.
Postula, em definitivo, a declaração de constitucionalidade
do artigo 283 do Código de Processo Penal. Caso não acolhido o pedido, pretende seja proclamada a necessidade de motivação
individualizada e à luz dos pressupostos do artigo 312 do
referido Código para ter-se a prisão. Sucessivamente, postula a
atribuição de interpretação conforme à Constituição, a fim de
condicionar a execução de título penal condenatório à análise,
pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso especial,
da causa.
Vossa Excelência, em 19 de abril de 2018, ante o disposto
nos artigos 21 da Lei nº 9.868/1999 e 21, inciso IV, do Regimento
Interno, pediu dia para inclusão, na pauta dirigida do Pleno, da
apreciação do pleito de liminar formalizado na peça primeira.
A Procuradoria-Geral da República, em 10 de agosto de
2018, apresentou parecer, manifestando-se pela inadmissão da
ação e, no mérito, pela improcedência, nos seguintes termos:
[…]
CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL.
EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA.
CONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTE
VINCULANTE DO STF. ARE 964246. PERDA DE OBJETO
DA ADC. OVERRULING. NÃO CABIMENTO. ART. 283
DO CPP NA REDAÇÃO CONFERIDA PELA LEI 12.403,
DE 2011. LIMITES AO ESPAÇO DE CONFORMAÇÃO
DO LEGISLADOR NA INTEGRAÇÃO DO PRINCÍPIO
DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. DISTINÇÃO ENTRE
A GARANTIA PROCESSUAL DA PRESUNÇÃO DE
INOCÊNCIA E A GARANTIA DA LIBERDADE CONTRA
A PRISÃO ARBITRÁRIA. PRISÃO APÓS
CONDENAÇÃO CONFIRMADA POR INSTÂNCIA
REVISIONAL COMO GARANTIA DE DIREITOS DAS
VÍTIMAS, CONTRA PROTEÇÃO INSUFICIENTE DE
DIREITOS INDIVIDUAIS E SOCIAIS.
INCONSTITUCIONALIDADE POR OFENSA AO DEVER
ESTATAL DE TUTELA. DEFINIÇÃO DA CULPA PENAL PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. AUSÊNCIA DE
EXCESSO ESTATAL NA PRISAO QUANDO PENDENTES
RECURSOS EXTREMOS.
1. A pretensão, veiculada na ADC, de que o STF, em
decisão objetiva dotada de caráter vinculante geral, se
pronuncie acerca da (in) compatibilidade do art. 283 do
CPP (na redação conferida pela Lei 12.403/2011) com a
execução provisória da pena de prisão acabou sendo
satisfeita supervenientemente, quando do julgamento do
ARE n. 964.246/SP, donde decorre já não mais subsistir
interesse/utilidade no julgamento do mérito da ADC.
2. Não estão satisfeitos os pressupostos materiais que
justificariam o overruling do precedente vinculante ligado
ao ARE n. 964.246/SP, a saber, a perda de congruência
social e consistência sistêmica do julgado. Revogá-lo,
mesmo diante de todos os argumentos jurídicos e
pragmáticos que o sustentam, representaria retrocesso
múltiplo: para o sistema de precedentes brasileiro, que, ao
se ver diante de julgado vinculante revogado pouco mais
de um ano após a sua edição, perderia em estabilidade e
teria sua seriedade posta em xeque; para a persecução
penal no país, que voltaria ao cenário do passado e teria
sua funcionalidade ameaçada por processos penais
infindáveis, recursos protelatórios e penas massivamente
prescritas; e para a própria credibilidade da sociedade na
Justiça, como resultado da restauração da sensação de
impunidade que vigorava em momento anterior ao
julgamento do ARE n. 964246/SP; para a proteção às
vítimas.
3. O princípio constitucional da presunção de
inocência, plasmado no art. 5º, LVII, CF, é garantia
processual que dura enquanto tramitar a lide, impondo,
particularmente a quem acusa e a quem sentencia, o dever
de fundamentar a acusação e a decisão. Não pode, a
pretexto de proteger em grau máximo direitos individuais
do réu, proteger em grau mínimo ou insuficiente os direitos fundamentais dos cidadãos contra agressões de
terceiros, mediante a imposição de restrições ao jus
puniendi que levem à inoperância da tutela penal.
4. A garantia constitucional da liberdade e da
proibição da prisão arbitrária, contida no inciso LXI do art.
5º (“ninguém será preso senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária
competente”) é desrespeitada pelo art. 283 do CPP, na
redação dada pela Lei 12.403, de 2001, pela introdução de
elemento estranho ao dispositivo constitucional,
nomeadamente o que exige que a prisão decorra de
sentença condenatória transitada em julgado.
Considerando que, no Brasil, o trânsito em julgado da
condenação, na prática, somente ocorrerá quando a defesa
se conformar e deixar de recorrer, exigir-se que o início do
cumprimento da pena de prisão dependa do trânsito em
julgado, tal qual faz o art. 283 do CPP, conduz,
inevitavelmente, a um sistema penal que ou pune
tardiamente (anos após a prática do ilícito) ou
simplesmente não pune (pela ocorrência da prescrição), o
que gera a sua disfuncionalidade sob duas óticas:
primeiro, ele deixa de dar resposta adequada e suficiente
aos conflitos penais que lhe são submetidos, deixando de
tutelar, assim, bens jurídicos relevantes à sociedade
(função retributiva do Direito Penal); e segundo, ele deixa
de produzir efeito intimidatório intenso e sério o bastante
a inibir a prática de novos crimes (função preventiva do
Direito Penal). Diante disso, o art. 283 do CPP é
parcialmente inconstitucional, por promover uma
proteção insuficiente a direitos fundamentais individuais e
sociais, como a vida, a integridade física e a segurança.
5. A Constituição não assegura um direito a não ser
preso. A Constituição assegura um direito a não ser
arbitrariamente preso. E prisão após condenação –
especialmente quando confirmada por instância revisional
– não se confunde nem se equipara a prisão arbitrária. A execução provisória da pena imposta por acórdão
condenatório não representa excesso do Estado em face do
réu: ela não deflui de um exame estatal precipitado ou
arbitrário acerca da responsabilidade do réu, mas sim de
um juízo exaustivo e definitivo, feito pelas únicas
instâncias judiciais que, no sistema processual brasileiro,
possuem atribuição para decidir sobre fatos e provas.
Corroboram essa afirmação estudos empíricos que
demonstram que são ínfimas as chances da defesa de
reverter condenações em sede de recursos extremos.
6. A vedação à execução provisória da pena produz
como efeito colateral o agravamento da já existente
seletividade do sistema penal brasileiro. Neste, alguns
poucos, por terem condições financeiras de apresentar
recursos sucessivos contra condenação, logram livrar-se
da sanção penal; ao assim fazê-lo, todavia, estes poucos
abarrotam o Poder Judiciário de recursos protelatórios, em
detrimento dos vários outros jurisdicionados que
aguardam uma resposta judicial aos seus conflitos.
Parecer pelo não conhecimento da ADC n. 54. No
mérito, pela improcedência da ADC n. 54, com o
reconhecimento da inconstitucionalidade parcial do art.
283 do CPP, especificamente no ponto em que veda a
execução provisória da pena.
Em 15 de agosto seguinte, determinou fossem
providenciadas as informações e a manifestação da AdvocaciaGeral da União, sem prejuízo da eventual designação, pela
Presidência do Supremo, de data de julgamento da medida
cautelar.
Esta ação declaratória foi distribuída por prevenção a
Vossa Excelência, considerada a identidade de objeto com
relação à de nº 43 (artigo 77-B do Regimento Interno do
Supremo).
O processo foi incluído, pela Presidência, na pauta da
Sessão Plenária do dia 10 de abril de 2019.
2. Atentem para a organicidade do Direito, em especial dos
procedimentos alusivos ao itinerário processual das ações trazidas a
exame do Supremo. Tenho por princípio inafastável, observado o artigo
21 da Lei nº 9.868/1999, a inviabilidade de haver, em processo objetivo, no
curso do Ano Judiciário, quando o Colegiado realiza sessões semanais,
atuação mediante decisão individual, ante a competência do Pleno para
implemento de medida acauteladora, exigida a maioria absoluta – 6
votos.
Firme nessa premissa, liberei, em 19 de abril de 2018, o processo para
inserção na pauta dirigida do Plenário, o que apenas veio a ocorrer em 18
de dezembro último, por meio de designação do dia 10 de abril de 2019
para julgamento, circunstância a autorizar a excepcional atuação
unipessoal do Relator, na forma dos artigos 10 da Lei nº 9.868/1999, 5º, §
1º, da Lei nº 9.882/1999 e 21, inciso V, do Regimento Interno, tendo em
vista a impossibilidade de imediato enfrentamento da matéria pelo
Colegiado em virtude do encerramento do segundo Semestre Judiciário
de 2018 e, via de consequência, do início do período de recesso.
No campo precário e efêmero, está-se diante de quadro a exigir
pronta atuação, em razão da urgência da causa de pedir lançada pelo
requerente na petição inicial desta ação e o risco decorrente da
persistência do estado de insegurança em torno da constitucionalidade do
artigo 283 do Código de Processo Penal.
O requerente, partido político com representação no Congresso
Nacional – artigo 103, inciso VIII, da Constituição Federal –, sustenta a
adequação da via eleita, dizendo configurada controvérsia judicial
relevante sobre ato normativo federal, entendendo-a, não sem razão,
como das mais significativas no cenário constitucional brasileiro desde a
promulgação, em 5 de outubro de 1988, da chamada Carta Cidadã, tão desprezada em tempos estranhos.
O objeto desta ação declaratória versa o reconhecimento,
considerado o figurino do artigo 5º, inciso LVII, da Lei Maior, da
constitucionalidade do citado artigo 283, no que condiciona o início do
cumprimento da pena ao trânsito em julgado do título condenatório.
Surge a identidade de objeto com relação às ações declaratórias de nº
43 e 44, de minha relatoria, fato a justificar a distribuição desta ação por
prevenção, conforme disposto no artigo 77-B do Regimento Interno do
Supremo.
Na Sessão Plenária de 5 de outubro de 2016, a sempre ilustrada
maioria concluiu pelo indeferimento das medidas acauteladoras
postuladas nas mencionadas ações declaratórias de constitucionalidade,
tendo ficado vencido na companhia dos ministros Rosa Weber, Ricardo
Lewandowski, Celso de Mello e, em parte, Dias Toffoli – circunstância
que, a princípio, afastaria a pertinência de novo exame colegiado de
pedido de implemento de medida acauteladora.
Observada a ordem processual, em 4 de dezembro de 2017, liberei
ambos os processos para inserção, visando o julgamento de mérito, na
pauta dirigida do Pleno, ato situado no campo das atribuições da
Presidência.
Conforme aponta o requerente, sobreveio fato novo a respaldar,
mesmo no campo precário e efêmero, nova manifestação deste Tribunal:
os pronunciamentos dos integrantes do Supremo, por ocasião do exame
do habeas corpus nº 152.752, relator ministro Edson Fachin, encerrado na
Sessão Plenária de 4 de abril de 2018. A votação por maioria simples de 6
votos no sentido do indeferimento da ordem não mais representaria a
visão majoritária do Colegiado a respeito da constitucionalidade, em tese,
do artigo 283 do Código de Processo Penal, considerada a evolução, no entendimento, do ministro Gilmar Mendes, e a ressalva da posição
pessoal quanto ao tema realizada pela ministra Rosa Weber, no que,
apesar de assentar a possibilidade de execução provisória da pena, no
caso específico, aludindo à dita jurisprudência dominante do Supremo,
ressaltou a necessidade de ser a questão revisitada quando da análise dos
processos objetivos de minha relatoria.
O quadro conduziu o Partido Ecológico Nacional – PEN, na ação
declaratória de nº 43, a requerer nova apreciação da matéria. Liberei o
pedido para julgamento do Pleno em 23 de abril de 2018, conforme
despacho cuja cópia foi remetida à Presidência.
O fato de o Tribunal, no denominado Plenário Virtual, atropelando
os processos objetivos acima referidos, sem declarar, porque não podia
fazê-lo em tal campo, a inconstitucionalidade do artigo 283 do aludido
Código, e, com isso, confirmando que os tempos são estranhos, haver, em
agravo que não chegou a ser provido pelo relator, ministro Teori Zavascki
– agravo em recurso extraordinário nº 964.246, formalizado, por sinal,
pelo paciente do habeas corpus nº 126.292 –, a um só tempo, reconhecido a
repercussão geral e “confirmado a jurisprudência”, assentada em
processo único – no citado habeas corpus –, não afasta a relevância da
causa de pedir lançada na petição inicial, no que direcionada à
preservação de garantia constitucional de envergadura maior, revelada
em cláusula pétrea – conforme a qual “ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” –
inciso LVII do artigo 5º da Carta da República.
Ao tomar posse neste Tribunal, há 28 anos, jurei cumprir a
Constituição Federal, observar as leis do País, e não a me curvar a
pronunciamento que, diga-se, não tem efeito vinculante. De qualquer
forma, está-se no Supremo, última trincheira da Cidadania, se é que
continua sendo. O julgamento virtual, a discrepar do que ocorre em
Colegiado, no verdadeiro Plenário, o foi por 6 votos a 4, e o seria, presumo, por 6 votos a 5, houvesse votado a ministra Rosa Weber, fato a
revelar encontrar-se o Tribunal dividido. A minoria reafirmou a óptica
anterior – eu próprio e os ministros Celso de Mello, Ricardo
Lewandowski e Dias Toffoli. Tempos estranhos os vivenciados nesta
sofrida República! Que cada qual faça a sua parte, com desassombro, com
pureza d’alma, segundo ciência e consciência possuídas, presente a busca
da segurança jurídica. Esta pressupõe a supremacia não de maioria
eventual – conforme a composição do Tribunal –, mas da Constituição
Federal, que a todos, indistintamente, submete, inclusive o Supremo, seu
guarda maior. Em época de crise, impõe-se observar princípios, impõe-se
a resistência democrática, a resistência republicana.
Fixadas tais balizas, tem-se a necessidade de nova análise do tema
em processo objetivo, com efeitos vinculantes e eficácia geral,
preenchendo o vazio jurisdicional produzido pela demora em levar-se a
julgamento definitivo as ações declaratórias de constitucionalidade, há
muito devidamente aparelhadas e liberadas para inclusão na pauta
dirigida do Pleno.
Observem a organicidade do Direito, levando em conta o previsto no
artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal – ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. A
literalidade do preceito não deixa margem para dúvidas: a culpa é
pressuposto da sanção, e a constatação ocorre apenas com a preclusão
maior.
O dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas. A
Constituição Federal consagrou a excepcionalidade da custódia no
sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade
anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar
para, em virtude de título judicial condenatório precluso na via da
recorribilidade, prender, em execução da pena, que não admite a forma
provisória.
A exceção corre à conta de situações individualizadas nas quais se
possa concluir pela aplicação do artigo 312 do Código de Processo Penal
e, portanto, pelo cabimento da prisão preventiva.
O abandono do sentido unívoco do texto constitucional gera
perplexidades, tendo em conta a situação veiculada nesta ação: pretende se a declaração de constitucionalidade de preceito que reproduz o texto
da Constituição Federal. Não vivêssemos tempos estranhos, o pleito
soaria extravagante, sem propósito; mas, infelizmente, a pertinência do
que requerido na inicial surge inafastável.
Ao editar o dispositivo em jogo, o Poder Legislativo, mediante a Lei
nº 12.403/2011, limitou-se a concretizar, no campo do processo, garantia
explícita da Constituição Federal, adequando-se à óptica então assentada
pelo próprio Supremo no julgamento do habeas corpus nº 84.078, relator
ministro Eros Grau, encerrado em 5 de fevereiro de 2009, segundo a qual
“a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser
decretada a título cautelar”.
Evidencia-se a repercussão negativa do entendimento adotado na
apreciação do habeas de nº 126.292: passados 7 anos, e não apenas 2,
reverteu-se a óptica que embasou a própria reforma do Código de
Processo Penal. Tem-se quadro lamentável, no qual o legislador alinhouse à Constituição Federal, enquanto este Tribunal dela afastou-se.
Descabe, considerada a univocidade do preceito, manejar
argumentos metajurídicos, a servirem à subversão de garantia
constitucional cujos contornos não deveriam ser ponderados, mas, sim,
assegurados pelo Supremo, como última trincheira da cidadania.
Conforme fiz ver ao analisar o habeas de nº 126.292:
O preceito, a meu ver, não permite interpretações. Há uma
máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso,
cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma
jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o
princípio da autocontenção. Já disse, nesta bancada, que,
quando avançamos, extravasamos os limites que são próprios
ao Judiciário, como que se lança um bumerangue e este pode
retornar e vir à nossa testa. Considerado o campo patrimonial, a
execução provisória pode inclusive ser afastada, quando o
recurso é recebido não só no efeito devolutivo, como também
no suspensivo. Pressuposto da execução provisória é a
possibilidade de retorno ao estágio anterior, uma vez
reformado o título.
Indaga-se: perdida a liberdade, vindo o título
condenatório e provisório – porque ainda sujeito a modificação
por meio de recurso – a ser alterado, transmudando-se
condenação em absolvição, a liberdade será devolvida ao
cidadão? Àquele que surge como inocente? A resposta,
Presidente, é negativa.
Caminha-se – e houve sugestão de alguém, grande Juiz
que ocupou essa cadeira – para verdadeira promulgação de
emenda constitucional. Tenho dúvidas se seria possível até
mesmo uma emenda, ante a limitação do artigo 60 da Carta de
1988 quanto aos direitos e garantias individuais. O ministro
Cezar Peluso cogitou para, de certa forma, esvaziar um pouco a
morosidade da Justiça, da execução após o crivo revisional,
formalizado por Tribunal – geralmente de Justiça ou Regional
Federal – no julgamento de apelação. Mas essa ideia não
prosperou no Legislativo. O Legislativo não avançou. Porém,
hoje, no Supremo, será proclamado que a cláusula reveladora
do princípio da não culpabilidade não encerra garantia, porque,
antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, é
possível colocar o réu no xilindró, pouco importando que,
posteriormente, o título condenatório venha a ser reformado.
O passo, Presidente, é demasiadamente largo e levará – já afirmou o ministro Gilmar Mendes – a um acréscimo
considerável de impetrações, de habeas corpus, muito embora
também seja dado constatar que o esvaziamento dessa ação
nobre, no que vinga a autodefesa, considerada a grande
avalanche de processos, e se busca uma base, seja qual for, para
o não conhecimento da ação – nomenclatura, esta, que se refere
a recursos –, considerados os pressupostos de recorribilidade.
Peço vênia para me manter fiel a essa linha de pensar
sobre o alcance da Carta de 1988 e emprestar algum significado
ao princípio da não culpabilidade. Qual é esse significado,
senão evitar que se execute, invertendo-se a ordem natural das
coisas – que direciona a apurar para, selada a culpa, prender –,
uma pena, a qual não é, ainda, definitiva. E, mais, não se
articule com a via afunilada, para ter-se a reversão, levando em
conta a recorribilidade extraordinária, porque é possível
caminhar-se, como se caminha no Superior Tribunal de Justiça e
no Supremo Tribunal Federal, para o provimento do recurso
especial ou do recurso extraordinário.
Também não merece prosperar a distinção entre as situações de
inocência e não culpa. A execução da pena fixada mediante sentença
condenatória pressupõe a configuração do crime, ou seja, a verificação da
tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. É dizer, o implemento da
sanção não deve ocorrer enquanto não assentada a prática do delito.
Raciocínio em sentido contrário implica negar os avanços do
constitucionalismo próprio ao Estado Democrático de Direito.
O princípio da não culpabilidade é garantia vinculada, pela Lei
Maior, ao trânsito em julgado, de modo que a constitucionalidade do
artigo 283 do Código de Processo Penal não comporta questionamentos.
O preceito consiste em reprodução de cláusula pétrea cujo núcleo
essencial nem mesmo o poder constituinte derivado está autorizado a
restringir.
Essa determinação constitucional não surge desprovida de
fundamento. Coloca-se a preclusão maior como marco seguro para a
severa limitação da liberdade, ante a possibilidade de reversão ou
atenuação da condenação nas instâncias superiores.
O problema adquire envergadura ímpar quando considerada a
superlotação dos presídios, destacada pelo Pleno ao apreciar a liminar
postulada na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº
347, de minha relatoria, acórdão publicado no Diário da Justiça eletrônico
de 19 de fevereiro de 2016. Naquela oportunidade, constatou-se o
exorbitante número de cidadãos recolhidos provisoriamente, a salientar a
malversação do instituto da custódia cautelar e, consequentemente, a
inobservância do princípio da não culpabilidade. Inverte-se a ordem
natural para prender e, depois, investigar. Conduz-se o processo criminal
em automatismo incompatível com a seriedade do direito de ir e vir dos
cidadãos.
Daí se extrai a importância do marco revelado pelo trânsito em
julgado do título condenatório, quando a materialidade delitiva e a
autoria ficam estremes de dúvidas e devidamente certificadas pelo
Estado-juiz: em cenário de profundo desrespeito ao princípio da não
culpabilidade, sobretudo quando versada prisão cautelar, descabe
antecipar, com contornos definitivos – execução da pena –, a supressão da
liberdade. Deve-se buscar a solução consagrada pelo legislador nos
artigos 312 e 319 do Código de Processo Penal, em consonância com a
Constituição Federal e ante outra garantia constitucional – a do inciso
LXVI do artigo 5º: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido,
quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
A via de acesso a este Tribunal, para salvaguarda da liberdade, tem
se estreitado sem respaldo constitucional. Em vez de incisivo na tutela de
princípio tão caro ao Estado Democrático de Direito, o Supremo vem
viabilizando a livre condução do processo persecutório por instâncias inferiores, despedindo-se de papel fundamental.
O quadro reforça ser imprescindível a adoção de postura fidedigna e
rigorosa na conformação dos casos autorizadores da custódia antes da
preclusão maior da sentença condenatória. Não se pode antecipar a culpa
para além dos limites expressos na Lei Maior, quando o próprio processo
criminal é afastado do controle do Supremo. Em resumo, suprime-se,
simultaneamente, a garantia de recorrer, solto, às instâncias superiores e o
direito de vê-la tutelada, a qualquer tempo, por este Tribunal.
A harmonia do dispositivo em jogo com a Constituição Federal é
completa, considerado o alcance do princípio da não culpabilidade,
inexistente campo para tergiversações, que podem levar ao retrocesso
constitucional, cultural em seu sentido maior. O quadro de delinquências
de toda ordem, de escândalos no campo administrativo, a revelar
corrupção inimaginável, apenas conduz à marcha processual segura,
observados os ditames constitucionais e legais. Longe fica de reescreverse a Constituição Federal e a legislação que dela decorreu, muito menos
pelo Supremo, em desprezo a princípio básico da República – o da
separação e harmonia dos Poderes. Não é o fato de o Tribunal assim o ser,
de os pronunciamentos que formalize não ficarem sujeitos a revisão
judicial, que levará ao desrespeito da ordem jurídico-constitucional, sob
pena de não se saber onde se parará. À Instituição, responsável pela
higidez da Constituição Federal, cumpre papel de importância única e
dele não pode despedir-se, ante o risco de vingar o critério de plantão,
desmando de toda ordem, a intranquilidade na vida gregária. Urge
restabelecer a segurança jurídica, proclamar comezinha regra, segundo a
qual, em Direito, o meio justifica o fim, mas não o inverso. Dias melhores
pressupõem a observância irrestrita à ordem jurídico-normativa,
especialmente à constitucional. É esse o preço que se paga ao viver em
Estado Democrático de Direito, não sendo demasia relembrar Rui
Barbosa quando, recém-proclamada a República, no ano de 1892,
ressaltou: “Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação”.
Sob a óptica do perigo da demora, há de ter-se presente a prisão ou
efetivo recolhimento, antes da preclusão maior da sentença condenatória,
não apenas dos condenados em segunda instância por corrupção – pelo
denominado crime do colarinho branco –, mas de milhares de cidadãos
acusados de haver cometido outros delitos. Se essa temática não for
urgente, desconheço outra que o seja.
3. Convencido da urgência da apreciação do tema, aciono os artigos
10 da Lei nº 9.868/1999, 5º, § 1º, da Lei nº 9.882/1999 e 21, inciso V, do
Regimento Interno e defiro a liminar para, reconhecendo a harmonia,
com a Constituição Federal, do artigo 283 do Código de Processo Penal,
determinar a suspensão de execução de pena cuja decisão a encerrá-la
ainda não haja transitado em julgado, bem assim a libertação daqueles
que tenham sido presos, ante exame de apelação, reservando-se o
recolhimento aos casos verdadeiramente enquadráveis no artigo 312 do
mencionado diploma processual.
4. Submeto este ato ao referendo do Plenário, declarando-me
habilitado a relatar e votar quando da abertura do primeiro Semestre
Judiciário de 2019.
5. Publiquem.
Brasília, 19 de dezembro de 2018, às 14 horas.
Ministro MARCO AURÉLIO
Relator.
>https://abrilveja.files.wordpress.com/2018/12/Liminar-segunda-inst%C3%A2ncia.pdf<.Acesso:19/12/2018
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