Quando o ano de 2018 fechava suas cortinas, descortinou-se a
“Lei do Distrato”, Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 2018, com o objetivo de,
no ano de 2019, servir como um marco legal para os contratos de alienação de
imóveis “na planta”. Em suma, a Lei insere artigos na Lei de Incorporação
Imobiliária (Lei nº 4.591/64) e na Lei de Loteamentos (Lei nº 6.766/76),
estabelecendo regras para o inadimplemento desses contratos.
É importante compreender o momento histórico.
Nos últimos anos, inúmeros consumidores, após assinarem
contratos de aquisição de imóveis “na planta” para pagamento parcelado, caíram
em inadimplência ou resiliram unilateralmente o contrato. Há vários motivos que
levam o consumidor a esse estado, como desemprego, custeio de doenças,
descontrole financeiro, mudança de cidade ou desinteresse posterior pelo bem.
O ambiente de crise imobiliária agravou o quadro. O valor
contratado no momento da venda do imóvel na “planta” se tornava muito maior do
que o valor de mercado do imóvel no momento da entrega das chaves. Houve vários
casos em que o saldo devedor a ser pago pelo consumidor no momento da entrega
das chaves excedia vertiginosamente o valor de mercado do bem, o que conduzia o
consumidor a desfazer o contrato unilateralmente (resilição unilateral) e a
reclamar judicialmente a devolução dos valores pagos com deduções não abusivas.
A quantidade de ações judiciais discutindo os direitos do
consumidor nesses casos foi colossal. A jurisprudência passou a delinear esses
direitos com base em princípios e cláusulas abertas, diante da falta de texto
legal fechado para várias dessas questões.
O STJ, apesar de já ter fixado várias teses jurídicas nesse
tema, ainda está para julgar recursos repetitivos para corroborar ou não várias
dessas orientações. A propósito, o STJ ouviu inúmeros juristas de notável porte
em audiências públicas, como o Professor Flávio Tartuce, que “apontou o risco
de cláusulas contratuais estabelecidas sem pactuação, como a multa unilateral,
no estilo “pegar ou largar”[1].
NOÇÕES PRELIMINARES: CONCEITOS BÁSICOS DE DIREITO CIVIL E
ATECNIAS REDACIONAIS
Resilição é o desfazimento do contrato apenas por vontade das partes. Se
for de ambas, tem-se uma resilição bilateral, também batizada de distrato. Se
for apenas de uma das partes, há uma resilição unilateral, também chamada de
denúncia.
Resolução é o desfazimento do contrato por justo motivo
diverso da mera vontade de uma das partes. Esse justo motivo tem de ter suporte
legal, como o desequilíbrio econômico-financeiro por fato superveniente nas
condições legais (arts. 317 e 478 do CC e art. 6 do CDC), o implemento de uma
condição resolutiva expressa (art. 474, CC) ou o próprio inadimplemento (que é
uma condição resolutiva tácita a atrair os arts. 474 e 475 do CC).
Incorporação imobiliária é o ato jurídico por meio do qual o
titular de um terreno aliena unidades de um futuro condomínio que será
instituído após o término das obras. Em jargão popular, é a famosa “venda na
planta”. É disciplinada na Lei nº 4.591/64.
Loteamento é o parcelamento do solo para a criação de lotes
servidos de infraestrutura e com acesso a novas vias de circulação. Também pode
ser considerada uma espécie de “venda na planta”, pois, embora o terreno do
lote já exista, o loteador ainda terá de realizar as obras de infraestrutura do
loteamento nos moldes do que se comprometeu no momento do registro do
loteamento.
Inadimplemento pode ser absoluto ou relativo.
É absoluto, quando a prestação se torna inútil com o
descumprimento da prestação. Nesse caso, o contrato deve ser resolvido, mas o
devedor terá de indenizar os prejuízos sofridos pelo credor. Essa indenização
pode ser prefixada por meio de uma cláusula penal compensatória (ou multa
compensatória).
O inadimplemento é relativo quando a prestação atrasada (em
mora) ainda é útil. Nesse caso, o contrato se mantém, mas caberá ao devedor
pagar a prestação atrasada acrescida de encargos moratórios. Entre esses
encargos moratórios, pode ser estipulada uma cláusula penal moratória (ou multa
moratória).
Portanto, multa moratória só se aplica para casos de
inadimplemento relativo, ao passo que multa compensatória só recai no caso de
inadimplemento absoluto. No caso de contratos de aquisição de imóvel “na
planta”, se qualquer das partes atrasa (comprador atrasa pagamento de prestação
ou vendedor atrasa entrega das obras), será cabível a cobrança de multa
moratória se o credor não pedir a resolução do contrato e preferir receber a
prestação em mora (inadimplemento relativo). Por outro lado, será devida multa
compensatória se o credor pedir a resolução do contrato (inadimplemento absoluto).
Em princípio, cabe ao credor decidir se a prestação inadimplida é ou não útil,
conforme parágrafo único do art. 395 do CC.
Cláusula penal também pode ser chamada de pena ou multa.
Nesse sentido, temos que a nova lei tropeçou em algumas
atecnias redacionais, como, por exemplo: (1) empregar, no § 3º do 32-A da Lei
nº 6.766/79, o termo “escritura” como se fosse categoria congênere de contrato,
quando a escritura é uma mera forma de um contrato; (2) valer-se do verbete
“distrato” no lugar de “resilição unilateral” no inciso V do art. 26 da Lei nº
4.591/64; (3) referir-se a um “contrato de incorporação imobiliária” quando, na
verdade, estava a se reportar ao contrato de aquisição de imóvel em regime de
incorporação. Sobre esse último aspecto, alerte-se que incorporação imobiliária
não é um contrato, e sim um ato jurídico unilateral a ser praticado pelo
incorporador com o objetivo de, se quiser, poder alienar unidades autônomas
antes do término da construção. A propósito da atecnia no manuseio do termo
“distrato”, aprofundaremos o tema posteriormente neste texto.
As críticas aos tropeços técnicos da lei já estão sendo
disparadas por grandes juristas. Por exemplo, o civilista Otávio Luiz Rodrigues
Junior fez várias denúncias, afirmando que: (1) ao tratar de resolução e
resilição como se fossem iguais, a nova lei ignorou que se tratavam de
“hipóteses absolutamente distintas segundo a boa técnica jurídica”; (2) “em
mais outro assassínio da boa técnica, cria-se uma nova modalidade de cláusula
penal com teto prefixado e não vinculada ao inadimplemento (necessariamente)
culposo”; (3) “a nova lei peca ao usar terminologia ultrapassada ou pouco
técnica”; (4) “essa lei é um exemplo de quão degradadas as relações de consumo
terminaram no país em 2018 e da fragilidade das associações de defesa do
consumidor em pressionar o Congresso para resguardar os interesses desse imenso
grupo”. E completa o livre docente pela Universidade de São Paulo: “haverá
choro e ranger de dentes para se explicar o assunto em sala de aula”[2].
ALCANCE DA LEI
De um lado, é atécnico chamar o novo diploma de “Lei do
Distrato”, pois, além do distrato, o seu foco é disciplinar o desfazimento do
contrato por culpa de uma das partes (resilição unilateral ou resolução por
inadimplemento).
De outro, é equivocado entender que a lei trata de todos os
contratos de aquisição de imóvel. Ela, na verdade, só cuida dos que envolvem
venda de imóveis “na planta”, seja em regime de incorporação, seja em regime de
loteamento. Portanto, contratos de venda de imóveis já construídos entre particulares
não são tratados pela nova lei.
Apesar disso, em se tratando de venda de imóveis construídos,
deve ser admitida, por analogia, a aplicação da nova lei quando o comprador
puder ser considerado consumidor, pois, onde há o mesmo fundamento, deve haver a
mesma regra (ubi eadem ratio, ibi eadem iuris). O art. 4 da LINDB
autoriza essa analogia.
Em vendas entre particulares sem relação de consumo, não há
razão para a incidência analógica da nova lei: o regime da liberdade contratual
deve seguir as regras gerais do direito civil.
Por fim, embora a lei só trate de contratos de compra e venda
e de seus desdobramentos (promessas e cessões), ela também deve ser estendida,
por analogia, mutatis mutandi, a outras espécies contratuais
envolvendo transferência de imóvel, como o contrato de permuta. Assim, se um
consumidor trocar um terreno próprio por um apartamento “na planta”, devem-se
observar analogicamente as regras da nova lei, como as de limites de valores de
multas compensatórias.
DIRETRIZES INTERPRETATIVAS: A PUBLICIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL E
O COTEJO COM O CENÁRIO ATUAL
Um dileto amigo de um dos coautores deste texto pediu-lhe a
gentileza de analisar se o contrato que ele estava para assinar com uma
incorporadora estava ou não juridicamente correto. Tratava-se de um amigo com
formação intelectual formidável, mas, como não era jurista, pediu ajuda. A
gentileza foi feita e foram denunciadas várias cláusulas absolutamente ilegais,
algumas por contrariar expresso texto legal, outras por contrastar com a
jurisprudência dominante. Esse amigo, de posse das denúncias, foi até a
incorporadora para solicitasr a alteração das cláusulas ilegais, mas a empresa
se recusou afirmando que se tratava de um contrato-modelo. Esse amigo acabou se
rendendo às cláusulas unilateralmente redigidas pelo incorporador, pois não
tinha poder de barganha para, em pé de igualdade, negociar o conteúdo do
contrato. Ele tinha vulnerabilidade econômica. Ele era consumidor e acabou
tendo de curvar-se ao contrato de adesão. Se não o fizesse, ele jamais iria
conseguir comprar imóvel “na planta”, pois todas as incorporadoras (com
raríssimas exceções) comportam-se assim perante consumidores, que não possuem
poder de barganha. Se, porém, a incorporadora estivesse a vender inúmeros
imóveis “na planta” para um grande fundo de investimento imobiliário, o poder
de barganha deste seria igual ao da incorporadora e certamente o conteúdo do
contrato não seria imposto pela incorporadora. Contamos essa história pessoal
apenas para enfatizar que realmente os consumidores são vulneráveis, mesmo
aqueles com as maiores sofisticações intelectuais e, por isso, merecem proteção
jurídica.
O nosso ordenamento preocupa-se com esses contratos firmados
por partes com força negocial desigual, editando leis de ordem pública. Trata-se
do fenômeno conhecido como publicização[3], que é a utilização de normas de ordem
pública para o direito civil. Isso ocorre quando há um desnível de forças entre
as partes na negociação a flexibilizar a livre iniciativa, que é um valor
constitucional e que respalda o pacta sunt servanda e a
autonomia da vontade. A própria Lei nº 4.591/64 nasceu sob esse
espírito, objetivando impor limites ao incorporador e proteger o adquirente. Em
relações envolvendo compra de imóveis “na planta”, a parte mais fraca é o
adquirente, especialmente se ele for consumidor. O CDC igualmente carrega essa
lógica: atenua o pacta sunt servanda e a autonomia da vontade
em proteção ao consumidor, que é parte mais vulnerável e que não dispõe do
mesmo poder de barganha.
Logo, a nova lei tem de ser interpretada no sentido de
proteger o adquirente do bem, colocando limites a cláusulas exageradas contra
ele. Seria inconstitucional seguir outra diretriz interpretativa, porque a
livre iniciativa prevista no art. 170 da CF só pode ser flexibilizada quando
houver algum valor social relevante protegido pela CF, como o da proteção do
consumidor.
Ademais, não se pode ignorar que a nova lei nasceu num
contexto em que a jurisprudência já tinha consolidado alguns entendimentos,
como a inversão de cláusulas contra as incorporadoras, a limitação da multa
compensatória em percentual de 10 a 15% etc. A maior parte desses entendimentos
se baseia no uso de princípios protetivos ao consumidor, razão por que a nova
lei tem de ser interpretada como um retoque jurídico a esse cenário
jurisprudencial atual. Assim, se a nova lei não afastou explicitamente alguns
desses entendimentos jurisprudenciais e se estes eram favoráveis ao adquirente,
o intérprete deve considerá-los como subsistentes. Por exemplo, a inversão da
multa compensatória em desfavor do incorporador ou do loteador não foi
textualmente afastada; logo, ela precisa ser entendida como subsistente.
LEGISLAÇÃO APLICÁVEL: NOVA LEI VS CDC
A nova lei modificou apenas a Lei nº 4.591/64 e a Lei nº
6.766/76, e não o CDC. Daí surge a questão: as novas regras serão aplicadas
também para relações de consumo?
Há casos em que o adquirente de imóvel “na planta” não é
consumidor, a exemplo de fundos de investimentos imobiliários. Não há dúvidas
de que esses casos são alcançados pela nova lei.
O problema é saber se consumidores também são atingidos.
Entendemos que a nova lei será aplicável quando houver
consumidor, pois, além de os debates no Congresso Nacional terem sido focados
em calibrar as regras perante os consumidores, a nova lei faz referência
esparsa ao CDC em alguns dispositivos, a exemplo do novo art. 35-A da Lei
4.591/64. De fato, o CDC será aplicável concomitantemente à nova lei, de modo a
limitar práticas abusivas para proteção da parte mais vulnerável.
Diante do aparente conflito entre a nova lei e o CDC, somos
pela utilização da técnica do “Diálogo das Fontes”, que entrega ao jurista a
missão de coordenar as duas normas em conflito para, no caso concreto, obter a
solução mais justa.
Portanto, o CDC deve ser aplicado em harmonia com a nova lei
nos contratos de aquisição de imóvel “na planta” firmados por consumidores.
IRRETROATIVIDADE DA NOVA LEI: SÓ PARA CONTRATOS
POSTERIORES
A nova lei só poderá atingir contratos celebrados posteriormente à
entrada em vigor. Não poderá, jamais, atingir contratos anteriores, nem mesmo
os efeitos futuros desse contrato, porque a retroatividade – ainda que mínima –
é vedada no direito brasileiro para normas que não sejam constitucionais
originárias. A propósito, reportamos o leitor a excelente artigo da Ministra
Fátima Nancy Andrighi[4] e também ao texto “Caso dos planos
de saúde a retroatividade das leis”[5].
Assim, se, após a entrada em vigor da nova lei, um consumidor
incorrer em inadimplência em relação a um contrato antigo, o caso deverá ser
disciplinado pela legislação anterior. Não pode a nova lei incidir, sob pena de
se chancelar uma retroatividade mínima para a nova lei, o que seria
inconstitucional.
De qualquer forma, por uma manobra astuciosa, há a
possibilidade de os tribunais, à luz da legislação anterior, mudarem seus
entendimentos para chegarem a um resultado igual ao da nova lei, especialmente
quando a questão tiver sido tratada com base na volatilidade de princípios e de
cláusulas abertas. Assim, por exemplo, os tribunais costumavam considerar
abusivas as multas compensatórias acima de 15% do valor pago contra o
consumidor e, para tanto, valia-se do conceito aberto de abuso de direito
previsto nos arts. 413 do CC e 51 do CDC. Os tribunais poderiam, baseando-se
nesse mesmo conceito aberto, passar a entender que a multa compensatória
poderia chegar a 25% ou a 50% conforme haja ou não patrimônio de afetação, tudo
de modo a chegar ao mesmo resultado prático da nova lei.
Entendemos, porém, que essa manobra seria indevida e jamais
deveria ser admitida pelos tribunais para o caso em específico, pois, além de
os referidos percentuais serem alarmantes à luz do ordenamento jurídico
anterior à nova lei, a orientação consolidada dos tribunais gera legítima
expectativa nos indivíduos, que, confiando nela, celebram contratos e propõem
ações judiciais. Mudar jurisprudência consolidada gera insegurança jurídica.
Seja como for, caso os tribunais venham a mudar o seu
entendimento, eles devem, no mínimo, modular os efeitos por dois motivos.
O primeiro motivo é que o próprio CPC protege essa boa-fé e
essa segurança jurídica, recomendando a modulação de efeitos da mudança de
jurisprudência consolidada a fim de que o novo entendimento só se aplique para
ações judiciais posteriores (art. 927, § 3º, CPC).
O segundo é que, ao nosso sentir, essa modulação dos efeitos
é exigência do princípio constitucional da segurança jurídica e da legalidade.
É que a norma jurídica tem de ser prévia. E, por norma jurídica, há de
entender-se não apenas o texto legal, mas também a sua interpretação, pois,
como é consabido, lei é texto e contexto. Portanto, seria inconstitucional
mudança de jurisprudência consolidada para atingir ações judiciais anteriores.
Desse modo, temos que, na hipótese de os tribunais vierem a
mudar sua jurisprudência consolidada para chegar a um resultado similar ao da
nova lei, é dever deles aplicar essa nova orientação apenas para ações judiciais
propostas posteriormente à nova lei, sob pena de ferir os princípios
constitucionais da segurança jurídica e da legalidade.
QUADRO-RESUMO NOS CONTRATOS E ANUÊNCIA ESPECÍFICA
Em prestígio ao direito de informação, os contratos de
alienação de imóveis “na planta” deverão conter um quadro-resumo com as
principais informações do contrato, nos moldes do art. 35-A da Lei nº 4.591/64
e do art. 26-A da Lei nº 6.766/76.
A falta de qualquer das informações, todavia, não gera
repercussões jurídicas severas, à luz do texto legal. Somente poderá o
adquirente, nesse caso, pedir o aditamento do contrato em até 30 dias para, num
ato meramente estético, o quadro-resumo ser complementado com informações que
estão no corpo do texto do contrato. Na remotíssima hipótese de o incorporador
não sanar esse retoque cosmético, poderá o adquirente pedir a resolução do
contrato por culpa do incorporador. Esse é o texto do § 1º do art. 35-A da Lei
nº 4.591/64 e do § 1º do art. 26-A da Lei nº 6.766/76.
Questão relevante é saber se a falta de uma das informações
obrigatórias no quadro-resumo também poderia gerar a nulidade ou ineficácia de
cláusulas contratuais. Entendemos que não. O texto legal é expresso em só
estabelecer uma consequência jurídica: o direito do adquirente em exigir o
retoque cosmético acima. Parece-nos que a nova lei pecou em não ter avançado na
punição pela falta de informações no quadro-resumo, mas não enxergamos espaço
para a doutrina ou a jurisprudência obter esse avanço pela via da hermenêutica.
Ademais, para a informação relativa às consequências do
desfazimento do contrato, há necessidade de uma assinatura específica do
consumidor ao lado da cláusula contratual. A lei não indica a sanção para o
caso de violação dessa cláusula (art. 26-A, § 2º, do CDC). Ora, considerando
que essa cláusula é de ordem pública e que essa cláusula prevê regras
prejudiciais ao adquirente, entendemos que a consequência da falta de
assinatura específica do adquirente ao lado da cláusula das consequências do
desfazimento do contrato é a nulidade dessa cláusula: trata-se de uma espécie
de nulidade virtual, nos moldes dos incisos VI e VII do art. 166 do CC.
CABIMENTO DA RESOLUÇÃO UNILATERAL (IMOTIVADA)
A questão é: o consumidor pode ou não imotivada e unilateralmente resilir
o contrato enquanto houver parcelas pendentes de pagamento?
O art. 473 do CC permite a resilição unilateral quando a lei
implícita ou expressamente o admita e estabelece que ela se concretiza com a
mera notificação extrajudicial (denúncia) da outra parte.
O tema precisa ser analisado sob a ótica da vedação ao abuso
de direito e da tutela do consumidor.
Entendemos que, em havendo relação de consumo, a
vulnerabilidade jurídica, informacional e econômica do consumidor precisa ser
protegida e, nesse sentido, a resilição unilateral imotivada deve ser admitida
se o saldo devedor ainda não tiver sido integralmente pago. Se o contrato foi
textualmente contrário, ele é nulo nessa parte por ofensa aos arts. 473 do CC e
51 do CDC. E há vários motivos.
Em primeiro lugar, há o problema da “vontade presumível do
consumidor”. Se o consumidor não tivesse essa vulnerabilidade, é de
presumir-se que ele iria exigir a aposição explícita de uma cláusula contratual
que autorizaria essa sua libertação do pacto enquanto houver pendência de
pagamento. É que, ao se comprometer a pagar prestações futuras de elevado valor
(como sói acontecer com aquisições de imóveis), o consumidor precisa ter uma
garantia de, em sobrevindo qualquer problema pessoal (doença, desemprego,
bloqueio judicial de sua conta bancária etc.), poder desvencilhar-se
honrosamente do contrato ainda pendente de pagamento, resilindo-o
unilateralmente por meio de mera notificação extrajudicial e sujeitando às
punições contratuais devidas.
Em segundo lugar, temos o problema “da existência de encargos
indenizatórios e punitivos”. No caso de rompimento do contrato por culpa do
adquirente, a lei explicitamente assegura ao empreendedor imobiliário o direito
a uma expressiva multa compensatória, de 25% a 50% do valor pago, e à retenção
da comissão de corretagem, conforme os novos art. 67-A da Lei 4.591/64 e art.
32-A da Lei 6.766/76. Essas punições contratuais foram previstas exatamente
para indenizar o incorporador. Aliás, a multa compensatória até foi majorada em
relação ao patamar que era admitido pela jurisprudência anterior, que, nesse
ponto, oscilava em admitir cláusula penal compensatória com percentual entre 10
a 15%.
Em terceiro lugar, há o problema do “pacto perpétuo” e do
“puro arbítrio do alienante”. E, sob essa ótica, é irrelevante que o caput do
art. 67-A da Lei 4.591/64 e o art. 33-A da Lei 6.766/76 não tenham feito
referência expressa à resilição unilateral, mas apenas tenham se reportado à
resolução por inadimplemento do consumidor e ao distrato. Essa é a interpretação
adequada desses preceitos à luz da vedação ao abuso de direito, tutela do
consumidor (CDC incide em diálogo das fontes) e do espírito da nova lei.
Explica-se. Se não fosse admitida a resilição unilateral,
estaríamos a entregar o rompimento do contrato ao puro arbítrio do fornecedor,
que, diante do inadimplemento do consumidor, teria a faculdade de escolher
entre, de um lado, resolver o contrato no momento em que lhe aprouver (caso em
que cobrará a multa compensatória pactuada) ou, de outro lado, simplesmente
cobrar as prestações vencidas e as que vierem se vencer, hipótese em que o
consumidor ficará eternamente escravizado ao contrato, vendo impotentemente a
dívida se engordurar com encargos moratórios e com novas prestações vencidas.
Em tese, o consumidor ficaria com o “nome sujo” e sob o chicote da cobrança
eternamente, sem possibilidade de “cortar” a vínculo contratual mediante o
pagamento das punições contratuais previstas nesta lei. De fato, pelo texto
legal, o fornecedor não é obrigado a promover rapidamente a resolução do
contrato. Não há sequer prazo legal para ele obrigatoriamente promovê-la. Em
outras palavras, se não admitirmos a resilição unilateral, o consumidor estará
exposto a um abuso de direito por parte do fornecedor, que só romperá o contrato
quando quiser, o que configura uma condição puramente potestativa, que é vedada
pelo ordenamento jurídico (arts. 122 e 187 do CC, e art. 51 do CDC).
A vulnerabilidade do consumidor precisa ser observada, pois a
presunção é a de que um consumidor, se não fosse vulnerável, não iria concordar
com essa situação no contrato, de modo que é nula qualquer cláusula obstativa
da resilição unilateral.
Em quarto lugar, há a questão do “direito à saída honrosa do
contrato”. O consumidor que se comprometeu a pagar prestações futuras precisa
ter o direito de poder, honrosamente, sair do contrato. Se ele, por um motivo
qualquer (desemprego, doença etc.), verificar que não terá condições de honrar
as prestações vincendas, ele precisa ter condições de, antes mesmo do vencimento
dessas prestações, poder romper o contrato e pagar os encargos punitivos e
indenizatórios devidos. Não faz sentido afirmar que o consumidor, nesse caso,
teria de necessariamente deixar os boletos bancários vencerem, aguentar os
vexames da inadimplência (negativação do nome etc.) e esperar o dia em que o
alienante – quando quiser – venha a pedir judicialmente a resolução do
contrato. O consumidor, portanto, pode, pela via da resilição unilateral,
romper o contrato antes do vencimento das prestações vincendas, mas terá de
pagar as punições devidas.
Em quinto lugar, o espírito da nova lei é o de presumir a
possibilidade de resilição unilateral, pois, ao prever multas compensatórias
contra o consumidor inadimplente no caso de rompimento do contrato, deixou
clara a sua opção pela admissibilidade de o consumidor desligar-se
unilateralmente do contrato mediante o pagamento dessa punição.
Em sexto lugar, a nova lei, em momento algum, proíbe
expressamente a resilição unilateral por parte do consumidor. De fato, ao
estabelecer que o contrato é irretratável (art. 67-A, § 12, da Lei nº
4.591/64), a nova lei apenas está a estabelecer que o consumidor não tem
direito a, por vontade própria e imotivada, romper o contrato impunemente, ou
seja, sem o pagamento das devidas punições compensatórias e indenizatórias
(multa compensatória etc.). O direito de arrependimento previsto na nova lei
nada tem a ver com a resilição unilateral, pois ele é apenas uma condição
resolutiva expressa que autoriza o consumidor a, sem punição alguma (isto é,
sem ter de pagar qualquer multa), desfazer o contrato dentro do prazo de 7
dias. Como se trata do implemento de uma condição resolutiva expressa
consistente na vontade do consumidor dentro do prazo de 7 dias, a extinção do
contrato por esse motivo não é uma resilição contratual, porque não configura
uma espécie de inadimplemento.
Reitere-se: resilição unilateral é, ao contrário do direito
de arrependimento, uma hipótese de descumprimento total do contrato. Direito de
arrependimento não é descumprimento do contrato, e sim apenas o exercício de um
direito nele estabelecido. Portanto, o § 12 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64, em
momento algum, está a proibir a resilição unilateral, mas apenas a prever a
limitar temporalmente o legítimo direito de arrependimento.
Em sexto lugar, o § 12 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64, ao
tratar da irretratabilidade, apenas faz remissão ao antigo § 2º do art. 32 da
Lei nº 4.591/64, que anuncia a irretratabilidade dos contratos de aquisição de
imóvel. Como se vê, não há nada de novo debaixo do sol. A irretratabilidade
desse contrato continua sendo prevista em um antigo dispositivo legal. Ora,
esse dispositivo legal jamais impediu a resilição unilateral por parte do
adquirente na hipótese de o saldo devedor ainda não ter sido quitado. Aliás,
esse antigo dispositivo se equipara ao também antigo art. 26 da Lei nº
6.766/76, que também anuncia a irretratabilidade do contrato de alienação de
lotes e que também jamais impediu a resilição unilateral por parte do adquirente
que ainda esteja pagando as prestações do preço.
Em sétimo lugar, se o legislador efetivamente quisesse
impedir a resilição unilateral que, desde há muitos anos, é admitida pela
jurisprudência, ele teria explicitamente proibido. Ele não se limitado a fazer
uma remissão ao § 2º do art. 32 da Lei nº 4.591/64 para os casos de
incorporação imobiliária nem teria deixado intacto o art. 26 da Lei nº 6.766/76
para as hipóteses de loteamento.
Em oitavo lugar, não se pode invocar a teoria da imprevisão
(art. 478, CC) para permitir que o consumidor rompa o contrato no caso de
desemprego ou de doença superveniente, pois esses eventos são fatos
absolutamente previsíveis e incapazes de assegurar o rompimento de um contrato
feito pelo consumidor. Entendemos que, mesmo o consumidor sujeitando-se à
teoria do rompimento da base objetiva (art. 6º do CDC) – a qual dispensa a
imprevisibilidade como fato superveniente –, não se poderia admitir a resolução
do contrato com base nesses eventos corriqueiros e previsíveis, pois o rompimento
da base objetiva exige, ao nosso aviso, fato superveniente que não pressuponha
negligência, ainda que indireta, do consumidor. Em tese, um consumidor
diligente poderia fazer poupanças ou seguros prévios para enfrentar transtornos
absolutamente previsíveis, como o desemprego ou a doença. De qualquer forma,
embora o consumidor que vier a sofrer esses problemas pessoais não poderá
valer-se da teoria da imprevisão nem da teoria do rompimento das bases
objetivas, entendemos que ele poderá servir-se do seu direito de resilição
unilateral, mas terá de suportar as punições compensatórias previstas no
contrato e na lei (ex.: multa compensatória que pode chegar a 25 ou 50%
conforme haja ou não patrimônio de afetação). Se, para a superveniência de
eventos absolutamente previsíveis, fosse admitida a teoria da imprevisão ou a
do rompimento das bases objetivas, o consumidor romperia o contrato
impunemente, sem ter de pagar encargos compensatórios, o que não nos parece
correto.’
Em nono lugar, há dois regimes para a inadimplência: o regime
da multa compensatória e o regime do leilão.
De um lado, o regime da multa compensatória é o presente Lei
do Distrato e pressupõe o cabimento da resilição unilateral por parte do
consumidor que ainda não tenha quitado integralmente as prestações. Nesse
regime, não há perda integral dos valores pagos para o adquirente inadimplente
que deu causa à extinção do contrato. A sua perda está limitada aos encargos
compensatórios.
De outro lado, o regime do leilão é aquele que autoriza a
realização de um leilão como forma de obter o pagamento do saldo devedor no
caso de inadimplência do adquirente. Esse regime afasta a possibilidade de
resilição unilateral pelo adquirente por presumir que o pagamento do preço
deverá ser feito a qualquer custo, ainda que às custas do leilão do imóvel
adquirido. Esse regime é previsto no art. 63 da Lei nº 4.591/64 em favor da
Comissão de Representantes e no inciso VII da Lei nº 4.864/1965 para os
incorporadores, os quais preveem um procedimento extrajudicial de leilão do
imóvel do adquirente inadimplente para quitação do saldo devedor. Por esse
regime, o adquirente poderá perder integralmente os valores pagos.
Entendemos que o segundo regime não pode ser aplicado contra
o adquirente que seja consumidor quando o credor for um fornecedor, pois o art.
53 do CDC veda a perda integral das prestações pagas. O CDC prevalece sobre o
inciso VII da Lei nº 4.864/1965.
Desse modo, esse segundo regime só poderia ser aplicado em
dois casos: (1) contratos de aquisição de imóveis feitos por quem não seja
consumidor, a exemplo de fundos de investimento imobiliário que venham a
adquirir imóveis “na planta”; e (2) cobrança feita por uma Comissão de
Representantes contra o condômino. A propósito desse último caso, é de recordar
que essa comissão nada mais é do que a reunião dos próprios adquirentes de
imóveis “na planta” que se reúnem para promover a construção da obra. Portanto,
quando a Comissão de Representantes cobra do condômino o pagamento das
prestações, não há falar em relação de consumo, pois a relação jurídica entre
essas partes se assemelha a de um condomínio.
Em décimo lugar, não prospera o argumento de que haveria
consumidores “espertos” que iriam desfazer o contrato em razão da
desvalorização futura do imóvel. É que que quem tem maior poder de
previsibilidade futura dos preços dos imóveis é o próprio empresário, e não o
consumidor. São os empresários que desempenham papel importante na definição do
preço da mercadoria. O consumidor não possui esse poder de informação. A legislação
tem essa presunção, a exemplo do que sucede nos contratos de empreitada, em que
a oscilação superveniente do preço da mão de obra só credencia o dono da obra,
e não o empreiteiro, a pedir a readequação do preço (arts. 619 e 620 do Código
Civil). O tratamento da matéria deve guardar coerência com essa lógica de
justiça do ordenamento jurídico. Por isso, não há razão de justiça alguma para
impedir o consumidor de desfazer o contrato imotivadamente, especialmente
porque ele já será punido por esse ato, pagando uma multa compensatória e
outros encargos punitivos e indenizatórios pertinentes.
Averbe-se ainda que, no mesmo sentido do ora exposto,
reporta-se ao leitor a artigo de um dos coautores deste artigo intitulado “A
Lei n. 13.786/18 (Lei dos distratos) pode alterar a multa no caso de exercício
de direito de arrependimento?”[6].
Em síntese, a resilição unilateral continua sendo plenamente
admissível de modo imotivado por parte do consumidor mediante mera notificação
extrajudicial na forma do art. 473 do CC, mas terá de suportar os encargos
punitivos e indenizatórios decorrentes desse ato. A resilição unilateral nada
tem a ver com o direito de arrependimento, pois este nada mais é do que uma
condição resolutiva expressa que permite a resolução do contrato pelo
arrependimento do adquirente sem necessidade de suportar qualquer encargo
punitivo. Resilição unilateral é um descumprimento contratual; direito de
arrependimento é o exercício de um direito contratual. Ademais, a
irretratabilidade do contrato de aquisição de imóvel “na planta” nos moldes do
previsto no antigo § 2º do art. 32 da Lei nº 4.591/64 e no art. 26 da Lei nº
6.766/76 foi preservada intacta pela nova lei, mas essa irretratabilidade nunca
impediu (e continua não impedindo) a resilição unilateral. A propósito, o jurista
Rodrigo Toscano, em belo artigo, defendeu que a irretratabilidade do contrato
de aquisição de imóvel “na planta” continua em vigor com a nova lei, conforme
já expusemos[7]. Todavia, como afirmamos, essa
irritabilidade não afasta a resilição unilateral pelo adquirente se ainda
houver prestações vincendas do preço.
DIREITO DE ARREPENDIMENTO: QUESTÕES POLÊMICAS E CASO DO
LOTEAMENTO
No caso de alienação de imóvel “na planta” em regime de incorporação
imobiliária, o adquirente poderá desistir do contrato imotivadamente no prazo
de 7 dias mediante envio de carta registrada com aviso de recebimento, desde
que o contrato tenha sido celebrado em estandes de venda ou fora da sede do
incorporador (arts. 67-A, §§ 10 e 11, Lei nº 4.591/64).
Não há previsão similar para as alienações de lotes, mas
entendemos que, por analogia, esse direito de arrependimento deve ser estendido
para esses casos, pois, à semelhança do que sucede na incorporação imobiliária,
o loteamento envolve o dever do loteador de realizar obras futuras e as
punições jurídicas pelo inadimplemento são bem severas.
Esse prazo de 7 dias é um verdadeiro prazo de reflexão que a
lei garante ao adquirente para livrar-se de eventual precipitação. Trata-se de
uma condição resolutiva explícita, que depende apenas da vontade imotivada do
adquirente.
Se a alienação do imóvel ocorrer dentro da sede do
incorporador, não há o direito de arrependimento, pois a presunção do
legislador foi a de que, na sede, o adquirente não estaria vulnerável a
técnicas de marketing capazes de conduzi-lo a precipitações.
Ao nosso sentir, pecou o legislador aí, pois, diante da grande expressão
econômica do contrato e das pesadas punições a que o adquirente está exposto, o
direito de arrependimento deverá ser exercido ainda que a venda ocorresse
dentro da sede do incorporador. Seja como for, a lei é expressa e deve ser
respeitada. Todavia, se a venda ocorrer na sede do incorporador e o adquirente
for considerado consumidor, entendemos que deverá ser garantido o direito de
arrependimento no prazo de 7 dias, sob pena de estimularmos os incorporadores
a, astutamente, passarem a atrair os consumidores para assinarem o contrato na
sua sede, e não nos estandes de vendas.
Apesar de o § 11 do art. 67-A da Lei nº 4.591/64 estabelecer
a carta registrada com aviso de recebimento como canal de comunicação para o
adquirente expressar o direito de arrependimento, uma interpretação teológica
do dispositivo permite que qualquer outro meio que garanta a ciência do
alienante possa ser admitido, como ligação à central de atendimento ao cliente
ou endereço eletrônico de e-mail disponibilizado pelo incorporador. Entendemos
que sequer há necessidade de pacto expresso no contrato para tanto, pois o que
importa é a ciência, pelo incorporador, da vontade inequívoca do adquirente em
exercer o direito de arrependimento. A propósito, o sempre brilhante Professor
de Direito Civil da UFPB Rodrigo Toscano Brito defendeu que as partes podem
pactuar outro meio, mas, em nenhum momento, esse genial civilista considera,
como indispensável, um pacto expresso para adotar outro meio de comunicação[8].
Por fim, não há previsão do direito de arrependimento para
alienações de lotes. Todavia, como o modus operandi da venda
de lotes é similar ao de venda de imóveis em regime de incorporação, é
imperioso aplicar, por analogia, o direito de arrependimento aos casos de
loteamento.
Portanto, o direito de arrependimento de que trata os §§ 10 e
11 da Lei nº 4.591/64: (1) pode ser aplicado por analogia aos casos de
loteamento, (2) admite manifestação por qualquer meio de comunicação que
garanta ciência do incorporador e que tenha sido disponibilizado por este aos
clientes, independentemente de pacto expresso; (3) é devido mesmo para casos de
alienações feitas dentro da sede do incorporador, desde que o adquirente seja
consumidor.
VALOR DE FRUIÇÃO DO IMÓVEL E DO VALOR PAGO NO CASO DE
INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA
Se o contrato vier a ser desfeito após a entrega das chaves
para o adquirente, este terá pagar ao alienante uma valor referente à fruição
do imóvel correspondente ao percentual de 0,5% do valor atualizado do imóvel
(art. 67-A, § 2º, III, Lei nº 4.591/64). Esse valor aproxima-se à média do valor
do aluguel do imóvel. De fato, sem isso, o adquirente iria se enriquecer sem
justa causa colhendo os frutos do imóvel gratuitamente. O fundamento jurídico
dessa fruição é a vedação do enriquecimento sem causa, e não o inadimplemento,
razão pela qual esse valor é devido independentemente de o desfazimento do
contrato ter ocorrido ou não por culpa do próprio alienante. Ademais, esse
valor de fruição do imóvel nem precisava de previsão legal expressa, pois a
vedação ao enriquecimento sem causa já pertence ao ordenamento jurídico e tem
hospedagem, entre outros, no art. 884 do CC. A própria jurisprudência já
admitia essa cobrança.
Todavia, apesar do silêncio da nova lei, no caso de ruptura
do contrato, a vedação ao enriquecimento sem causa também impede que o alienante
se enriqueça sem justa causa com a fruição do dinheiro até então pago pelo
adquirente. Assim como o adquirente tem de pagar um valor pela fruição da
prestação que recebeu (o imóvel), também o alienante tem de pagar um valor de
fruição da contraprestação recebida (o dinheiro até então pago). Por essa
razão, havendo ruptura do contrato, independentemente de quem tenha sido o
causador dessa extinção, o adquirente tem direito a cobrar do alienante um
valor de fruição sobre o dinheiro pago e, nesse caso, entendemos que deve ser
aplicado também o percentual de 0,5% a.m. do valor pago por analogia ao § 2º do
art. 67-A da Lei nº 4.591/64. Esse percentual recairá sobre cada prestação
financeira paga a partir da data do desembolso.
Podemos exemplificar. Se o consumidor já pagou R$ 900.000,00
até a data da ruptura do contrato e se o valor do imóvel era de 1 milhão de
reais, o consumidor terá de pagar, para o incorporador, em razão da fruição do
imóvel, a quantia de 5.000,00 por mês a partir da data da entrega das chaves.
Todavia, por outro lado, o incorporador, em razão da fruição do dinheiro
desembolsado pelo consumidor, terá de pagar ao consumidor um percentual de 0,5%
a.m. sobre cada prestação paga pelo consumidor a partir da data do respectivo
desembolso. Se, no exemplo, para facilitar o cálculo, supormos que o consumidor
pagou os R$ 900.000,00 em parcela única na data da entrega das chaves do imóvel
e parcelou o restante, temos que a incorporador teria de pagar R$ 4.500,00 por
mês ao consumidor pela fruição do dinheiro pago pelo consumidor. Nesse exemplo,
pode-se dizer que, em nome da compensação – que é o encontro de obrigações
contrapostas entre as mesmas partes (art. 368, CC) –, ao final, caberá ao
consumidor pagar apenas R$ 500,00 por mês para o incorporador, pois a sua
dívida já terá sido parcialmente extinta com a compensação.
Em síntese, não apenas o consumidor tem de pagar um valor de
fruição do imóvel cuja posse já foi recebida, mas também caberá ao alienante
pagar um valor de fruição do dinheiro recebido pelo consumidor.
VALOR DE FRUIÇÃO DO IMÓVEL E DO VALOR PAGO NO CASO DE
LOTEAMENTO
No caso de loteamento, o valor de fruição é de 0,75% sobre o
valor atualizado do contrato, o que é injustificadamente superior ao 0,5% que
vigora para o caso de incorporação (art. 32-A, I, Lei nº 6.766/76).
Para esse caso, aplica-se tudo quanto escrevemos acerca de
fruição no caso de incorporação imobiliária e, portanto, também o loteador terá
de pagar valor de fruição dos valores pagos pelo adquirente, sob pena de
enriquecimento sem causa. Todavia, há uma diferença: em razão da necessária
simetria, o valor de fruição deverá ser de 0,75% por incidência analógica do
inciso I do art. 32-A da Lei nº 6.766/76.
RISCO MÁXIMO DO ADQUIRENTE: PERDA INTEGRAL DO VALOR PAGO E
TAXA DE FRUIÇÃO ADICIONAL
No caso de ruptura do contrato por culpa do consumidor, o incorporador
tem de restituir-lhe o valor pago após a retenção de diversos valores previstos
no art. 67-A da Lei nº 4.591/64, como a multa compensatória, o valor de fruição
do imóvel, as cotas condominiais não pagas etc. Todavia, o § 4º do art. 67-A da
Lei nº 4.591/64 limita a retenção a 100% do valor pago pelo consumidor, mas,
para esse efeito, os valores de fruição do imóvel não serão computados por não
estarem sujeito a esse teto. Daí decorre que os valores de fruição do imóvel
deverão ser integralmente suportados pelo consumidor, ainda que eles excedam o
montante pago pelo consumidor. É que esses valores não entram no limite do teto
do § 4º do art. 67-A da Lei nº 4.591/64.
Isso significa que, ao assinar um contrato de aquisição de
imóvel “na planta”, no pior das hipóteses, o adquirente perderá tudo quanto
pagou e, ainda, ficará devendo os valores relativos à fruição que teve do
imóvel. Desse modo, o adquirente tem a garantia de não ficar com saldo devedor
remanescente após o fim do contrato por culpa sua, salvo em relação aos valores
de fruição.
Enfim, excluindo os valores de fruição do imóvel, inexiste o
risco de o consumidor que, por um motivo qualquer, não tenha conseguido honrar
as prestações ficar endividado além do valor total que desembolsou.
Carlos E. Elias de Oliveira é Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela
Universidade de Brasília, Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de
Registro, Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civi, Processo
Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012), Advogado,
ex-membro da Advocacia-Geral da União (Advogado da União) e ex-assessor de
ministro Superior Tribunal de Justiça.
Bruno Mattos e Silva é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP
e Mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt, Alemanha.
Consultor Legislativo do Senado Federal e advogado em Brasília. Foi advogado de
empresas em São Paulo, Procurador Federal da Comissão de Valores Mobiliários
(CVM), Procurador chefe do INSS nos tribunais superiores e Assessor Especial do
Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Professor de Direito
Comercial. Autor da obra “Compra de Imóveis – Aspectos Jurídicos, Cautelas
Devidas e Análise de Riscos”.
[3] Não se confunde com a
constitucionalização do direito civil, que é a vinculação desse ramo do direito
à Constituição Federal.
> http://genjuridico.com.br/2019/01/10/a-recente-lei-do-distrato-lei-no-13-786-2018-o-novo-cenario-juridico-dos-contratos-de-aquisicao-de-imoveis-em-regime-de-incorporacao-imobiliaria-ou-de-loteamento-parte-1/<. Acesso: 22/01/2019