1. A crise numérica do Judiciário e a tecnologia
A razoável duração do processo, garantia fundamental inserida no texto constitucional, por meio da EC nº45/2004, apesar de se apresentar como uma falsa promessa, porquanto longe de ser concretizada, é um ideal perseguido pela comunidade jurídica a bem de toda sociedade.
A morosidade do Poder Judiciário, em que pese a diversidade de fatores que contribuem para esse quadro, é evidente.
O Brasil reúne mais faculdades de direito que China, Estados Unidos da América –EUA e Europa juntos[1]. Segundo o Conselho Federal da OAB[2], há, atualmente, 1.171.480 advogados em todo país, o que representa uma proporção estimada de 01 advogado para cada 190 habitantes[3]. Evidente, pois, que essa enorme quantidade de profissionais acaba por impactar no aumento do número de demandas ajuizadas, lembrando que a cada semestre são formados novos profissionais pelas universidades.
Ao lado disso, o incremento da tecnologia através da internet e das plataformas jurídicas, além da facilitação nos meios de acesso à informação – e aqui se insere o processo eletrônico e a divulgação de informação pelos próprios sítios on-line dos tribunais brasileiros –, permitiu que os cidadãos procurassem cada vez mais fazer valer os seus direitos, em processo que se vem incrementando desde a Constituição de 1988 e continua em curso nos dias de hoje.
Segundo o relatório Justiça em Números 2019 do CNJ, ao final do exercício de 2018, o judiciário brasileiro contava com 78.691.031 processos pendentes, representando um gasto efetivo, descontadas as despesas com servidores inativos, de R$ 76,8 bilhões, equivalente a 1,1% do PIB nacional.
Diante desse cenário beligerante, ao lado da tendência de desjudicialização, inclusive por meio da utilização dos meios alternativos (adequados) de solução das controvérsias, como, por exemplo, a mediação e a arbitragem, surgem as “lawtechs”, especializadas em engenharia de “softwares” voltadas ao mercado jurídico.
As empresas do setor apresentam a inteligência artificial como uma sedutora alternativa ao descontingenciamento de processos, especialmente relacionados aos litígios de massa, bem como de redução de custos, além de permitir um melhor aproveitamento do tempo pelos humanos.
Ocorre que até o presente momento, muito embora haja um especial incentivo por parte do CNJ na implementação da inteligência artificial pelos tribunais do país, através da plataforma SINAPSES, desenvolvida em conjunto com o Tribunal de Justiça de Rondônia – TJRO, é certo que o tema ainda carece de regulamentação 4. Nessa direção, o uso descomedido da tecnologia pode encontrar barreiras no sistema de garantias constitucionais, notadamente voltadas ao devido processo legal constitucional.
Antes de apresentar as possíveis problemáticas, que poderão exsurgir a partir do uso desenfreado da inteligência artificial, e as respectivas soluções, ainda que tímidas, em termos de futura regulamentação, abordar-se-ão também os seus benefícios.
2. Os benefícios da inteligência artificial aplicada ao Direito
Os avanços da tecnologia da informação e a implementação da inteligência artificial no mercado jurídico são inevitáveis, não havendo como resistir ao fenômeno da virada tecnológica.
Os benefícios decorrentes da inteligência artificial são incontáveis, a começar pela redução de custos operacionais, bem como no melhor aproveitamento do trabalho humano, que passará a dedicar mais tempo a atividades criativas, deixando a cargo das máquinas a realização das tarefas repetitivas, o armazenamento de dados, o gerenciamento de dados, a realização de pesquisas, a classificação de informações, a análise de documentos, o desenvolvimento de jurimetria, a identificação de demandas de massa, a identificação de recursos vinculados a temas de repetitivos ou de repercussão geral, a colaboração para os ideais de uniformização e o respeito à jurisprudência, a elaboração de peças processuais e contratos, entre outros.
Não à toa que já há diversas instituições valendo-se da inteligência artificial para fins incremento da sua produtividade, como, por exemplo, o caso do WATSON5 em alguns escritórios de advocacia, do SAPIENS na Advocacia Geral da União – AGU6, o caso do SINAPSES no CNJ e o caso do VICTOR no Supremo Tribunal Federal – STF7.
Sem dúvida, portanto, que o uso da inteligência artificial contribuirá em muito com o desenvolvimento dos trâmites processuais, mas fica a pergunta: de que adiantaria a aceleração da marcha procedimental se os mecanismos artificiais não pudessem tomar decisões? O procedimento avançaria consideravelmente, mas ficaria represado nos gabinetes dos julgadores para a tomada de decisões.
Por esse motivo pensa-se agora em um novo passo na utilização da inteligência artificial, qual seja, que a ferramenta seja utilizada não apenas para o auxílio dos julgadores na tomada de suas decisões, mas principalmente para apresentar a própria decisão, o que pode se mostrar temerário.
3. A inteligência artificial na tomada de decisões e as três premissas básicas para a sua utilização
Inicialmente, cumpre já afastar a falsa acepção no sentido de que as decisões tomadas por meio de máquinas seriam neutras, isto é, mais do que imparciais, livre de experiências humanas, como forma de legitimar a sua aplicabilidade nos processos judiciais.
Isso porque os dados que alimentam a inteligência artificial são frutos de interpretações humanas e, portanto, a depender dos dados fornecidos, bem como dos anseios dos seus programadores, seria perfeitamente possível obter decisões, por demais subjetivas, eivadas de ilegalidades, levando aos chamados “algoritmos enviesados”.
Apenas a título de exemplo, em estudo publicado na revista Science, cientistas acompanharam a evolução de um software voltado para a área da saúde, que indicava a ordem de prioridade dos pacientes em fila para receber atendimento. O resultado foi que existia um viés racial, que desfavorecia pessoas negras nos algoritmos do sistema8.
A preocupação se agrava, no campo jurídico, quanto ao conteúdo das decisões tomadas por intermédio de “softwares”, tendentes a buscar padrões, em casos específicos, o que poderia, em última análise, levar à “industrialização das decisões judiciais”, afastando-se cada vez mais da riqueza de elementos que cada caso concreto apresenta.
Imagine, ainda, se essa decisão, tomada com base em inteligência artificial, fosse omissa e contra ela aviados Embargos Declaratórios, posteriormente rejeitados, valendo-se da mesma lógica algorítmica, ou seja, novamente por sistemas automatizados e sem respeitar os elementos específicos do caso concreto.
Para piorar o panorama, considere-se ainda que os procuradores das partes não tenham sido informados pelo Poder Judiciário sobre a utilização dos meios artificiais de tomada de decisão – não haveria sério risco ao sistema processual constitucional? Eis o ponto central de nossa reflexão embrionária sobre o assunto.
Em primeiro lugar, considerando que as decisões e os julgamentos proferidos pelos juízes devem ser públicos, salvo exceções legalmente previstas, exsurge nossa premissa inicial: toda decisão judicial tomada com o auxílio de inteligência artificial deve conter essa informação em seu corpo.
Vale lembrar que a publicidade, como regra, das decisões judiciais tem razão de ser. Visa justamente a permitir aos jurisdicionados exercer a fiscalização, o controle, dos atos emanados do Poder Judiciário, como forma de legitimar o exercício da atividade jurisdicional estatal.
Logo, uma vez fornecida a informação de que a decisão foi apoiada por mecanismos artificiais, fica mais fácil compreender eventuais vícios de motivação, dentre eles a obscuridade, a contradição e a omissão, impugnáveis pela via dos Embargos de Declaração (art. 1.022 do CPC/2015). De mais a mais, é direito do jurisdicionado poder fiscalizar se o caso se adequa ao emprego da inteligência artificial, mecanismo esse cuja utilização deve ser, na medida do possível, submetido ao crivo do contraditório.
Passando à segunda premissa de nosso raciocínio, não se pode olvidar que a garantia do acesso à justiça, prevista no inciso XXXV, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988 – CF/1988, em seu aspecto formal, pressupõe o acesso ao Poder Judiciário, cuja organização vem pré-estabelecida no texto constitucional – princípio do juiz natural –, personificado em seus juízes, devidamente aprovados em concurso público de provas e títulos para o ingresso na magistratura.
Portanto, somente a partir dessa breve análise, já se pode estabelecer mais uma premissa: seria inconstitucional a tomada de decisões exclusivamente por robôs, sem que suas decisões sejam de alguma forma submetida à revisão humana, sendo assegurado pela Carta Magna o direito público subjetivo de acesso aos juízes.
Ainda no campo da garantia fundamental do acesso à justiça, agora em seu aspecto material, é certo que tal garantia não se resume apenas a um direito subjetivo de se obter uma decisão judicial em caso de lesão ou ameaça à direito – qualquer que seja seu conteúdo –, mas sim uma ordem jurídica justa, que seja efetivamente capaz de pacificar o conflito estabelecido entre as partes, permitindo que a parte prejudicada não apenas se submeta ao comando judicial, como também que tal tutela se mostre adequada.
Nesse sentido, o art. 93, inciso IX, da CF/1988 e o art. 11 do Código de Processo Civil de 2015 – CPC/2015 são imperativos ao estabelecerem que todos atos decisórios emanados do Poder Judiciário serão públicos e fundamentados, sob pena de nulidade. O §1º, do art. 489, do CPC/2015, inclusive, atribuindo a merecida importância ao princípio da motivação das judiciais, descreve hipóteses concretas em que as decisões judiciais não serão consideradas fundamentadas.
Deste modo, se os sistemas de inteligência artificial, por mais desenvolvido que seja o “machine learning” e suas redes neurais, não lograrem entregar de uma decisão amoldável perfeitamente às peculiaridades do caso ou se não enfrentarem os argumentos deduzidos nos autos pelas partes, capazes de influenciar na convicção do julgador, ainda que seja para rejeitá-los, não será possível adotá-los na tomada de decisões, sob pena de manifesta violação à exigência de motivação das decisões judiciais.
Nessa perspectiva, a utilização das maquinas ficaria reservada, no máximo, para o fim de auxiliar os juízes, por meio de tarefas laterais, na construção de suas decisões, visando a otimizar o tempo de pesquisas e de identificação de julgamentos inseridos no contexto do novel sistema vinculação aos precedentes judiciais, entre outras situações.
Sendo assim, conjugando a necessidade de motivação específica com a publicidade necessária ao controle dos atos judiciais, pode-se alcançar uma terceira premissa: sempre que opostos Embargos de Declaração invocando a ocorrência de obscuridade, contradição, omissão ou erro material contra decisão proferida com o auxílio de inteligência artificial assim atestada, estes deverão ser apreciados pelo juiz da causa, sem a utilização de tal mecanismo, sob pena de nulidade.
A premissa tal como lançada tem por objetivo permitir a reparação de todas as arestas ou lacunas eventualmente deixadas, bem como garantir o efetivo acesso à justiça em observância à segunda premissa colocada e, inclusive, eventualmente, legitimar a aplicação da inteligência artificial no auxílio da tomada de decisões.
Portanto, diante da completa ausência de regulamentação da inteligência artificial aplicada no auxílio ou na tomada direta de decisões, parece importante a observância das três premissas básicas como forma de harmonizar a utilização desses “softwares” no âmbito do Poder Judiciário, sem ferir as garantias fundamentais decorrentes do devido processo constitucional.
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Dessume-se, a partir dessa breve reflexão, que, apesar de a inteligência artificial revelar-se como uma forte aliada na retomada na promoção e eficiência dos atos processuais, o seu avanço tecnológico sem a devida cautela pode-se revelar temerário. Dessa forma, ainda que reconhecendo que a utilização da inteligência artificial pode representar um caminho sem volta do Poder Judiciário, buscou-se estabelecer premissas básicas para que o seu emprego respeite as garantias fundamentais do processo.