Marco Aurélio Bezerra de Melo: Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.
"No dia 23 de janeiro de 2019, a população brasileira e mundial foi impactada com mais um ataque violento à natureza provocado pelo homem.
Referimo-nos ao rompimento da barragem 1 da mina do Córrego do Feijão, de exploração e titularidade exclusiva da Vale S.A, situada na cidade de Brumadinho, no Estado de Minas Gerais, e que causou trágicas repercussões ao homem e ao meio ambiente natural que o cerca, já tendo deixado no momento em que escrevemos 121 pessoas mortas, cujos corpos já foram identificados e 226 que se encontram desaparecidos, além de um rastro de inestimáveis consequências para o ecossistema terrestre e aquático, influindo diretamente na qualidade de vida dos sobreviventes, da flora e da fauna do local diretamente atingido e de outras regiões que sofrem e ainda sofrerão as consequências dessa verdadeira tragédia ecológica.
Ainda que o ordenamento jurídico conte com instrumentos que objetivam a prevenção do dano como medidas inibitórias individuais, coletivas e difusas e, para alguns, a quantificação punitiva do dano moral serviria a tal escopo e, portanto, exerceriam função dissuasiva da conduta potencialmente lesiva, o fato é que ainda estamos longe do paradigma ético propugnado pelo solidarismo social previsto na Constituição da República (art. 3º, I) e, no plano concreto, a responsabilidade civil surge, no presente caso, com a sua conceituação oitocentista de instrumento apto a impor a obrigação de reparar o dano àquele que o causou.
Importa, a título de exemplo, que se traga à memória que no tocante à atividade específica da mineração, a Constituição Federal traz no parágrafo segundo do artigo 225 um importante instrumento preventivo do dano e reparador do meio ambiente quando reza que “aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.”. Tal obrigação impõe ao Poder Executivo por seus órgãos de fiscalização a agirem de ofício no múnus público pertinente, assim como os diversos atores jurídicos legitimados a postularem ao Poder Judiciário, por meio da Ação Civil Pública, medidas preventivas a fim de que sejam cumpridas as leis de proteção ao meio ambiente e, principalmente, a norma acima citada. No caso, lamentavelmente, o fato é que a sociedade organizada não conseguiu evitar a conflagração do dano, o que, à toda evidência, seria o ideal propugnado pela nossa Constituição.
Feitas essas considerações, seguiremos, em breves comentários, na senda das possibilidades de ressarcimento de dano que podem decorrer desse infausto terrível.
A responsabilidade civil aqui é inegavelmente objetiva, isto é, independente de análise do elemento subjetivo da culpa do causador do dano e conta com dois fundamentos claros. O primeiro pelo denominado risco integral e o segundo em razão do risco criado.
O risco integral ancora-se fundamentalmente no Capítulo VI (Meio Ambiente), inserido no Título VIII (Ordem Social) da Constituição Federal, cujo artigo 225, § 3º prevê que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”. De modo ainda mais explícito, o artigo 14, § 1º da lei 6938/81 que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente enuncia que sem obstar a aplicação de multas, sanções de natureza penal, perda de incentivos fiscais, suspensão de atividades, dentre outros, o poluidor fica obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.
Pelo risco integral, as alegações de rompimento do nexo causal como o fato exclusivo ou concorrente da vítima, ou ainda, outras causas ou concausas que possam existir, não afastariam, em tese, o dever de indenizar.
Em caso similar, envolvendo danos materiais e morais causados a pescadores em decorrência do vazamento de nafta pela colisão do navio da Petrobras S/A no Porto de Paranaguá, no Estado do Paraná, os Ministros do Superior Tribunal de Justiça que compõem a Segunda Seção, por unanimidade, em julgamento submetido ao regime de recursos repetitivos fixaram teses no sentido da aplicação das regras acima citadas decorrentes do dano ambiental para a reparação dos danos de modo integral e individual aos lesados (STJ, Segunda Seção, REsp nº 1.114.398/PR, Relator Ministro Sidnei Beneti, julg. em 08/02/2012).
Digno igualmente de referência é o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil que consagrou a cláusula geral da responsabilidade civil objetiva do direito privado, em abono à teoria do risco criado, ao dizer que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”. A atividade da mineração se encaixa, quer por uma linha hermenêutica doutrinária mais restrita ou mais ampla de aplicação dessa norma, como uma luva com relação a esse desastre.
A relação de causalidade, indispensável para qualquer pleito reparatório, exsurge muito claramente pela notoriedade do fato e pela própria assunção de responsabilidade já declarada pela causadora direta e imediata do evento danoso.
Fixada essa base, com relação ao dano-morte, exsurgirá, na forma do artigo 948 do Código Civil, a possibilidade de pleito reparatório a ser deduzido pelos familiares da vítima do homicídio. Esse dano reflexo ou em ricochete, posto que atinge diretamente o falecido e indiretamente a sua família, contemplará verba para o pagamento do tratamento da vítima, se, por exemplo, teve gastos hospitalares antes do falecimento, despesas de funeral e o pagamento de alimentos a quem o morto as devia, levando-se em conta a duração provável de vida da vítima que hoje, segundo dados do IBGE, está em 75,4 anos.
Além desse dano material, pode ser pleiteado dano moral pela perda do ente querido, fato que ofende importante parcela da dignidade daquele que se vê privado ilicitamente do convívio com o filho, o pai, o irmão, cônjuge ou companheiro. Nesses casos, o dano moral decorre do próprio fato (in re ipsa), gerando a presunção relativa do prejuízo de afeição. Em outras situações como, por exemplo, a de um colateral de terceiro ou quarto grau, o ônus da prova do afeto justificador da compensação moral caberá a quem alega, invertendo-se o ônus da prova em desfavor da pretensa vítima reflexa.
Aqueles que sofreram lesão corporal podem pleitear os danos materiais com fulcro nos artigos 949 e 950 do Código Civil que podem incluir desde as despesas médicas, os lucros cessantes pelo período de convalescença em que se viu privado do seu ofício até, em casos mais graves, verba indenizatória pela perda da capacidade laborativa a ser paga de modo vitalício. Essa indenização surge sem prejuízo da devida compensação por dano moral cumulada, conforme o caso, com o dano estético.
É possível que dentre as vítimas, existam pessoas sem dano físico, mas que tenham experimentado prejuízo de ordem patrimonial e que, evidentemente, também poderão pedir indenização por dano material, nesse sentido incluídos os danos emergentes e os lucros cessantes, sem embargo do pleito moral pela privação, por exemplo, da moradia ou do instrumento de trabalho, isto é, pela perda de bens essenciais que integram importante parcela da dignidade humana.
Importa, nesse passo, que se repise a ideia já lançada em recente ensaio feito pelo Dr. Carlos Eduardo Elias de Oliveira pulicado no sítio do CONJUR (https://www.conjur.com.br/2019-jan-31/carlos-oliveira-teto-indenizatorio-clt-nao-aplica-brumadinho) no sentido da inaplicabilidade do teto indenizatório de 50 vezes o salário do funcionário previsto na recente alteração da Consolidação das Leis do Trabalho (art. 223-G, § 1º, IV, CLT) com relação às vítimas que eram funcionárias do lesante. O fato vertente extrapola os limites da relação trabalhista, posto que como dito acima, trata-se de um acidente ambiental de gravíssimas consequências. O lesado direto aqui não é tecnicamente o trabalhador, mas o cidadão. Além do que, hipoteticamente, como se poderá admitir que o cônjuge de uma pessoa que não era funcionária da Vale receba R$ 300.000,00 de dano moral pelo prejuízo de afeição e, nas mesmas circunstâncias, outra que tem vínculos trabalhistas com salário de R$ 2.000,00 receba R$ 100.000,00? Além da quebra de isonomia, a consulta à mens legis da reforma trabalhista há de não permitir esse equívoco.
Enfim, o caso atrai a incidência do caput do artigo 944 do Código Civil que cumprindo comando constitucional (art. 5º, V e X) dispõe de modo claro e preciso que “a indenização mede-se pela extensão do dano”.
Há também a possibilidade de pleito reparatório e indenizatório por meio da Ação Civil Pública, a qual poderá contemplar além das obrigações de fazer e não fazer que a tipicidade do caso requerer, o dano moral coletivo.
Isso porque, como já tivemos oportunidade de defender em livro sobre a Responsabilidade Civil com relação ao Caso Samarco, essa lesão moral e metaindividual atinge a todos os cidadãos indiscriminadamente, sendo ainda mais perversa com relação àqueles que se encontram mais próximos da comunidade ofendida,
O caput do artigo 225 da Constituição Federal já seria o bastante para fundamentar a possibilidade de compensação pelo dano moral coletivo, mas insta que se relembre o contido no artigo 1º, IV, da Lei 7347/85 que expressamente contempla esse tipo de dano difuso sofrido por toda a coletividade. Entender em sentido contrário significaria retroceder para a ideia de que o dano moral é o sofrimento físico ou psíquico a ser demonstrado por quem o experimentou. Na realidade, é na perspectiva da proteção do dever imposto ao Poder Público e à coletividade de defender o meio ambiente para as presentes e futuras gerações que se visualiza com clareza a transindividualidade caracterizadora do dano ambiental e do consequente dever de ressarcimento coletivo (STJ, 1ª Turma, REsp nº 598.281/MG, Rel. Min. Teori Zavascki, julg. em 2/6/2006).
A mediação pode ser um instrumento de grande valia para que as reparações ocorram de modo mais célere. Releve-se a existência de uma relação próxima entre o causador do dano e as vítimas, seja pelo vínculo trabalhista ou pela importância econômica e extrativista perante os munícipes atingidos.
Tomara que a luz emanada do Instituto Inhotim, na cidade de Brumadinho, referência nacional e internacional de respeito à natureza e à arte de viver, nos ilumine a todos e que possamos não cair na mesma desventura de ignorar os anseios por uma sociedade mais fraterna e menos agressiva consigo mesma".
Fonte: http://genjuridico.com.br/2019/02/05/algumas-possibilidades-da-responsabilidade-civil-no-caso-brumadinho/. Acesso: 06/02/2019
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