terça-feira, 7 de maio de 2019

Alterações da MP 881/2019 ao Código Civil.Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

 




O Presidente da República editou, em 30 de abril de 2019, a Medida Provisória nº 881, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.[1] Trata-se, segundo o próprio Governo Federal, de tentativa de superação da estagnação econômica e das altas taxas de desemprego, notadamente por meio da redução da burocracia necessária para pequenos e médios empreendedores desenvolverem suas atividades. Segundo o artigo 1ª da MP, “fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador”.
O §1º do artigo inicial revela a abrangência das modificações pretendidas: “O disposto nesta Medida Provisória será observado na aplicação e na interpretação de direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação, e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente.” A MP promoveu, ainda, diversas alterações no corpo do Código Civil. Analisarei as principais modificações em dois textos, sendo este o primeiro deles. Começarei pela Parte Geral e pela Teoria Geral dos Contratos.
Na Parte Geral do Código Civil, a MP 881/2019 inseriu expressivas modificações no artigo 50, que trata do instituto da desconsideração de personalidade jurídica.[2] O caput do artigo foi alterado, explicitando que a desconsideração deverá atingir os bens apenas dos administradores ou sócios direta ou indiretamente beneficiados pelo abuso da personalidade jurídica. A alteração evita que a desconsideração venha a se dar em prejuízo de sócios ou administradores que não contribuíram para o abuso, como sócios minoritários que não participam da administração da pessoa jurídica – os quais, de fato, não deveriam ser atingidos pela desconsideração. Todavia, a expressão “direta ou indiretamente beneficiados” deve ser interpretada de modo ampliativo: administradores e sócios que participam da administração da pessoa jurídica têm, também eles, o dever de evitar o abuso da personalidade jurídica e, nesse contexto, ainda que não tenham sido diretamente beneficiados pelo abuso, podem ser chamados a responder como beneficiários indiretos, especialmente nos casos em que os sócios e administradores diretamente beneficiados não tenham patrimônio suficiente.
A MP 881/2019 acrescentou, ainda, cinco novos parágrafos ao artigo, buscando estabelecer critérios objetivos para a aplicação do instituto. Nesse particular, a Medida Provisória merece elogios: a desconsideração da personalidade jurídica é instituto cujo impacto sobre sócios e administradores andava a merecer a indicação de parâmetros mais objetivos na codificação civil. Nessa direção, o §1º define o que se deve entender por desvio de finalidade, aludindo à utilização dolosa da pessoa jurídica para (a) lesar credores e (b) praticar atos ilícitos de qualquer natureza. Apesar do conectivo “e”, não se trata de requisitos cumulativos, bastando o uso da pessoa jurídica em um ou outro sentido para a caracterização do desvio de finalidade. A exigência de dolo, no entanto, é criticável: dificulta excessivamente a aplicação da desconsideração e atrela o artigo 50 a uma perspectiva subjetivista, que enxerga a desconsideração como uma sanção a um mal feito, afastando-se da abordagem contemporânea do abuso do direito como exercício de uma situação jurídica subjetiva em dissonância com a sua finalidade normativa – como parecia ter sido a intenção do legislador na versão original do Código Civil, ao optar pelo emprego da expressão desvio de finalidade. Ainda em relação a essa matéria, a MP 881/2019 estabelece que a mera alteração da atividade originariamente desenvolvida pela pessoa jurídica não implica, per se, desvio de finalidade (art. 50, §5º).
A segunda hipótese de abuso da personalidade jurídica, a confusão patrimonial, é detalhada no §2o do artigo 50 – também introduzido pela MP 881/2019 –, que alude à ausência de separação de fato entre os patrimônios dos sócios e da pessoa jurídica. Os dois primeiros incisos deste parágrafo descrevem exemplos corriqueiros de confusão patrimonial, como o cumprimento reiterado de obrigações do sócio ou administrador pela pessoa jurídica, ou vice-versa, e a transferência de ativos sem efetiva contraprestação. O terceiro inciso refere-se genericamente a “outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”, possibilitando ao intérprete identificar, a partir de elementos do caso concreto, outras modalidades de confusão, como, por exemplo, a prestação de garantia pela pessoa jurídica em negócio de interesse exclusivo do sócio.
A MP 881/2019 acrescentou ao artigo 50 também o §3º, que consagra a noção de desconsideração inversa da personalidade jurídica, há muito admitida por nossa doutrina e jurisprudência. Com efeito, não obstante a desconsideração ter sido concebida para permitir que credores da pessoa jurídica alcançassem o patrimônio dos sócios ou administradores, admite-se hoje a invocação da teoria para justificar o movimento inverso: “É cabível a descon­sideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros” (Enunciado n. 283 da IV Jornada de Direito Civil). Por fim, a MP 881/2019 – por meio do novo §4º do artigo em comento – afastou a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica a partir da mera identificação de grupo econômico, exigindo, também nesses casos, a presença dos requisitos do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial. Também aqui a alteração é elogiável: aplicar a desconsideração da personalidade jurídica a partir da mera configuração de grupo econômico significaria apagar as fronteiras entre as diferentes personalidades jurídicas, subvertendo o instituto.
Já no capítulo do Código Civil dedicado aos contratos em geral, foram diversas as modificações realizadas. Primeiramente, a MP 881/2019 inseriu na parte final do caput do artigo 421,[3] que consagra o princípio da função social do contrato, a necessidade de observância ao disposto na chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. O acréscimo parece ter tentado prestigiar os princípios norteadores daquela Medida Provisória, quais sejam, a “proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica” (art. 1º). A função social, contudo, exerce justamente o papel de impor juízo de merecimento de tutela sobre o exercício da liberdade contratual, condicionando-a à promoção dos valores constitucionais. Determinar que a aplicação da noção de função social do contrato se dê com observância da liberdade econômica é uma contradição nos seus próprios termos e parece exprimir uma absoluta falta de conhecimento do próprio conceito de função social. O acréscimo somente não merece crítica mais aguda porque é inócuo: afirma, a rigor, que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observada a própria liberdade de contratar. Embora tautológica, a nova redação do caput do artigo 421 não promete trazer qualquer transformação concreta no modo como nossa doutrina e jurisprudência aplicam a noção de função social do contrato – noção que, de resto, derivaria diretamente da Constituição, independentemente de atuação do legislador ordinário, na medida em que a funcionalização dos institutos jurídicos ao atendimento de valores sociais relevantes resulta da própria primazia que o Constituinte atribui a tais valores, mesmo quando tutela a livre iniciativa, não como liberdade vazia, mas em atenção ao seu “valor social” (CR, art. 1o, IV).
A MP 881/2019 também introduziu no artigo 421 um parágrafo único, que estabelece a prevalência de um assim chamado “princípio da intervenção mínima do Estado” e reserva caráter “excepcional” à revisão contratual “determinada de forma externa às partes”. Mais uma vez, o equívoco salta aos olhos. Não existe um “princípio da intervenção mínima do Estado”; a intervenção do Estado nas relações contratuais de natureza privada é imprescindível, quer para assegurar a força vinculante dos contratos, quer para garantir a incidência das normas jurídicas, inclusive das normas constitucionais, de hierarquia superior à referida Medida Provisória. A MP 881/2019 parece ter se deixado levar aqui por uma certa ideologia que enxerga o Estado como inimigo da liberdade de contratar, quando, na verdade, a presença do Estado – e, por conseguinte, o próprio Direito – afigura-se necessária para assegurar o exercício da referida liberdade.
No que tange à revisão contratual, também parece ter incorrido a Medida Provisória nessa falsa dicotomia entre atuação do Estado-juiz e liberdade de contratar, quando, ao contrário, a revisão contratual privilegia o exercício dessa liberdade ao preservar a relação contratual estabelecida livremente entre as partes, ao contrário do que ocorre com a resolução contratual, remédio a que já tem direito todo contratante nas mesmas situações em que a revisão é cabível, em conformidade com o art. 478. Se a intenção da MP foi evitar que revisões judiciais de contratos resultem em alterações excessivas do pacto estabelecido entre as partes, empregou meio inadequado: afirmar que a revisão contratual deve ser excepcional nada diz, porque não altera as hipóteses em que a revisão se aplica, hipóteses que são expressamente delimitadas no próprio Código Civil. O novo parágrafo único acrescentado pela MP tampouco indica parâmetros, critérios ou limites à revisão contratual, o que leva a crer, mais uma vez, que a alteração não produzirá qualquer efeito relevante no modo como a revisão contratual é aplicada na prática jurisprudencial brasileira – aplicação que, de resto, já se dá com bastante cautela e parcimônia, sem interferências inusitadas no conteúdo contratual.
A referida MP modificou, ainda, o caput do artigo 423,[4] que trata da intepretação pró-aderente, substituindo a referência a cláusulas “ambíguas ou contraditórias” que constava de sua redação original pela alusão a cláusulas “que gerem dúvida quanto à sua interpretação”. A modificação é compreensível: não existem, tecnicamente, cláusulas ambíguas ou contraditórias, pois ambiguidade e contradição são constatações a que chega o intérprete após a interpretação das cláusulas, constituindo não um prius, mas um posterius em relação à compreensão do sentido e alcance das disposições contratuais.
A MP 881/2019 acrescentou, ainda, um parágrafo único ao artigo 423, repleto de equívocos redacionais. Alude, em primeiro lugar, a “contratos não atingidos pelo disposto no caput”, quando normas jurídicas evidentemente não atingem contratos, mas os abrangem ou contemplam. Afirma, ainda, que, em tais casos, “a dúvida na interpretação beneficia” a parte que não redigiu a cláusula controvertida, quando dúvidas não beneficiam ninguém: é a interpretação da cláusula que deve ser benéfica a uma ou outra parte. Abstraindo-se as questões linguísticas, o novo dispositivo parece ter pretendido ampliar a incidência da chamada interpretatio contra proferentem ou contra stipulatorem: quem redige a cláusula não pode se beneficiar da sua falta de clareza, devendo tal cláusula ser interpretada em favor da contraparte. Não se pode, contudo, generalizar demasiadamente a referida orientação hermenêutica. Em relações paritárias, nem sempre é fácil identificar quem redigiu a cláusula: um contratante pode não ter elaborado a redação de uma certa cláusula, mas pode ter tido a oportunidade de modificá-la, optando por não fazê-lo. Em tais hipóteses, lançar sobre o redator todo o ônus interpretativo pode se revelar desproporcional. Daí ter o Código Civil, em sua redação original, limitado a regra às relações contratuais de adesão. A extensão promovida pela MP 881/2019 deve ser, portanto, aplicada com cautela.
Além das modificações implementadas em dispositivos já existentes, a MP 881/2019 acrescentou dois artigos ao Código Civil, aplicáveis às chamadas relações interempresariais. Dispõe o novo art. 480-A: “Nas relações interempresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual.” A norma, como alguns outros acréscimos promovidos pela MP, representa inovação de pouca ou nenhuma utilidade prática: os contratantes sempre puderam, no exercício de sua autonomia privada, estabelecer parâmetros objetivos (ou subjetivos) para a interpretação dos requisitos de revisão ou resolução do contrato, nas relações interempresariais ou de qualquer outra natureza. Tal faculdade, já há muito reconhecida pela doutrina, não exclui a necessidade de um juízo concreto de merecimento de tutela para determinar, em cada caso, a compatibilidade dos parâmetros contratualmente estabelecidos com a ordem jurídica brasileira, atentando especialmente para a impossibilidade de afastamento do princípio do equilíbrio contratual. A fixação convencional de parâmetros para a interpretação dos requisitos instituídos em lei não pode, a toda evidência, conduzir à supressão dos referidos requisitos.
Já o art. 480-B prevê que “nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida.” A norma é insólita. A simetria entre os contratantes é presumida em qualquer relação contratual, e não apenas em relações interempresariais. A caracterização da vulnerabilidade de um dos contratantes é que afasta tal presunção, sempre relativa. Também a parte final do dispositivo que determina seja observada a alocação de risco estabelecida pelos contratantes parece fora de lugar: tal alocação deve ser observada em qualquer espécie de relação contratual, e não apenas nas relações interempresariais. O novo artigo 480-B é ruim, pois, se interpretado a contrario sensu, poderia levar à conclusão de que, fora das relações interempresariais, a simetria não se presume e a alocação convencional de riscos deve ser ignorada, bem ao contrário do que deveria pretender uma assim chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Merece crítica, ademais, a tentativa de estabelecer, pela introdução de normas não constantes da redação original da codificação civil, uma espécie de microssistema das relações interempresariais, incompatível com um código que, ao revés, unificou as relações civis e empresariais, contemplando expressamente o direito de empresa.

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