quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Contrato de garagem e estacionamento. Professor Silvio Venosa.

O automóvel e os veículos em geral incorporaram-se definitivamente à vida do homem durante o século XX. As economias desenvolvem-se fundamentalmente sobre quatro rodas. Ademais, o automóvel converteu-se universalmente em símbolo de status social, segundo sua marca, modelo e preço. Entre os vários problemas trazidos pelos automotores, nas zonas urbanas, acentua-se a questão da guarda dos veículos por períodos mais ou menos longos. O termo automotor serve para designar toda classe de veículos que se deslocam sem intervenção de força exterior, com energia própria. Embora não se amoldem exatamente a essa categoria, também as embarcações e as aeronaves se incluem na problemática do contrato de garagem: portos, marinas e embarcadouros para as primeiras e hangares, pátios de manobras ou equivalentes para os últimos. O contrato de garagem ou estacionamento destina-se, pois, a essa categoria de bens, precipuamente aos veículos terrestres, em particular aos automóveis, sem excluir, no entanto, caminhões, ônibus e outros veículos de carga. Pela natureza do direito obrigacional envolvido na avença, não há necessidade nem que o garagista seja proprietário do imóvel, basta que tenha validamente sua posse, nem que o usuário seja dono do veículo, bastando-lhe a simples detenção.
A obrigação do usuário de pagar o preço tem em vista o tempo em que o espaço de custódia permanece à disposição do usuário, ainda que por ele não seja utilizado. Nessa hipótese, distingue-se o contrato que estabelece pagamento por longos períodos, por semanas, meses, anos, daqueles de curto lapso, cujo pagamento é estabelecido pelo número de horas de utilização. Na essência, não existe distinção entre ambas as modalidades, embora possa denominar-se de estacionamento o contrato por curto período, e de garagem propriamente dito aquele de longo prazo. Distinguem-se ambos os contratos pela modalidade de oferta: quando esta informa preços por hora ou fração e quando estabelece por semana, mês ou ano. Nada obsta que no mesmo local convivam as duas modalidades, cujo regime jurídico e as decorrentes responsabilidades do garagista são basicamente idênticas. Se o local destinado ao veículo é aberto, sem proteção, e disso tem conhecimento o usuário, o garagista não responderá por danos decorrentes de intempéries. Desnatura-se o contrato como garagem se o agente limita-se a oferecer serviços de manobrista e estacionamento em via pública, ainda que ofereça serviços de vigilância (valet parking), responsabilizando-se pelo bem. Nessa hipótese, sobreleva-se a prestação de serviços. Não há garagem, porque não existe local colocado à disposição do veículo. Entretanto, o contrato de garagem pode ter em seu bojo o serviço de manobrista, inserindo-se aí a prestação de serviço, quando o garagista recebe o veículo e encarrega-se de estacioná-lo em local próprio.
Quanto ao usuário, sua principal obrigação é pagar o preço, geralmente estabelecido por período de hora, dia ou mês. O garagista terá direito de retenção para receber o preço. É direito do usuário utilizar o local determinado ou indeterminado para posicionamento do veículo. Por seu lado, o garagista deve proporcionar ao usuário a possibilidade de estacionamento do automotor, seja determinado ou não. Terá as obrigações de locador, bem como as de depositário em face da guarda e custódia a que se compromete, embora não subordinado às penas específicas do ordenamento quanto ao depósito, salvo se assim foi expressamente acordado. Quando a garagem é estabelecida por período longo, deve facultar a entrada e saída do veículo a qualquer tempo, segundo as necessidades do usuário. O garagista deve, portanto, restituir o bem sempre que solicitado. Responsabiliza-se pelos danos e perda do automotor, salvo se provar caso fortuito ou força maior (art. 642). Como sucede no depósito, é vedado ao garagista utilizar-se do veículo, sem licença expressa do usuário, sob pena de responder por perdas e danos (art. 640). Se ao contrato de ga­ragem agregarem-se outras obrigações como lavagem, abastecimento ou reparos, devem ser objeto de exame em separado. A obrigação assumida pelo garagista é, portanto, de resultado, pois deve manter a coisa consigo durante certo tempo e restituí-la íntegra. O garagista responde tanto por fato próprio como por fato de terceiro. Para eximir-se da indenização com fundamento em caso fortuito ou força maior, o garagista tem o ônus de prová-los, quando não houver culpa exclusiva do usuário.
Dentre as várias questões que se agregam ao contrato de garagem, talvez a mais saliente diga respeito às “cláusulas limitativas de responsabilidade. A problemática reside em saber do alcance e da validade das declarações apostas unilateralmente pelo garagista, a fim de não se responsabilizar por furtos de objetos no interior dos veículos ou mesmo por danos e furtos dos veículos cometidos sob sua guarda. Essas disposições manifestam-se materialmente de várias formas: impressos nos tíquetes, cartazes nos locais, avisos televisivos e sonoros etc. Sob o aspecto dos contratos de adesão e segundo os princípios de defesa do consumidor (art. 51, incisos I e II do Código de Defesa do Consumidor), essas cláusulas são nulas, absolutamente abusivas, írritas e, portanto, de nenhuma eficácia. Em tese, e sob regra de princípio geral, somente poder-se-ia admitir validade à cláusula de não indenizar, ou de indenizar mitigadamente, se se tratasse de contrato paritário, livremente discutido e negociado pelas partes, fora do âmbito consumerista. Não é, como sabemos, o que ocorre na prática. Somente por absoluta exceção é possível imaginar contrato de garagem com essas características.  O mesmo se aplica a garagens e estacionamentos oferecidos por estabelecimentos comerciais, pois essa facilidade integra o negócio das relações de consumo.
Quanto ao prazo, vige, em princípio, a autonomia da vontade. Há contratos de garagem medidos por hora, com ou sem utilização do período noturno, outros que levam em conta a possibilidade de estadia mensal do veículo. Geralmente, o estacionamento por hora é pago na retirada do veículo. Já vimos cobrança de estacionamento por minuto nas grandes cidades. Se o período é mensal, costumam as partes fixar o pagamento antecipado. Se estabelecido o prazo determinado, não é dado às partes romper o pacto antes de escoado o prazo, submetendo-se nesse caso a perdas e danos. Se vigente por prazo indeterminado, como em qualquer outra avença, impõe-se aviso prévio para a denúncia imotivada. Se o período de pagamento é mensal, assume-se que o prazo de 30 dias de pré-aviso seja razoável, como costumeiro. Nos estacionamentos com preço por hora ou fração, a extinção ocorre no ato da retirada do veículo, com o pagamento, ainda que o usuário retorne ao local para recolocar seu veículo no mesmo dia, quando então outro contrato será concluído.
O contrato de garagem não é relacionado em nossa legislação, tratando-se de contrato atípico, portanto, sendo muito pouco estudado pelos nossos juristas.

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