sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Quando se deve considerar que um precedente já é um precedente? Teresa Arruda Alvim


Jovem mulher sentado livros pensando sobre o futuro, sonhando — Stock Photo  © denisismagilov #92154142

Decisões judiciais geram efeitos que dizem respeito às partes, efeitos indiretos, que atingem terceiros, e efeitos que dizem respeito à toda sociedade. Os efeitos que atingem a sociedade decorrem de certas decisões judiciais enquanto precedentes.
Parece intuitivo que o momento em que estes efeitos acontecem, para as partes e para a sociedade, não pode ser o mesmo.
Quanto às partes, deve-se fazer uma diferença entre a circunstância de se tratar de decisão prolatada por juiz de 1º grau (decisão interlocutória e sentença) ou de acórdão.
É necessário comparar e distinguir muito claramente o modo de formação da sentença (primeiro grau de jurisdição) e sua documentação, com o da decisão do Tribunal e sua documentação.
A eficácia da decisão nasce, em princípio, quando de sentença se tratar, na data em que foi publicada a decisão, seja em audiência na presença das partes e/ou de seus advogados, seja em cartório, nas mãos do escrivão, seja quando juntada aos autos físicos ou digitais.
Isto porque o conteúdo e efeitos de uma sentença somente podem ser conhecidos quando a “sentença é publicada, seja pela publicação propriamente dita através de jornal ou pela imprensa, seja pela publicidade que a ela se dá em cartório, quando o juiz devolve o processo com a sentença, antes mesmo da publicidade pela imprensa, ou pela intimação às partes. A partir da lavratura e da assinatura da sentença, e desde a sua entrega em cartório, o seu conteúdo e efeitos são conhecidos e é ela inalterável em sua substância, salvo erros materiais ou por embargos de declaração, em estreito âmbito. Há, portanto, identidade cronológica, entre o conhecimento do ato decisório e sua publicidade; é a publicidade que revela o conteúdo do ato sentencial, que é escrito”.1
Jovem mulher sentado livros pensando sobre o futuro, sonhando — Stock Photo  © denisismagilov #92154142Quando se tratar de acórdão, tem-se como publicada a decisão no momento em que o presidente do órgão julgador anuncia publicamente o resultado do julgamento. A proclamação do resultado encerra o julgamento,2 estejam ou não as partes presentes. A lavratura do acórdão é mera documentação do que foi decidido.
Diferentemente, se passa com a decisão de Tribunal. “A decisão, propriamente dita, não nasce do acórdão, senão que ela emerge inteira e exaurientemente do ato coletivo de julgamento. O resultado do julgamento passa a ser conhecido na sessão de julgamento, em que o recurso tenha sido julgado, onde o relator e revisor3 lêem os seus votos e o terceiro juiz, igualmente, vota. O que se lhe segue diz respeito, única e exclusivamente, à publicidade ulterior à sessão (porque ao julgamento se haverá de ter dado prévia publicidade); o que se segue à sessão de julgamento diz respeito, apenas e tão-somente, à documentação do que foi decidido. Por isto, parece ressaltar evidente que os efeitos do julgamento nascem e se exaurem no momento em que se realiza e termina o julgamento. O que se segue, como se disse, é mera e estrita documentação”.4
Entretanto, os parâmetros para fixar o termo inicial da eficácia da decisão jurisdicional, enquanto precedente, i.e., no que diz respeito à sua carga normativa, não podem ser os mesmos. Afinal, os atingidos são os integrantes da sociedade.
A expectativa de que o caso entre A e B será julgado pelo Tribunal no dia X, gera uma espécie de “dever” de informação para as próprias partes, que faz presumir a ciência. Depende delas saber, ou não saber, o resultado do julgamento que as afeta.
Jovem mulher sentado livros pensando sobre o futuro, sonhando — Stock Photo  © denisismagilov #92154142Entretanto, os atingidos pela decisão, enquanto precedente (membros da sociedade, na mesma situação), não sabem ou podem não saber que será proferida decisão com carga normativa que lhes deverá afetar. Se há esta ciência, para este efeito, deve esta ser, sem dúvida alguma, considerada um acaso.
No que tange às partes, a ciência de que seu caso será julgado pelo Tribunal X, no dia X1, gera uma espécie de “dever” de informação, por parte delas, já que lhes cabe tomar ou não ciência do resultado. De todo modo, a decisão desde logo as atinge.
É diferente a situação no que diz respeito à eficácia da decisão enquanto norma. Já que a carga normativa da decisão judicial que é precedente, com elevado grau de vinculatividade, atinge todos, os critérios devem ligar-se à ciência (ou à possibilidade de) que todos tenham conhecimento do teor da decisão.
Este tema é delicado e tem especial relevância quando se trata de decisão que altera entendimento firme que havia anteriormente.
Todos estão sujeitos à eficácia da lei, a que se dá publicidade no diário oficial; logo, publicidade com o mesmo alcance tem de ser dada a uma decisão (=precedente vinculante) para que se produzam os efeitos de norma jurídica.
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A eficácia de um precedente obrigatório depende, inexoravelmente, da publicação da íntegra do acórdão que conferiu solução à questão jurídica5, pois, somente assim, será possível aferir os exatos contornos daquilo que foi deliberado e do caminho que deverá ser seguido pelo particular, que deve respeito à carga normativa da decisão.
A necessidade da publicação do acórdão vai ao encontro da posição, que muitos sustentam, no sentido de que, em geral, o que vincula nos precedentes é a ratio6 e não a tese.
As teses vêm sendo formuladas como verdadeiros enunciados normativos, de que, muitas vezes, não consta a ratio. De fato, não há como se extrair a ratio de uma decisão, sem que esta seja lida e realmente compreendida, em sua essência, já que a ratio, no fundo, nada mais é que a essência da decisão, que, por isto, tem que ser interpretada.
Ademais, como se sabe, não cabe ao órgão decisor identificar a ratio de sua decisão. Esta delicada e difícil tarefa de identificar a ratio da decisão anterior para verificar ser esta, ou não, precedente aplicável ao caso que está por decidir. Portanto, para os que sustentam que o que vincula nos precedentes é sempre a ratio (não é o nosso caso), tem-se mais uma razão para se considerar a publicação do acórdão in totum como requisito para a eficácia do precedente.
Se, de um lado, existe o dever de se agir conforme as pautas de conduta estabelecidas em leis e em precedentes judiciais, de outro há o direito de se saber, com precisão, o que se decidiu.
No entanto, a posição que vem prevalecendo no STF, é no sentido de que a mera publicação da Ata de julgamento pode ser considerado ato equivalente à publicidade do próprio acórdão, quando se trata de tribunal.
De duas uma, o que marca o início da eficácia do acórdão enquanto precedente: ou é a publicação do acórdão (esta nos parece a solução mais correta); ou a da ata. Mas, certamente, não o encerramento da sessão de julgamento!
O que se disse tem o condão de alterar o conceito de processo pendente, quando se trata de decisões que modulam efeitos de precedente, que altera orientação anterior, e usam esta noção como parâmetro.
Imagine-se a situação de um Tribunal alterar posição, que vinha sendo reiteradamente adotada ou que tinha sido acolhida em recurso repetitivo, e modular o alcance do “novo” precedente, dizendo que a antiga posição deve atingir situações do passado e de processos pendentes. Os processos novos, então seriam, julgados de acordo com a nova orientação.
Jovem mulher sentado livros pensando sobre o futuro, sonhando — Stock Photo  © denisismagilov #92154142Se se estiver diante de um caso em que a ação foi movida depois do julgamento, mas ANTES da publicação do acórdão, ou, pelo menos, da ata, considera-se como processo pendente ANTES da eficácia da decisão enquanto precedente.
Assim, para efeito de resguardo de situação de terceiros que não seriam atingidos pela nova posição, (porque havia processo pendente), considera-se pendente o processo de cujo julgamento ainda não tinha sido publicada a respectiva Ata.
Embora, para as partes, o processo tenha “terminado” antes, para aqueles que serão atingidos pela carga normativa da decisão, antes do acórdão, ou, pelo menos, antes da ata não há precedente.
É o que se pode observar dos julgados a seguir referidos.
Nestes julgados, se percebe, com nitidez, que decisões que produzem efeitos erga omnes, devem ser objeto de publicidade, para que sejam conhecidas, e, portanto, sejam obedecidas. O raciocínio é exatamente o mesmo a que se deve proceder no que diz respeito à carga normativa de uma decisão enquanto precedente.
ARE 1.031.810 – DF: “A eficácia das decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade ocorre a partir da publicação da ata de seu julgamento.7
Rcl 3.632 – AM: “A decisão de inconstitucionalidade produz efeito vinculante e eficácia erga omnes desde a publicação da ata de julgamento e não da publicação do acórdão. 3. A ata de julgamento publicada impõe autoridade aos pronunciamentos oriundos desta Corte.8
Rcl 872 – SP: “A obrigatoriedade de observância da decisão de liminar, em controle abstrato realizado pelo Supremo Tribunal Federal, impõe-se com a publicação da ata da sessão de julgamento no Diário da Justiça.9
Rcl 3.473 – DF“...o efeito da decisão proferida pela Corte, que proclama a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, inicia-se com a publicação da ata da sessão de julgamento.10
Rcl 2.576 – SC: “...a decisão, em julgamento de liminar, é válida a partir da data da publicação no Diário da Justiça da ata da sessão de julgamento. O mesmo critério, penso, deve ser aplicado à hipótese de julgamento de mérito, mesmo que impugnado o correspondente acórdão pela via de embargos de declaração”.11
ADI 711 – AM“...a eficácia da medida cautelar tem seu início marcado pela publicação da ata da sessão de julgamento no Diário da Justiça da União...”.12
Ainda no âmbito do STF, merece registro, bem como elogios, o RE 1.235.961/RS (julgado em maio/2020), que trata do mesmo tema 201 da repercussão geral e envolve o mesmo Estado do Rio Grande do Sul. Neste caso, a Min. Cármen Lúcia reconheceu que, no rol de ações pendentes, para fins de aplicação da tese de que “É devida a restituição da diferença do ... ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”, estão as demandas propostas antes da publicação do acórdão proferido no RE 593.849/MG – reforçando, assim, a importância da publicação na imprensa oficial para que um precedente tenha eficácia em relação a toda a sociedade.13
Também a Vice-Presidência do TJRS vem, reiteradamente – e acertadamente, a nosso ver –, admitindo o processamento de recursos extraordinários interpostos contra acórdãos que não consideraram como pendentes as demandas anteriores à publicação da ata de julgamento do tema 201 da repercussão geral. Confira-se:
RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA FRENTE. ART. 166 DO CTN. RESTITUIÇÃO, CREDITAMENTO OU COMPENSAÇÃO. REPASSE DO ENCARGO FINANCEIRO. SÚMULA 83 DO STJ. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. LEI LOCAL. SÚMULA 280 DO STF. RECURSO NÃO ADMITIDO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TEMA 201 DO STF. MODULAÇÃO DE EFEITOS. REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO ADMITIDO.
“Registre-se que a presente ação fora ajuizada em 19 de outubro de 2016. Assim, dado que a data referida no julgamento da apelação e dos embargos de declaração - 19/10/16 - se refere à data de divulgação do resultado do julgamento do acórdão paradigma nas movimentações processuais no site do Supremo Tribunal Federal e não da publicação da ata do acórdão no Diário de Justiça, é de ser admitido o recurso extraordinário”.14 15
Essa posição do STF, embora mais restritiva que a nossa, confirma que a publicação, em MEIO OFICIAL é indispensável para que uma decisão tenha o condão de gerar efeitos normativos perante toda a sociedade – no caso, efeitos enquanto precedente.
Mas o problema não se esgota com a análise sob esta ótica.
Há, ainda, que se levar em conta a estrutura do Poder Judiciário, que possibilita a revisão das decisões dos Tribunais inferiores pelos Tribunais que estão no topo da pirâmide.
A possibilidade de revisão, por meio de recurso para um Tribunal Superior, do precedente, formado no segundo grau, legitima-o perante a sociedade e perante o direito.
Jovem mulher sentado livros pensando sobre o futuro, sonhando — Stock Photo  © denisismagilov #92154142Por isso é que não se podem instaurar procedimentos que levam à formação de precedentes vinculantes no segundo grau de jurisdição (art. 976, § 4º, que trata do IRDR), quando já houver recurso e afetado, nos Tribunais Superiores, para ser julgado no regime dos repetitivos. O mesmo ocorre com o IAC.
O mesmo ocorre com relação aos precedentes vinculantes formados no âmbito do STJ: são passíveis de serem revistos – e eventualmente alterados – pelo STF.
Assim, e por isso, se firmado um precedente no STJ, este não deve produzir efeitos imediatos, a não ser que não tenha sido interposto recurso extraordinário, ou se este, interposto, não tiver sido admitido.16 Tendo sido interposto e admitido, só gera efeitos o precedente produzido no âmbito do STJ após o julgamento do recurso extraordinário, se for confirmado, e, a nosso ver, após a publicação do acórdão, ou, pelo menos, da ata de julgamento, deste último recurso.
Esta interpretação é a única possível, apesar da literalidade do art. 1.040, caput, do CPC, que trata da mesma forma a eficácia de um precedente proferido no âmbito do STJ (recorrível e, portanto, alterável) e no STF. Fala-se em “publicado o acórdão paradigma”.
Como dissemos, se se tratar de STJ, deve-se aguardar o prazo da interposição do recurso extraordinário. Se este for interposto e admitido, a solução deve ser a que aqui propomos.
Felizmente, este fenômeno já foi detectado em algumas decisões do STJ, gerando a determinação de que não se aplique o precedente até que seja julgado o recurso extraordinário.17
Do acórdão que julgou o REsp 1.596.203/PR consta o seguinte trecho que merece ser transcrito:
“Outrossim, cumpre registrar a existência de recurso extraordinário submetido ao rito da repercussão geral, cujo julgamento pode influenciar o entendimento a ser adotado na hipótese objeto deste apelo, qual seja, o RE 639.856 - tema 616 - incidência do fator previdenciário (lei 9.876/99) ou das regras de transição trazidas pela EC 20/98 nos benefícios previdenciários concedidos a segurados filiados ao Regime Geral da Previdência Social até 16/12/98.
Nesse contexto, tendo em vista a relevância da matéria e considerando que o presente Recurso Extraordinário foi interposto em face de precedente qualificado desta Corte Superior de Justiça, proferido no julgamento de recurso especial representativo de controvérsia, entendo ser o caso de remessa do apelo extremo ao Supremo Tribunal Federal, também na qualidade de representativo de controvérsia.
Presentes os pressupostos de admissibilidade, nos termos do artigo 1.036, § 1º, do Código de Processo Civil, admito o recurso extraordinário como representativo de controvérsia, determinando a suspensão de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a mesma controvérsia em trâmite em todo o território nacional.
Encaminhe-se o feito ao Supremo Tribunal Federal”.
Digna de nota também a decisão dos embargos de declaração interpostos na apelação cível 0006194-75.2006.4.03.6114/SP (2006.61.14.006194-3/SP), cuja relatora foi a Desa. Daldice Santana, de cuja decisão consta:
“Não desconheço entendimento majoritário tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátria acerca da desnecessidade do trânsito em julgado para aplicação do entendimento de acórdão paradigma. Vários precedentes existem nesse sentido. Todavia, no caso em apreciação, ponderando as alegações trazidas pelo INSS nos presentes embargos de declaração às quais tenho como relevantes sobretudo em homenagem ao princípio da segurança jurídica, reconsidero a decisão ora embargada, de forma a manter o sobrestamento do recurso extraordinário interposto pelo INSS nos presentes autos até o julgamento definitivo do RE 579.431/RS”.18
Aos poucos, felizmente, vão-se superando os limites criados pela literalidade dos dispositivos do CPC de 2015, para que prevaleça interpretação sistemática, que dá mais racionalidade ao funcionamento do sistema.

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