“O ritual do artigo 1.071
do CPC (apreensão e depósito) e sua inviabilidade em face do artigo 526 do
Código Civil
Elaborado
em 06/2012.
É possível operar, na prática, o direito do credor expresso
em lei de retomar imediatamente a posse da coisa vendida, sem necessidade das
emaranhadas etapas ditadas pelo CPC, artigo 1.071, não mais harmônicas com o
artigo 526, do CCB.
SUMÁRIO: Introdução. 1 – O instituto
da reserva de domínio. 2 – O instituto da reserva de domínio no CPC. 3 – O
instituto da reserva de domínio no CCB. 4 – Do procedimento de retomada do bem,
gravado com cláusula de reserva de domínio (artigo 1.071, do CPC). 5 – A
inadequação do procedimento de apreensão e depósito, no atual cenário normativo
(cotejo dos artigos 1.071, do CPC e 521 a 528, do CCB). 6 – Conclusão.
Referências bibliográficas.
RESUMO: O presente estudo tem por
desígnio o cotejo analítico do artigo 1.071, do CPC, que trata da busca e
apreensão de bem objeto de contrato de venda a crédito com cláusula de reserva
de domínio, com o tratamento dado ao tema pelo Código Civil de 2002,
notadamente pelos contornos estabelecidos na redação do seu artigo 526. A
partir das comparações, são identificados choques procedimentais do instituto
da reserva de domínio e seus desdobramentos, com as etapas do artigo 1.071 e os
parágrafos que o integram. Interessa observar que o estudo é também voltado à
perquirição da heterogeneidade do enfrentamento jurisprudencial sobre a
matéria.
PALAVRAS-CHAVE: Venda a
crédito. Reserva de domínio. Procedimento. Artigo 1.071 do CPC. Inviabilidade.
Artigo 526 do CCB. Alternativa processual.
INTRODUÇÃO
O instituto da reserva de domínio se popularizou no mercado
como espécie de garantia celebrada nos contratos de compra e venda a prestações.
Entretanto, referido instituto nunca chegou a ser devidamente esclarecido
normativamente, recebendo, todavia, do Código de Processo Civil, acolhida no
artigo 1.070 e 1.071.
Porém, a inserção de uma regra de natureza afeta ao direito
material, em um código processual, aliada ao tratamento normativo adequado
ocorrido com o advento do Código Civil de 2002, terminou por gerar conflitos
entre o direito disciplinado pelo artigo 526, do CCB e os dispositivos do CPC,
aqui citados no parágrafo anterior.
Assim, o presente trabalho visa cotejar todas as nuances
afetas à reserva de domínio e aos procedimentos do CPC, buscando identificar as
incongruências e propondo, ao final, uma solução processual adequada à
instrumentalização do direito de ação dos credores/vendedores.
1 – O INSTITUTO DA RESERVA
DE DOMÍNIO
A reserva de domínio é modalidade de garantia obrigacional
(contratual), onde o credor reserva para si a propriedade da res objeto do
pacto, que deve ser bem móvel, possível de caracterização, até que o preço
esteja integralmente pago.
No direito positivo brasileiro esta modalidade de garantia
nunca chegou a ser tratada com o devido destaque que lhe era devido, embora já
gozasse de difusão nos meios comerciais como mecanismo de salvaguarda dos
créditos do comércio, principalmente.
O Código Civil de 1.916 sequer chegou a tratar do tema, não o
fazendo prever no tópico que cuidava das garantias reais, muito menos nas
obrigações e contratos. É o que constata Silvio Rodrigues (2003. v.3, p.185),
ao discorrer sobre o contrato preliminar e a venda a crédito com reserva de
domínio, afirmando que o Código de 1916 omitiu estes dois temas. Em outra
passagem, sobre a venda com reserva de domínio (p.176) pontua com bastante foco
que “Esse negócio, que talvez tenha vetusta origem, só recentemente alcançou
maior difusão neste País, sendo mesmo certo que o Código Civil de 1916 não lhe
fazia a menor referência.”
Em verdade, o instituto sempre esteve presente na vida civil,
mas nunca recebeu normatização legal expressa e específica. Em alguns momentos,
a lei, de forma reflexa, admitiu o instituto, sem, no entanto, dar-lhe
tratamento normativo, como é o caso do Decreto-Lei nº 1.027, de 2 de Janeiro de
1939[1], ao dispor sobre o registro de contratos de compra e venda
com reserva de domínio.
Nesse contexto histórico de lacuna legislativa a solução
brasileira não foi das mais técnicas, porquanto legou ao Código de Processo
Civil, no início de 1973, a tarefa de disciplinar um instituto de Direito
Material e ao mesmo tempo ditar seu curso procedimental para efeito de
judicialização dos contratos lastreados na garantia do pacto reservati dominii.
Ad argumentandum, malgrado a inexistência de tratamento legal
específico do tema, o mesmo foi objeto também de menção pela Lei de Registros
Públicos (6.015/73), senão vejamos:
Art. 129. Estão sujeitos a registro, no Registro de Títulos e
Documentos, para surtir efeitos em relação a terceiros: (Renumerado do art. 130
pela Lei nº 6.216, de 1975).
[...]
5º) os contratos de compra e venda em prestações, com reserva
de domínio ou não, qualquer que seja a forma de que se revistam, os de
alienação ou de promessas de venda referentes a bens móveis e os de alienação
fiduciária;
Mais uma vez, o instituto da reserva de domínio aparece
citado sem escora legislativa própria, embora indubitavelmente viu-se
reconhecida a sua existência jurídica.
2 – O INSTITUTO DA RESERVA
DE DOMÍNIO NO CPC
Pois bem, no CPC, a disciplina da matéria foi alocada no
CAPÍTULO XIII, com o título DAS VENDAS A CRÉDITO COM RESERVA DE DOMÍNIO, tendo
a dicção dos artigos seguintes:
Art. 1.070. Nas vendas a crédito com reserva de domínio,
quando as prestações estiverem representadas por título executivo, o credor
poderá cobrá-las, observando-se o disposto no Livro II, Título II, Capítulo IV.
§ 1º Efetuada a penhora da coisa vendida, é licito a qualquer
das partes, no curso do processo, requerer-lhe a alienação judicial em leilão.
§ 2º O produto do leilão será depositado, sub-rogando-se nele
a penhora.
Art. 1.071. Ocorrendo mora do comprador, provada com o
protesto do título, o vendedor poderá requerer, liminarmente e sem audiência do
comprador, a apreensão e depósito da coisa vendida.
§ 1º Ao deferir o pedido, nomeará o juiz perito, que
procederá à vistoria da coisa e arbitramento do seu valor, descrevendo-lhe o
estado e individuando-a com todos os característicos.
§ 2º Feito o depósito, será citado o comprador para, dentro
em 5 (cinco) dias, contestar a ação. Neste prazo poderá o comprador, que houver
pago mais de 40% (quarenta por cento) do preço, requerer ao juiz que Ihe
conceda 30 (trinta) dias para reaver a coisa, liquidando as prestações
vencidas, juros, honorários e custas.
§ 3º Se o réu não contestar, deixar de pedir a concessão do
prazo ou não efetuar o pagamento referido no parágrafo anterior, poderá o
autor, mediante a apresentação dos títulos vencidos e vincendos, requerer a
reintegração imediata na posse da coisa depositada; caso em que, descontada do
valor arbitrado a importância da dívida acrescida das despesas judiciais e
extrajudiciais, o autor restituirá ao réu o saldo, depositando-o em pagamento.
§ 4º Se a ação for contestada, observar-se-á o procedimento
ordinário, sem prejuízo da reintegração liminar.
Embora o instituto tivesse, desta vez, recebido capítulo
próprio, com nomenclatura sugestiva de especialidade, não logrou, entretanto,
aquilo que seria necessário para sua afirmação jurídica, ou seja, os contornos
normativos certos e definidos à luz do direito material.
Não se poderia esperar realmente que uma lei de trato processual
(CPC), pudesse disciplinar matéria afeta ao direito substantivo. O quadro,
portanto, era de um procedimento afeto a um negócio jurídico sem previsão legal
expressa em norma civilista, embora claro, seqüencial e bem definido no âmbito
processual.
3 – O INSTITUTO DA RESERVA
DE DOMÍNIO NO CCB
Foi, contudo, somente com o Código Civil de 2002 que veio à
lume o instituto da reserva de domínio que ocupou seu lugar devido na Subseção
IV, da Seção II, como sendo uma cláusula especial da compra e venda.
Eis o texto legal:
Art. 521. Na venda de coisa móvel, pode o vendedor reservar
para si a propriedade, até que o preço esteja integralmente pago.
Art. 522. A cláusula de reserva de domínio será estipulada
por escrito e depende de registro no domicílio do comprador para valer contra
terceiros.
Art. 523. Não pode ser objeto de venda com reserva de domínio
a coisa insuscetível de caracterização perfeita, para estremá-la de outras
congêneres. Na dúvida, decide-se a favor do terceiro adquirente de boa-fé.
Art. 524. A transferência de propriedade ao comprador dá-se
no momento em que o preço esteja integralmente pago. Todavia, pelos riscos da
coisa responde o comprador, a partir de quando lhe foi entregue.
Art. 525. O vendedor somente poderá executar a cláusula de
reserva de domínio após constituir o comprador em mora, mediante protesto do
título ou interpelação judicial.
Art. 526. Verificada a mora do comprador, poderá o vendedor
mover contra ele a competente ação de cobrança das prestações vencidas e
vincendas e o mais que lhe for devido; ou poderá recuperar a posse da coisa
vendida.
Art. 527. Na segunda hipótese do artigo antecedente, é
facultado ao vendedor reter as prestações pagas até o necessário para cobrir a
depreciação da coisa, as despesas feitas e o mais que de direito lhe for
devido. O excedente será devolvido ao comprador; e o que faltar lhe será
cobrado, tudo na forma da lei processual.
Art. 528. Se o vendedor receber o pagamento à vista, ou,
posteriormente, mediante financiamento de instituição do mercado de capitais, a
esta caberá exercer os direitos e ações decorrentes do contrato, a benefício de
qualquer outro. A operação financeira e a respectiva ciência do comprador
constarão do registro do contrato.
Pela redação do CCB de 2002, passou a reserva de domínio à
condição normativa de cláusula especial da compra e venda com caráter
nitidamente garantista em que o vendedor de coisa móvel, possível de
caracterização e individualização, reserva para si a propriedade até que o
preço esteja integralmente pago. Ao comprador é transmitida apenas a posse
direta que conserva a sua legalidade (posse justa)[2] enquanto o
contrato estiver sendo honrado pelo comprador.
Para J. M. Othon Sidou (2004, p.291) pela cláusula de reserva
de domínio “o comprador entra de imediato na posse da coisa, mas o vendedor
continua com o domínio sobre ela até a integralização do pagamento.”.
Sílvio de Salvo Venosa (2005, p.99), por seu turno, conceitua
o atual formato da venda com reserva de domínio como sendo “pacto adjeto muito
empregado em passado recente, para as vendas a prazo, com a difusão das vendas
a prestação [...]”.
Para Jones Figueiredo Alves, em utilíssima obra organizada
por Ricardo Fiuza e Regina Beatriz Tavares da Silva (2008, p.477) “ A cláusula
de reserva de domínio é cláusula especial de reforço de garantia ao vendedor,
instituída agora no novo Código Civil [...]”.
Em outra excelente obra, desta vez organizada pelo Ministro
Cezar Peluso, Hamid Charaf Bdine Jr. (2012, p. 576), na mesmíssima linha do que
aqui já citado, a reserva de domínio nas vendas a crédito é tratada como sendo
“ pacto adjeto a compra e venda, em que o vendedor mantém consigo a propriedade
da coisa móvel sob a condição suspensiva do pagamento integral das prestações
pelo comprador”.
Fiel à doutrina civilista, o magistério de Misael
Montenegro Filho (2008, p.941) aponta que:
A venda a crédito com reserva de domínio se qualifica como
cláusula especial do contrato de comprova e venda de bem móvel, através da qual
o vendedor permanece como proprietário do bem até que o comprador efetue o
pagamento de todas as prestações ajustadas, sendo-lhe conferida apenas a posse,
com a obrigação de conservar a coisa.
Jurisprudencialmente o modelo conceitual do instituto da
reserva de domínio é bem delineado, conforme nos demonstra o seguinte aresto:
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS À PENHORA.
CONSTRIÇÃO SOBRE BEM OBJETO DE COMPRA E VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO. NULIDADE.
Dá-se a reserva de domínio quando o vendedor reserva para si a propriedade da
coisa alienada até que se realize o pagamento integral do preço (C. Civil-
artigo 521). Portanto, não tem o comprador mais do que a posse da res vendita;
a aquisição do domínio subordina-se à solução da última prestação. Esta Corte já
firmou o entendimento de que os bens objeto de alienação fiduciária em posse do
devedor fiduciante não podem ser penhorados, pois não integram seu patrimônio.
[...]. Apelo provido. Unânime. (Apelação Cível Nº 70018212670, Vigésima
Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genaro José Baroni
Borges, Julgado em 21/03/2007)
Portanto, a razão de ser do instituto da reserva de domínio,
nas vendas a crédito, é o de resguardar a propriedade como garantia, de fato
real, do contrato de venda da coisa móvel passível de individualização.
É oportuno destacar que a reserva de domínio não guarda
identidade com outro instituto bastante difundido, qual seja, o da alienação
fiduciária, porquanto, no primeiro, há posse resolúvel, que se transmite ao
comprador, enquanto que, no segundo, há propriedade resolúvel, também
transmitida ao comprador com a possiblidade de sua retomada (resolução) em caso
de mora, segundo o que dispõe o artigo 1.361, do Código Civil. Adverte Hugo
Nigro Mazzilli (2005, p.160) “não confundir, naturalmente, com a alienação
fiduciária em garantia, conhecida no atual CC, como propriedade fiduciária:
art. 1.361.”.
A partir da conceituação da reserva de domínio e de suas
possibilidades materiais, é possível, pois, perquirir acerca do conflito
existente entre os mecanismos previstos no CPC, em seu artigo 1.071 e no CCB,
segundo dicção do artigo 526.
4 – DO PROCEDIMENTO DE
RETOMADA DO BEM, GRAVADO COM CLÁUSULA DE RESERVA DE DOMÍNIO (ARTIGO 1.071, DO
CPC)
Em primeiro lugar é necessário sempre ter em mente que a
cláusula da reserva de domínio, que institui o pacto reservati dominii, deve
obedecer à forma escrita, vez que, sem o instrumento formal que ateste a
instituição da reserva de propriedade, não há como instruir o pedido de
retomada do bem.
Assim, “a forma escrita é necessária” (VENOSA, 2008, p.101),
não como condição de validade do negócio, mas sim como condição prática para o
processo judicial, no que tange ao disposto no artigo 333, inciso I, do CPC[3],
bem como do que onera o autor, segundo norma do artigo 284, do mesmo diploma[4].
Outro elemento de importância vital para a procedibilidade da
retomada do bem é o registro do pacto para que possa operar efeitos contra
terceiros sem a necessidade de instituição de um litisconsórcio necessário[5],
até mesmo em obediência ao disposto no artigo 472, do CPC[6], o que
seria tarefa onerosa para o credor e determinante da lentidão do processo, onde
a celeridade é essencial para o sucesso e efetividade do instituto da reserva
de domínio, mormente em vista da facilidade de perecimento dos bens móveis em
questão.
A jurisprudência é pacífica havendo antigos precedentes,
inclusive no Superior Tribunal de Justiça, tal como o aresto assim ementado:
COMPRA E VENDA EM PRESTAÇÕES, COM RESERVA DE DOMINIO.
REGISTRO DO CONTRATO. NECESSIDADE. EFEITOS EM RELAÇÃO A TERCEIRO. 1. Para
surtir efeitos em relação a terceiros, os contratos de compra e venda em
prestações, com reserva de domínio, estão sujeitos a registro no registro de
títulos e documentos (Lei n. 6.015/73, art. 129, item 5.). 2. Entre dois
contratos, prevalece o registrado em primeiro lugar, embora diga respeito ao
segundo negocio. 3. Não é licito que o terceiro de boa-fé seja molestado pelo
vencedor, porquanto, ao receber em garantia fiduciária a coisa, de seu
certificado não constava a reserva de domínio, até porque não registrado em
tempo o respectivo contrato. 4. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 17.546/SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, TERCEIRA TURMA,
julgado em 08/06/1992, DJ 03/08/1992, p. 11310)
Por fim, há outra condição formal para retomada do bem, qual
seja a mora do comprador, que deve estar sobejamente comprovada.
Exigia-se que a mora fosse instrumentalizada nos autos
através da prova do protesto, judicial ou extrajudicial, de acordo com a parte
inicial do próprio artigo 1.071, do CPC.[7] O próprio STJ era firme
nesse sentido até o ano de 2002, conforme se observa no seguinte julgado:
CONTRATO DE COMPRA E VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO. MORA.
ARTIGO 1.071 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. NOTA PROMISSÓRIA. PRECEDENTE DA
TERCEIRA TURMA.
1. Na compra e venda com reserva de domínio a prova da mora
se faz com o protesto do título.
2. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 418727/MG, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES
DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/08/2002, DJ 09/12/2002, p. 341)
Entretanto, o CCB de 2002 passou a trazer em seu bojo a
exigência de prova da mora, fazendo menção expressa à existência de protesto,
mas também de interpelação extrajudicial[8]. Daí porque se entendeu
que a prova da mora poderia ser alcançada por outros meios que não somente o
protesto, dando-se nítido caráter instrumental à tarefa de constituição em mora
do devedor.
Nesse sentido, o STJ refez seu entendimento na lição do acórdão
de relatoria do Ministro Aldir Passarinho Junior:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE
REINTEGRAÇÃO DE POSSE. RESERVA DE DOMÍNIO. APARELHOS HOSPITALARES. AÇÃO DE
BUSCA E APREENSÃO. CITAÇÃO. VÁLIDA. [...]. MORA DO DEVEDOR.NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL.
POSSIBILIDADE. PREQUESTIONAMENTO.AUSÊNCIA. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
I. [...]
II. [...]
III. A mora do devedor ocorre pelo protesto do título ou pela
notificação extrajudicial expedida por Cartório de Títulos e Documentos,
entregue no endereço do devedor.
IV. Recurso especial improvido.
(REsp 897.593/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR,
QUARTA TURMA, julgado em 17/03/2011, DJe 24/03/2011)
Pois bem, atendidas as condições formais aqui elencadas o
credor/vendedor pode optar, lembramos sempre, com olhos postos apenas no CPC,
artigo 1.071, pela a apreensão e depósito da coisa vendida.
Ultimada essa etapa, o bem será avaliado por perito, que pode
ser o próprio oficial de justiça se não houver demanda de conhecimentos
extraordinários para a avaliação. Ato seguinte é lavrado o depósito da coisa
apreendida, não sendo demais concluir que o bem pode ficar depositado com o
próprio devedor, embora obviamente se prefira que o mesmo fique aos auspícios
do vendedor. Feito o depósito o devedor é citado para oferta de contestação no
prazo de cinco dias.
A peculiar previsão normativa vem do parágrafo segundo do
artigo 1.071, onde se abre a chance de purgação da mora, com nítida inspiração
no famigerado Decreto-Lei 911/69[9].
Se a mora for purgada o feito vai à extinção com liberação do
bem constrito. Mas se a mora não for purgada e, além disso, o devedor não
oferecer defesa, a posse poderá ser consolidada para o credor/vendedor se este
apresentar os títulos vencidos e vincendos, caso em que, do valor do bem, serão
descontadas as despesas processuais e extraprocessuais. Eventual saldo deverá
ser restituído ao devedor.
Finalmente, contestada a ação, segue-se o procedimento
ordinário até sentença final, deixando-se para traz o procedimento especial
inicialmente instalado.
Aqui se observa que a intrincada malha procedimental criada
pelo Código de Buzaid[10] já não fazia muito sentido operacional
considerando a natureza jurídica do instituto da reserva de domínio, sendo, em
muitos casos, incompatível como direito material em questão, fato que se tornou
insuperável pela normatização expressa da modalidade no Código Civil de 2002, o
que será objeto de abordagem no tópico específico.
5 – A INADEQUAÇÃO DO PROCEDIMENTO DE APREENSÃO E
DEPÓSITO, NO ATUAL CENÁRIO NORMATIVO (COTEJO DOS ARTIGOS 1.071, DO CPC E 521 A
528, DO CCB)
Pelo
pacto de reserva de domínio o vendedor é mantido como proprietário do bem até
que o preço esteja integralmente pago. Por tal razão, não há sequer a tradição,
porque esta é meio de transferência da propriedade móvel[11], o que,
no caso da reserva de domínio, não ocorre, senão após o pagamento do preço em
sua integralidade, ou, pelo menos, de forma quase completa, como têm decidido
os tribunais em acolhimento à teoria do adimplemento substancial[12].
Portanto,
o que é passado ao comprador é tão somente a posse direta do bem móvel
alienado, ficando o vendedor com a posse indireta e a propriedade do bem. Maria
Helena Diniz (2005, p.474), bem pontua que “[...] o comprador tem posse direta,
porém precária, enquanto não quitar, integralmente as prestações”.
Ora,
ocorrendo a quebra do pacto por parte do comprador (mora debitoris), o Código Civil,
artigo 526, faculta ao vendedor solução imediata e incondicional para a
retomada do bem, vale dizer, da posse! Enquanto isso, o CPC, artigo 1.071,
faculta apenas a apreensão e depósito da coisa vendida.
Aqui está
o primeiro ponto conflituoso, porquanto a apreensão e o depósito não se
harmonizam com a condição de proprietário da coisa que ostenta o vendedor. Quem
é proprietário não precisa e nem pode ser depositário de seu próprio bem, sob
pena de exsurgir disso nítida confusão[13], passando o comprador a ser o
vigilante e guardador de seu próprio bem, como se terceiro fosse. Certamente,
uma incongruência fatal para o direito das obrigações.
A única oponibilidade em relação à coisa de que pode se valer
o comprador adimplente, contra o vendedor é a da posse, exercício fático sobre
a coisa. Salvo essa possibilidade, estando em mora o comprador, já sendo ele o
proprietário por obra da reserva de domínio, só lhe resta a busca da posse, que
a esta altura se tornou injusta, pela mora, em prejuízo do comprador. Carlos
Alberto Bittar (2006, p.35), sem ressalvas, pontua que, nesses casos, “poderá
recuperar a posse da coisa vendida”.
De outro lado a purgação da mora, que é possível pelo CPC,
não mais encontra sentido, talvez nunca tenha encontrado, porque a mora faz
operar, de plano, a retomada da posse pelo comprador, sem nenhum tipo de
ressalva, já que a lei não a fez prever. Destarte, onde o legislador não fez
distinções, ao intérprete não é dado fazê-las, razão porque, considerando o
texto do artigo 526, não há que se falar em purgação da mora.
Deve ser observado que, ocorrendo a mora, nos contratos com
cláusula de reserva de domínio, a resolução da posse é imediata e a
consequência desse fato é a resolução do próprio contrato. É o que ressoa claro
do artigo 527, do CCB.
Além disso, segundo artigo 1.071, §3º, do CPC, a retomada da
posse somente será possível se o réu não contestar, deixar de pedir a concessão
do prazo para purgar a mora ou não efetuar o pagamento dentro do prazo
concedido para purgação.
Já advertia Vicente Greco Filho (2009, p.272) que a
reintegração de posse é etapa que “[...] vem depois, com a sentença que julga
procedente a ação [...]"
Claramente é possível perceber que esse ritual não encontra
harmonia com o direito material do vendedor em reaver a posse diretamente, sem
etapas ou condições outras. A propósito, considerado o conflito aparente de
normas aqui presente, a questão resolve-se em prol do direito material, ou
seja, do Código Civil, até porque é lei de mesmo calibre que o Código de
Processo Civil, porém mais nova e tecnicamente apropriada para tratar do tema.
Sobre isso, Cassio Scarpinella Bueno (2011, p. 169), discorre
com bastante acuidade:
“Os arts. 1.070 e 1.071, que integram o Capítulo XIII do
Título I do Livro IV do Código de Processo Civil, ocupam-se “das vendas a
crédito com reserva de domínio”. Seu sabor de direito material é, a exemplo de
tantos outros procedimentos especiais e de diversos dos procedimentos
cautelares específicos, irrecusável. Por isso, o exame do instituto não pode
deixar de levar em conta o que, a seu respeito, disciplinam os arts. 521 a 528
do Código Civil.”
Conclui acertadamente afirmando que:
“Ademais, tratando-se de normas jurídicas mais recentes, elas
têm o aptidão de revogar ou derrogar, no que incompatível, as normas
processuais civis mais antigas ( art. 2º, §1º, da Lei de Introdução ao Código
Civil).”
O CPC, enquanto norma instrumental (artigo 154) deve ser
aplicado para operacionalizar o direito substantivo presente no artigo 526, do
CCB, situação impossível de se realizar a partir do uso das ferramentas do
artigo 1.071, do CPC.
Mesmo assim, insiste a doutrina: Marcus Vinícius Rios
Gonçalves (2012, p.386) afirmando que “A segunda opção é a reintegração na
posse da coisa, tratada no art. 1.071 do CPC.”, Jones Figueirêdo Alves (2008,
p.526), como via do credor, manifesta-se por “recuperar a posse da coisa
vendida, mediante apreensão liminar (art. 1.071 do CPC), Maria Helena Diniz
(2005, p.475), que todo o desenrolar processual dar-se-á “[...] de conformidade
com a lei processual (CPC, arts. 1.070 e 1.071).”.
A clara dissonância entre as normas e, principalmente, o não
despertar da doutrina e da própria jurisprudência sobre o tema, é motivo de
insegurança jurídica e de prejuízo para a atividade jurisdicional, no que se
incluem as partes.
6 - CONCLUSÃO
A saída processual para a retomada da posse, tendo em vista o
novo regramento do tema ditado pelo CCB, está na utilização do processo de
conhecimento tendo como pedido imediato (liminar) a retomada da posse e como
pedido final a rescisão do contrato de compra e venda em ação de rescisão
contratual com pedido de reintegração de posse.
A retomada imediata da posse está lastreada no artigo 273, do
CPC, na medida em que trouxer aos autos a prova escrita do contrato e do pacto
da reserva de domínio, além, é claro, da prova da mora (protesto, interpelação
judicial ou extrajudicial).
Com isso, seguindo diretriz material do artigo 527, do Código
Civil, o credor poderá reter as prestações até então pagas pelo devedor no
intuito de fazer face ao valor das despesas processuais e extraprocessuais, aí
incluídos os juros, correção e demais acréscimos. Se houver saldo, considerando
o cotejo do valor da avaliação e das despesas, este será restituído ao devedor.
Alguns recentes lampejos jurisprudenciais indicam este
caminho, o que se traduz em alento aos que cultuam a boa técnica jurídica na
solução dos conflitos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO. COMPRA E
VENDA DE EMBARCAÇÃO COM RESERVA DE DOMÍNIO. INADIMPLEMENTO. CONTRATANTE. TUTELA
ANTECIPADA. BUSCA E APREENSÃO DO BEM. PEDIDO DE REVOGAÇÃO. OBSERVÂNCIA.
PRINCÍPIO DA UNICIDADE RECURSAL. NÃO-CONHECIMENTO DO RECURSO NO ASPECTO.
ABSTENÇÃO. UTILIZAÇÃO DO BARCO. LEGÍTIMO DIREITO. NÃO-CABIMENTO.
-[...]
- Há óbice instransponível ao conhecimento do agravo de
instrumento, relativamente ao pleito de revogação da tutela antecipada
concedida à autora, visto que já foi objeto de outro recurso, cujo seguimento
foi negado em face de sua manifesta extemporaneidade.
[...].
- Não procede o pedido do recorrente de determinar à agravada
que se abstenha de utilizar a embarcação reavida, na medida em que, ao deixar
de adimplir o contrato de compra e venda com reserva de domínio, permitiu que a
vendedora reavesse a coisa vendida, à luz do que preconiza o art. 526 do CC/02.
- A partir do momento em que houve o deferimento da tutela
antecipada, com a consequente busca e apreensão da embarcação, a posse do bem
litigioso retornou à vendedora, daí advindo o seu legítimo direito de usar e
gozar da coisa conforme bem lhe aprouver.
- Agravo de instrumento conhecido parcialmente e, no aspecto,
improvido. Unânime.(TJDFT. Acórdão n. 347153, 20080020164945AGI, Relator OTÁVIO
AUGUSTO, 6ª Turma Cível, julgado em 02/03/2009, DJ 18/03/2009 p. 113)
No mesmo trilho:
RESCISÃO DE CONTRATO POR INADIMPLEMENTO DO PROMITENTE
COMPRADOR. CONTRATO DE VENDA A CRÉDITO COM RESERVA DE DOMÍNIO. ALEGAÇÃO PELO
COMPRADOR DE PAGAMENTO DA DÍVIDA. NÃO COMPROVAÇÃO. É lícito ao comprador a
rescisão do contrato de venda a crédito com reserva de domínio, ensejando a
possibilidade de reintegração do credor na posse do bem em litígio. Os cálculos
apresentados na inicial visam, tão-somente, ao resgate do pagamento pelo
devedor, evitando-se desta maneira a rescisão e os danos advindos da sentença a
ser proferida. Verificando-se não se tratar de feito executivo, mas sim
rescisório, inexiste a possibilidade de se discutir os valores apresentados na
exordial. (TJMG. Apelação 2.0000.00.367293-7/000(1), Relator: Domingos Coelho,
12ª CÂMARA CÍVEL, julgado em 14/09/2002)
Assim, é possível operar na prática o direito do credor
expresso em lei de retomar imediatamente a posse da coisa vendida, sem
necessidade das emaranhadas etapas ditadas pelo CPC, artigo 1.071, não mais
harmônicas com o artigo 526, do CCB.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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(coord). Código Civil Comentado. 6.
ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
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FILHO, Misael Montenegro. Código de Processo Civil Comentado
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20. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. V.3.
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V.3
SIDOU, J.M. Sobre o Novo Código Civil. 2.ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. 2004.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 5. ed. Atlas. São
Paulo: 2005. V.3.
Notas
[1] Art. 1º O contrato de
compra e venda de bens, de natureza civil ou comercial, com a cláusula de
reserva do domínio, para valer contra terceiros, deverá ser transcrito no todo
ou em parte, no registro público de títulos e documentos do domicílio do
comprador.
[2]CCB, Art. 1.200. É
justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.
[3] Art. 333. O ônus da prova
incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;[...]
[4] Art. 283. A petição
inicial será instruída com os documentos indispensáveis à propositura da ação.
[5] Art. 47. Há litisconsórcio
necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica,
o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em
que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no
processo.
[6] Art. 472. A sentença faz
coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem
prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem
sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados,
a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.
[7] Art. 1.071. Ocorrendo mora
do comprador, provada com o protesto do título[...]
[8] Art. 525. O vendedor
somente poderá executar a cláusula de reserva de domínio após constituir o
comprador em mora, mediante protesto do título ou interpelação judicial.
[9] Altera a redação do art.
66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, estabelece normas de processo
sôbre alienação fiduciária e dá outras providências.
[10] Alfredo Buzaid, Em 30 de
outubro de 1969, foi nomeado Ministro da Justiça, tendo exercido as suas
funções até 14 de março de 1974. Foi autor do Projeto de Código de Processo
Civil que, discutido e votado no Congresso Nacional, converteu-se em Lei nº
5.869, de 11 de janeiro de 1973. BRASIL, Supremo Tribunal de Federal. Disponível
em: <
http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=18>
Acesso em: 15/05/2012.
[11] Art. 1.226. Os direitos
reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre
vivos, só se adquirem com a tradição.
[12] [...]Assim, considerado o
adimplemento substancial da obrigação (94% do valor do bem), dando-se o
pagamento, ao que tudo indica, de 169 prestações do total de 180, como admite a
autora, ora apela da, não é hipótese de resolução do contrato” (TJ/SP; Apelação
4018634600; Rel: Des. Jesus Lofrano; 3ª Câmara de Direito Privado; Julgamento:
06/10/2009).
[13] CCB, Art. 381. Extingue-se
a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e
devedor.
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