“Responsabilidade
objetiva: o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor
JORGE A.
Q. DE CARVALHO SILVA – Juiz de Direito
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Nos primeiros tempos do direito
romano, a responsabilidade era objetiva, dissociada da noção de culpa e baseada
na idéia de vingança privada, embora não tivesse nenhuma relação com o risco
profissional, tal como hoje é concebido (1).
Com o tempo, abandonou-se a idéia
de represália e, a partir da Lex Aquilia, desenvolveu-se a moderna noção
de culpa do autor do dano (2), que progrediu com o direito de Justiniano até
ser consagrada no Código Civil francês de 1804 (3).
Invertida a regra, a
responsabilidade sem culpa tornou-se exceção à responsabilidade subjetiva e
passou a ser tida como um sistema mais rigoroso, que poderia acarretar na
prática conseqüências injustas.
O Código Civil brasileiro de
1916, inspirado no modelar e referencial Código Napoleão, representava a
preponderância da responsabilidade subjetiva, calcada na culpa, pois seu art.
159 dispunha, de modo genérico, que aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência, ou imprudência, violasse direito, ou causasse prejuízo a outrem,
ficava obrigado a reparar o dano.
Silvio Rodrigues, durante a
vigência desse Código Civil, dizia que, dentro da concepção tradicional, a
responsabilidade do agente causador do dano só se configurava se ele agisse
culposa ou dolosamente, haja vista a prevalência da teoria da culpa em relação
à do risco (4).
Contudo, havia no próprio Código
Civil de 1916 artigos estabelecendo a responsabilidade independentemente de
culpa, como os arts. 15 (responsabilidade das pessoas jurídicas de direito
público pelos atos de seus agentes que nessa qualidade causassem danos a
terceiros), 1.101 a 1.106 (responsabilidade por vícios redibitórios) e 1.107 a
1.117 (responsabilidade por evicção), os dois últimos relativos à responsabilidade
contratual (5).
O Código Civil de 1916
representava um modelo liberal-burguês, baseado numa sociedade agrária voltada
para a exportação, em descompasso com a industrialização que ia tomando conta
das economias européia e norte-americana no final do século XIX.
Nesses países, o advento da
sociedade industrial — consistente na adoção de novas tecnologias, no
desenvolvimento do maquinismo e no crescimento e concentração da população nas
cidades —, multiplicara consideravelmente o número de acidentes envolvendo
máquinas e vítimas, tornando a perquirição da culpa uma atividade complexa e,
ao mesmo tempo, insuficiente para a responsabilização civil.
Pois ficara praticamente
impossível à vítima provar a negligência, imprudência, ou imperícia, por
exemplo, do maquinista, ou do dono da máquina industrial causadora do acidente,
sobretudo porque ela não tinha conhecimento técnico para apontar a falha humana
na manutenção ou condução do engenho.
Isso fez com que a doutrina, no
final do século XIX, desviasse os olhos da culpa e voltasse a atenção para o
risco criado pelo proprietário da máquina, deixando de lado exames de caráter
subjetivo, cujo referencial era o comportamento do "homem médio".
Conseqüência foi o
restabelecimento da antiga responsabilidade sem culpa, agora definida como
responsabilidade objetiva e entendida como a responsabilidade segundo a qual a
atividade criadora de risco é suficiente para responsabilizar quem a exerce,
causando danos a terceiros, independentemente de ter agido com culpa ou dolo.
O direito brasileiro, sempre
influenciado pela cultura européia, não ficou inerte à evolução da nova
doutrina, cuja finalidade era eminentemente social. Antes mesmo do Código Civil
de 1916 entrar em vigor, a responsabilidade objetiva logo foi recepcionada pela
Lei n. 2.681/1912, que a estabeleceu para as empresas de transporte
ferroviário.
Depois, o Decreto n. 24.687/1934
(Lei de Acidentes do Trabalho) fixou a responsabilidade objetiva do patrão pelo
dano causado ao trabalhador, de que resultasse morte ou ferimento; esse encargo
foi agravado pelo Decreto-lei n. 7.036/1944, que confirmou a responsabilidade
mesmo no caso de culpa da vítima.
O Decreto n. 483/1938
responsabilizou o proprietário da aeronave pelos danos causados a pessoas em
terra, por coisas que dela caíssem, assim como por danos derivados das manobras
dos aviões em terra. Essas regras, não modificadas pelo Código Brasileiro do Ar
(Decreto-lei n.32/1966, alterado pelo Decreto-lei n. 234/1967), foram mantidas
pelo atual Código Brasileiro da Aeronáutica (Lei n. 7.565/1986).
RESPONSABILIDADE OBJETIVA NO CDC
Durante muito tempo, falou-se na
responsabilidade objetiva do Estado como exemplo maior para explicar a
responsabilidade sem culpa, considerada exceção à regra da responsabilidade
subjetiva. Da doutrina surgia a diferenciação entre as teorias da culpa
administrativa, do risco administrativo (adotada pelo direito brasileiro) e do
risco integral.
Citavam-se a Lei n. 2.681/1912
(das Estradas de Ferro), o Decreto n. 24.687/1934 (Lei de Acidentes do Trabalho)
e a Lei n. 7.565/1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica), para justificar
outros casos não envolvendo a atividade direta do Estado.
Contudo, foi com a chegada do
Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) que houve uma verdadeira
reviravolta na doutrina e jurisprudência, que passaram a dar especial destaque
à responsabilidade sem culpa.
Isso porque a lei de proteção do
consumidor erigiu a responsabilidade objetiva à categoria de princípio, visando
assegurar que o consumidor jamais ficasse indene por não provar a culpa do
fornecedor de produto ou serviço.
Desse modo, estabeleceu-se a
responsabilidade objetiva não só para o fato do produto ou serviço (acidentes
de consumo), como também para os vícios do produto ou serviço (vícios de
adequação) (6).
Segundo a responsabilidade
pelo fato do produto ou serviço, regulada nos arts. 12 a 17 do Código de
Defesa do Consumidor, o fabricante, o produtor, o construtor, o importador e o
fornecedor de serviços respondem, independentemente da existência de culpa,
pelos danos causados aos consumidores, por defeitos de fabricação, por vícios
de informação ou, ainda, por defeitos relativos à prestação do serviço.
Conforme a responsabilidade
por vício do produto ou serviço, regulada nos arts. 18 a 25 do Código de
Defesa do Consumidor, os fornecedores de produtos ou serviços respondem
solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade, independentemente da
verificação da culpa, conquanto a lei não o diga expressamente.
Todavia, é importante ressaltar
que a responsabilidade por vício do produto ou serviço representa uma evolução
da responsabilidade por vícios redibitórios (estabelecida nos arts. 1.101 a
1.117 do CC/1916 e repetida nos arts. 441/446 do CC/2002), conforme a qual o
alienante responde perante o adquirente, sem ter agido com culpa (7).
Esse progresso pode ser
constatado principalmente no fato de que, antes de o Código de Defesa do
Consumidor entrar em vigor, não se falava em vício redibitório na prestação
de serviço, mas tão-somente na coisa recebida em virtude de contrato
comutativo, pressupondo-se o fornecimento de um produto.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA NO
CC/2002
Antonio Junqueira de Azevedo deu
especial destaque ao caput do art. 5º da Constituição de 1988, ao
deduzir do direito à segurança uma obrigação de segurança, que, por sua
natureza, implicaria sempre a regra da responsabilidade objetiva de quem
causasse dano à integridade física e psíquica de outrem, em qualquer tipo de
situação (8).
Para o professor da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, a obrigação de segurança hoje adquiriu
autonomia, existindo independentemente de contrato, pois "pode não haver
contrato nem muito menos importa se o contrato é gratuito ou oneroso" (9).
Admitiu, contudo, a exceção da
responsabilidade subjetiva para danos dessa natureza, desde que houvesse lei
expressa, como o art. 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor
(responsabilidade dos profissionais liberais), haja vista os preceitos
decorrentes dos princípios jurídicos não serem absolutos (10).
O dispositivo constitucional
citado, entretanto, não parece ter o alcance visado pelo ilustre professor,
pois falar em garantia de inviolabilidade de direitos não significa,
necessariamente, estabelecer um sistema de responsabilidade para a reparação de
danos à integridade física e psíquica da pessoa humana (11).
Mas é importante ressaltar que o
pensamento de Antonio Junqueira de Azevedo tem influenciado a doutrina e
auxiliado quem defende que a responsabilidade objetiva, tal como se encontra
hoje no Código Civil de 2002, está colocada hoje em pé de igualdade com a
responsabilidade subjetiva, de maneira que uma não seja mais importante que a
outra (12).
Assim, se por um lado o art. 186
desse mesmo código estabeleceu a culpa como requisito para a responsabilização
civil (13), por outro, o art. 927, parágrafo único, definiu a obrigação de
indenizar, independentemente de culpa, da seguinte forma:
"Haverá obrigação de reparar
o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a
atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, risco para os direitos de outrem (14)"
Não há dúvida de que esse
parágrafo único e o art. 186 do Código Civil de 2002 são cláusulas gerais
(15,16) que possuem uma série de conceitos jurídicos indeterminados
e normativos (como negligência, imprudência, dano, moral, atividade normalmente
desenvolvida, risco), cujos sentido e alcance dependem de um juízo de valoração
objetiva a ser feito pelo aplicador da lei (17).
Por isso Silvio Rodrigues, ao
comentar o projeto de lei, dizia que a regra — hoje contida no parágrafo único
do art. 927 —, abria uma porta para ampliar os casos de responsabilidade civil,
confiando ao prudente arbítrio do Poder Judiciário o exame do caso concreto,
para decidi-lo não só de acordo com o direito estrito, mas também,
indiretamente, por eqüidade (18).
O parágrafo único do art. 927,
pelo visto, é deveras amplo, abrangente o bastante para afastar a idéia de que
seria exceção ao sistema da responsabilidade subjetiva.
Sua natureza genérica pode ser
deduzida também da comparação com o art. 931 do mesmo código, este sim regra
complementar e particular que responsabiliza os empresários individuais e as
empresas, independentemente de culpa, pelos produtos postos em circulação.
A redação do art. 927, parágrafo
único, do Código Civil, dada sua amplitude, ainda permite ao intérprete superar
até mesmo o conceito de "atividade perigosa", pressuposto para
aplicação da regra segundo boa parte da doutrina.
Ocorre que a redação original do
projeto do Código Civil de 2002 falava em "grande risco para os direitos
de outrem", enquanto as legislações italiana (19) e portuguesa (20), ao
tratarem do assunto, diziam respeito à "atividade perigosa".
Isso levou parte do pensamento
jurídico brasileiro a associar a atividade referida no parágrafo único
do art. 927 do Código Civil de 2002 com a "atividade perigosa" que
contivesse em si "uma grave probabilidade, uma notável potencialidade
danosa, em relação ao critério da normalidade média e revelada por meio de
estatísticas, de elementos técnicos e da própria experiência comum (...)"
(21).
O legislador, entretanto, ao
excluir do Código Civil de 2002 a expressão "grande risco", que
estava no projeto, deu a entender que qualquer atividade, normalmente desenvolvida,
que, por sua natureza, implicar risco aos direitos de outrem, obrigará o autor
a reparar o dano, independentemente do grau de periculosidade (22).
A posição liberal adotada no art.
927, parágrafo único, representa louvável progresso em responsabilidade civil,
propiciando indenização a quem quer que sofra dano causado por qualquer tipo de
atividade que, normalmente desenvolvida por outrem, possa, por sua natureza,
implicar risco.
Ainda no que diz respeito aos
atos ilícitos, a responsabilidade objetiva pode ser verificada no arts. 932 e
933, que estabelecem a responsabilidade dos pais em relação aos filhos; do
tutor e curador em relação aos pupilos e curatelados; do empregador ou
comitente quanto aos empregados e prepostos; dos donos de hotéis pelos
hóspedes; e dos que gratuitamente houverem participado nos produtos de crime.
O art. 938 do Código Civil de
2002 manteve a responsabilidade objetiva daquele que habita prédio por dano
proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido
(regra contida no art. 1.529 do CC/1916).
No campo do direito
administrativo, o Código Civil de 2002 repetiu o de 1916 e a Constituição da
República, estabelecendo no art. 43 que as pessoas jurídicas de direito público
interno são civilmente responsáveis pelos atos de seus agentes que nessa
qualidade causarem danos a terceiros.
Nas obrigações, o Código atual
manteve como sendo objetiva a responsabilidade por vício redibitório (arts. 441
a 446), ampliando os prazos para o adquirente reclamar por defeito desse tipo.
Também a responsabilidade por
evicção continuou sendo objetiva, porque o alienante permaneceu responsável,
independentemente de culpa, pela perda da coisa em virtude de apreensão
judicial ou policial (art. 447 a 457), quando o adquirente não sabia do risco
ou se, dele informado, não o tinha assumido.
O Código Civil de 2002 deixou
claro que a responsabilidade do transportador de pessoas é objetiva, haja vista
não estar isento de reparar os danos causados por culpa de terceiro,
ressalvada, porém, a força maior como excludente (arts. 734 e 735).
A responsabilidade objetiva ainda
pode ser verificada nos arts. 884 a 886, relativos ao enriquecimento sem causa,
e nos arts. 939 e 940, concernentes ao credor que demanda o devedor antes de
vencida a dívida, bem como ao que o faz por dívida já paga (arts. 1.530 e 1.531
do CC/1916).
COMPARAÇÕES
Comparadas a responsabilidade
objetiva estabelecida no Código Civil de 2002 e a firmada no Código de Defesa
do Consumidor (1990), percebe-se que tanto o primeiro quanto o segundo adotaram
a teoria do risco profissional, responsabilizando o fabricante, o prestador de
serviço e também o comerciante pelos danos causados pelos produtos ou serviços
colocados em circulação.
A prestação de serviço, conquanto
não esteja inserida no art. 931 do Código Civil, que trata dos produtos postos
em circulação, está contida na redação do art. 927, parágrafo único:
"atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano (que) implicar, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem".
Conforme o Enunciado n. 42, da
Jornada de Direito Civil, "o art. 931 amplia o conceito de fato do produto
existente no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, imputando
responsabilidade civil à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação
dos produtos" (23).
Pelo vício de segurança, o
comerciante passa a ser responsabilizado não apenas subsidiariamente como
estabelece o art. 13 do CDC, mas solidariamente, porque sua atividade
pode ser interpretada como criadora de risco (art. 927, caput), na
medida em que coloca produto em circulação (art. 931).
Comparado ao Código de Defesa do
Consumidor, o Código Civil de 2002 é mais abrangente, porque estabelece a
responsabilidade objetiva sem diferenciar a condição da vítima, consumidora ou
não (se bem que o art. 17 do CDC seja norma de extensão, equiparando quaisquer
vítimas do evento danoso aos consumidores).
Para quem sustenta que a culpa
concorrente da vítima atenua a responsabilidade do fornecedor — a despeito
de o art. 12, § 3º, III, do Código de Defesa do Consumidor mencionar culpa
exclusiva —, o art. 945 do Código Civil de 2002 serve como reforço:
"Se a vítima tiver
concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada
tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do
dano".
Essa é a posição de Carlos
Roberto Gonçalves, para quem o dispositivo do Código de Defesa do Consumidor,
relativo à culpa exclusiva do consumidor, não teria mais aplicação (24).
Contudo, a idéia de revogação
pela lei posterior (argumento do ilustre jurista) não leva em consideração o
Código de Defesa do Consumidor como microssistema normativo, que estabelece
regras e princípios próprios para as relações de consumo, somente modificáveis
por normas da mesma natureza.
Ademais, porque a
responsabilidade pelo fato do produto ou serviço não admite discussão sobre a
culpa do autor do dano, não há como aplicar aos casos relacionados a ressalva
do art. 945 do Código Civil de 2002, que fala "em confronto com a (culpa)
do autor do dano".
Se isso ocorresse, estaria sendo
negada a natureza da responsabilidade objetiva, na medida em que a comparação
das culpas (confronto) pressupõe a análise da culpa do autor do dano.
No campo das obrigações,
especialmente no do vício redibitório, cuja responsabilidade se dá
independentemente de culpa, o Código Civil de 2002 garantiu um prazo maior para
o adquirente da coisa propor ação contra o alienante, ao adotar um sistema
semelhante ao Código de Defesa do Consumidor.
Pelo Código Civil de 1916, o
adquirente da coisa móvel só tinha 15 dias para enjeitar a coisa móvel (art,
178, § 2º) e seis meses para recusar a coisa imóvel, ambos a partir da tradição
(art. 178, § 5º, IV).
O art. 445 do Código Civil de
2002 ampliou os prazos de 15 para 30 dias, no caso da coisa móvel, e de seis
meses para um ano, no caso da coisa imóvel.
Tal como o art. 26, § 3º, do
Código de Defesa do Consumidor, o art. 445 do Código Civil estabeleceu a regra
de que o prazo começa a contar a partir do momento em que o adquirente tiver
ciência do vício.
O § 1º do art. 445 do Código
Civil, todavia, restringiu a aplicação dessa regra aos vícios que, por sua
natureza, só puderem ser conhecidos mais tarde e ao definir um limite de
180 dias para bens móveis e um ano para imóveis, exceções não previstas no
art. 26 do Código de Defesa do Consumidor.
Por outro lado, o Código Civil de
2002 estabeleceu no art. 446 que não corre o prazo decadencial durante a
constância da cláusula de garantia, não obstante o adquirente esteja obrigado a
denunciar o vício nos trinta dias seguintes à verificação, sob pena de
decadência.
Isso pode beneficiar o
consumidor, porque parte da doutrina e jurisprudência tem entendido que as
garantias legal e contratual se integram, iniciando-se ao mesmo tempo os
prazos para reclamação, de maneira que expirado o prazo da garantia legal,
restaria o término do prazo da garantia contratual.
CONCLUSÕES
No campo da responsabilidade
aquiliana, o Código Civil de 2002 representa para a vítima um avanço em relação
ao Código de Defesa do Consumidor, porque reforça a todos, consumidores ou não,
a garantia da responsabilidade objetiva.
A despeito de não erigir a
responsabilidade objetiva à categoria de princípio de indenização, tal como fez
o Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil de 2002 coloca esse tipo de
responsabilidade em pé de igualdade com a responsabilidade subjetiva, tornando
possível ao intérprete utilizar a cláusula geral do art. 927, parágrafo único,
para alcançar um número infindável de casos.
Com efeito, os conceitos
"atividade normalmente desenvolvida", "natureza" e
"risco", utilizados pelo mencionado artigo, dada sua indeterminação
permitem ao intérprete aplicar a responsabilidade objetiva a todos os casos
envolvendo danos à integridade física e psíquica da pessoa humana.
Nesse sentido, o Código Civil de
2002 recepciona a doutrina de Antônio Junqueira de Azevedo, para quem a
violação do dever genérico de respeito à segurança da pessoa humana implica a
responsabilização do autor do dano, independentemente de culpa.
No campo da responsabilidade
contratual, o Código Civil de 2002 avança na responsabilidade por vício
redibitório, ampliando os prazos para o adquirente não-consumidor exercitar
seus direitos contra o alienante.
Dessa feita, pode-se concluir que
o Código Civil de 2002 reforçou não só a garantia da vítima de ser indenizada
pelo risco gerado por uma atividade normalmente desenvolvida por alguém (arts.
927, parágrafo único, e 931), como também a garantia do adquirente da coisa
móvel ou imóvel em relação aos vícios redibitórios”.
Jorge Alberto Quadros de Carvalho
Silva é juiz de Direito em São Paulo e mestre em Direito Civil pela
Universidade de São Paulo.
NOTAS:
José de Aguiar Dias acredita que a noção de culpa
sempre fora precária no direito romano, onde jamais chegou a ser estabelecida
como princípio geral ou fundamento da responsabilidade (Da Responsabilidade
Civil, p. 42). Para Roberto Senise Lisboa, o direito primitivo dos povos
demonstra que o causador do dano sempre foi considerado o responsável pelo prejuízo,
sem nenhuma cogitação sobre culpa, sendo a responsabilidade objetiva uma velha
teoria cuja existência antecede a teoria da responsabilidade subjetiva (Responsabilidade
civil nas relações de consumo, p. 20 e 22).
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil,
p. 24.
O art. 1.382 do Código Civil
francês, lei inspirada nas lições de Domat e Pothier, tem a seguinte redação:
"Tout fait quelconque de l´homme, qui cause à autrui um dommage, oblige
celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer".
Curso de Direito Civil, p. 10 e 171.
José de Aguiar Dias cita como
exemplo os arts. 1.519, 1.520, parágrafo único, e 1.529 (Da Responsabilidade
Civil, p. 93).
Para Carlos Roberto Gonçalves, no
CDC tanto a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço como a oriunda do
vício do produto ou serviço são de natureza objetiva (Comentários, p.
85). Roberto Senise Lisboa também classifica a responsabilidade do fornecedor
de produto defeituoso como objetiva (Responsabilidade civil nas relações de
consumo, p. 57).
Roberto Senise Lisboa, nesse
sentido, diz que a responsabilidade do alienante é objetiva (Responsabilidade
civil nas relações de consumo, p. 55).
Art. 5º, caput, da
Constituição da República: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade (...)". (destacou-se)
Para Junqueira de Azevedo, o
dever anexo de proteção, decorrente da boa-fé objetiva, pode ser considerado
hoje autônomo, porque, no caput do art. 5º da Constituição da República,
o direito à segurança pessoal adquiriu autonomia, reforçando a idéia de
a responsabilidade objetiva não ser vista mais como exceção no direito
brasileiro. Afirma o professor que, no caput do art. 5º, existe uma
cláusula geral de segurança, fundamento para uma teoria desse tipo.
Caracterização jurídica da dignidade da pessoa
humana, p. 22.
, p. 22.
Tanto é que o Ministro do Supremo
Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, declarou, recentemente, que a segurança
de que trata o caput do art. 5º da Constituição diz respeito à segurança
jurídica, revelando a seu modo uma interpretação diversa do sentido comum, de
que o princípio refere-se à incolumidade física e psíquica da pessoa humana.
Esse é caso do Professor Gustavo
Tepedino, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que fala em sistema
dualista de responsabilidade no Código Civil de 2002
(http://www2.uerj.br/~direito/ publicacoes/publicacoes/diversos/tepedino.html).
Art. 186: "Aquele que, por
ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
O projeto do CC/2002 tinha
redação mais restritiva: "Parágrafo único. Também haverá a obrigação de
reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por
sua natureza, grande risco para os direitos de outrem, salvo se
comprovado o emprego de medidas preventivas tecnicamente adequadas".
Por cláusula geral, entende-se o
tipo abrangendo genericamente situações não previstas na lei, pela
impossibilidade prática de o legislador prever todos os casos possíveis
relacionados à matéria regulada.
Fernando Noronha também defende
ser o parágrafo único do art 927, do Código Civil de 2002, verdadeira
"cláusula geral" (Direito das obrigações, p. 487).
Karl Engish, a propósito, lembra
serem raros no Direito os conceitos absolutamente determinados, sendo os
conceitos jurídicos predominantemente indeterminados (Introdução ao
pensamento jurídico, p. 208 e 209).
Curso de Direito Civil, p. 176.
Art. 2.050 do CC italiano:
"Chiunque cagiona ad altri nello svolgimento di un’attività pericolosa,
per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, è tenuto al risarcimento se
non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitare il danno".
Art. 493, n. 2, do CC português:
"Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por
sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a
repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas
pelas circunstâncias com o fim de os prevenir".
Bittar, Carlos Alberto. Responsabilidade civil,
p. 93 e 94.
Merece destaque a interpretação
dada pela Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal (11 a 13 de setembro de 2002).
Segundo o Enunciado n. 38, "a responsabilidade fundada no risco da
atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do
novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida
pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais
membros da coletividade".
Promovida pelo Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro
de 2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ.
Comentários, p. 227-228.
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, Antonio Junqueira de.
Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. RT, São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 797, março de 2002.
BENJAMIN, Antônio Herman de
Vasconcellos e; DENARI, Zelmo; FILOMENO, José Geraldo de Brito; Grinover, Ada
Pellegrini; WATANABE, Kazuo; FINK, Daniel Roberto. Código de Defesa do
Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1999.
BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade
civil nas atividades perigosas. In: Responsabilidade civil — Doutrina e
jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1984.
DIAS, José de Aguiar. Da
responsabilidade civil. vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1944.
ENGISCH, Karl. Introdução ao
pensamento jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários
ao Código Civil: Parte especial: Do direito das obrigações. Antônio
Junqueira da Azevedo (Coord.). Vol. 11, São Paulo: Saraiva, 2002.
LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade
civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
NORONHA, Fernando. Direito das
obrigações. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003.
RODRIGUES, Silvio. Direito
Civil: responsabilidade civil. vol. IV. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1987.
http://www.epm.tjsp.jus.br/Internas/ArtigosView.aspx?ID=3177.
Acesso: 24/9/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Qualquer sugestão ou solicitação a respeito dos temas propostos, favor enviá-los. Grata!