“Pessoa humana
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
I - Pessoa humana: dignidade
A
dignidade da pessoa humana é o conceito nuclear do estado contemporâneo, um
estado baseado em dois pilares, o regime político democrático representativo
com a tripartição dos poderes, e a matriz constitucional, inspirada na linha da
Magna Carta de 1215, imposta pelos barões ingleses ao rei João Sem Terra.
O que é
dignidade? E pessoa humana? E qual é a exata dimensão de cada um desses
conceitos? Estas expressões são constantemente utilizadas e, inclusive, para
defender interesses e pleitos contraditórios como, por exemplo, a pretensão
abortista, o tratamento eutanásico e o respeito ao direito à vida.
Como
inúmeros outros conceitos que são muitos comuns em direito e filosofia, a
dignidade da pessoa humana é o resultado de uma longa destilação secularizada
da ideia judaico-cristã do homem como imagem de Deus (Gn 1, 27) e destinatário
da missão de Cristo.
A
tradução do conceito de imagem de Deus, presente em todos os homens, para
âmbito da noção de dignidade, a ser respeitada por todos os homens de todos os
tempos, acabou por criar uma expressão teológica secularizada e que confere um status
ímpar ao ser humano.
E a noção
de pessoa, que reflete também na ideia de dignidade e decorre do fato de
Cristo, segunda pessoa da Trindade, também não é diferente. Assim, ambos
conceitos, dignidade e pessoa, não só demonstram uma certa unidade da
realidade, mas a busca de uma fonte imutável para a delimitação do sentido da
expressão que intitula o artigo.
Quando
alguém reclama da dignidade violada, implicitamente, aponta-se para uma
adequada atitude em relação ao outro no seio das interações sociais, o que, nos
campos da filosofia e do direito, é chamado de reconhecimento. Reconheço esse
vizinho, que sempre toca seu bandolim antes de dormir, como pessoa, porque sua
dignidade, como valor inseparável à identidade do ser humano, exige um ato de
aceitação.
E,
traçando um paralelo com a noção teológica de fé, poderia argumentar que, como
este ato de reconhecimento está voltado a uma realidade transcendente, a
aceitação da realidade da pessoa humana, na forma acima apresentada, seria uma
manifestação de fé, mas secular, porquanto diz respeito a este ou aquele ser
humano com quem me relaciono concretamente. Inclusive, com o vizinho do
bandolim inoportuno.
Assim, a
ideia de dignidade da pessoa humana envolve dois dados: a pessoa humana e o
reconhecimento. Tanto um como o outro sempre foram debatidos na história e,
atualmente, recebem contribuições de muitos ramos do saber. Na filosofia,
alguns pensadores fizeram da pessoa (e, implicitamente, do reconhecimento) o
epicentro de suas reflexões, que culminou com uma corrente denominada
personalismo.
No
direito, a pessoa é definida e reconhecida como o ser humano, com todos os
predicados que integram sua individualidade, sujeito de direitos e obrigações.
A psicologia, a medicina, a psicanálise e a pedagogia também estudam com
profundidade as ideias de pessoa e de reconhecimento. No campo político, o
reconhecimento e o respeito aos direitos da pessoa humana é um termômetro para
se observar o grau de justiça de uma nação, de um povo ou de um sistema.
Mas todo
ser humano, mesmo sem muita teoria, com base nos sentidos e na natural
socialização em comunidade, consegue se distinguir como um ser de uma dada
espécie no mundo natural. A dificuldade surge em considerar o outro ser vivo da
mesma espécie e, diante de si, como pessoa, já que isso acarreta consequências
normativas.
Porque a
pessoa, como ser em si, isto é, um ser com uma existência individual, não pode
ser sobreposto pela maioria. Como ser para outrem, porta consigo a exigência da
reciprocidade. Como ser para si, deve ser respeitada como um fim e não
utilizada com um meio.
Eis a
tarefa do reconhecimento: considerar o ser humano como pessoa. E nossa reflexão
apropria-se de elementos filosóficos e jurídicos que não se dissociam da matriz
religiosa original. Na linha de Habermas, para quem “a interpenetração entre a
cristandade e metafísica grega (...) também fomentou uma apropriação de
conteúdos genuinamente cristãos pela filosofia. Esse trabalho de apropriação
transformou o sentido originariamente religioso, mas não o deflacionou ou
consumiu de modo que o esvaziasse (in FSP, Caderno Mais, 24.04.05)”.
Em suma,
um diálogo fecundo entre as três fontes. E não um diálogo mais ou menos. Ou
mais para mais. Ou mais para menos. Mas na exata medida, num mundo que, em
matéria de dignidade humana, caminha, cada vez mais, mais para menos do que
para mais.
II - Pessoa humana: história
II - Pessoa humana: história
O estudo
da noção de pessoa humana na história lembra bastante o universo de pessoas que
nos cercam concretamente, uma espécie de multiplicidade com, às vezes, alguma
unidade. Aliás, unidade mesmo se resume ao nome dado ao conjunto multifacetado
de qualidades que singularizam o ser humano de todas as outras coisas que nos
circundam: pessoa.
Na
Grécia, mesmo com abundância de vida contemplativa, o conceito de pessoa passou
em branco, pois, por acentuar o individual e o concreto, não poderia andar de
mãos dadas com uma filosofia que enfatizava o universal e o abstrato. Começo a
entender porque, de tanto especular nas alturas, Tales caiu num dado e concreto
poço...
O
cristianismo trouxe uma nova dimensão do homem, a da pessoa humana, marcada
pela autonomia no ser. A revelação cristã foi dirigida, desde seu começo, a
todos os homens tomados individualmente, em razão da filiação divina de cada
um. Deve ter sido uma crise de consciência para o homem antigo, sobretudo o
grego, absorvido pela cidade e pela família e submetido a um destino cego e sem
nome.
Mais
tarde, as disputas teológicas acerca dos mistérios da Trindade e da Encarnação
submeteram a noção de pessoa a um raciocínio mais profundo, de maneira a
adquirir uma sólida veste filosófica, principalmente naquilo que respeita à sua
natureza racional.
Depois,
Descartes, coerentemente com o seu “penso, logo existo”, criou uma ruptura no
discurso filosófico e passou a ver a pessoa como o homem que pensa a si mesmo.
O eu seria determinado pela autoconsciência, a única singularidade humana.
A partir
daí, todo pensamento (principalmente Kant e Hegel) seguiu mais ou menos essa
mesma trilha, para o qual garantir que o homem é pessoa significou demonstrar
que o homem sempre foi um ser capaz de refletir como um sujeito que alcançou a
consciência de si.
Recentemente,
outros pensadores, de escolas filosóficas diversas (como Heidegger, Scheler e
Guardini), tiveram a preocupação comum de superar a visão intelectualista
dominante na época moderna, porque perceberam (e com acerto) que essa
perspectiva reduziu a ideia de pessoa humana exclusivamente ao pensamento e, em
alguns casos, a um mero feixe de sensações, sacrificando, de novo, como na
filosofia grega, o singular em prol do universal.
Desde
então, buscou-se uma recuperação da singularidade do homem e da complexidade de
seu ser, constituído não só de espírito, mas também de matéria. Não só de
pensamento, mas também de uma porção definida no espaço. A individualidade
passou a dividir o assento do conceito de pessoa ao lado da intelectualidade.
Mas não é
só. Tais pensadores também contribuíram em muito ao apontar que a
individualidade do homem, esse ser aqui e agora, provoca uma abertura
intencional (transcendência), tanto no conhecer quanto no querer, pela qual ele
é capaz de todo tipo de diálogo (comunicação) com as coisas, os outros e o
absoluto.
Assim,
pessoa poderia ser definida como indivíduo dotado de autonomia quanto ao ser,
razão, autoconsciência, transcendência e comunicação. Dessa maneira,
compreende-se todos os elementos principais que os pensadores antigos e
modernos reconheceram como atributos da pessoa, sem que um seja superestimado
em detrimento do outro.
Esses
elementos, mesclados no ser e no agir humanos, levam o homem para além daquilo
que ele é atualmente e sempre lhe propõem novos objetivos e ganhos. Externos e
internos. Hoje, muito foco é dado nos primeiros: minha casa própria, meu
primeiro celular, meu primeiro carro. Para alguns torcedores, meu primeiro
estádio...
E, em
minha experiência pessoal, ouso dizer que as metas e vitórias internas
realizam-nos mais como pessoa: ser virtuoso, agir como um bom profissional ou
atuar como um bom cidadão. Porque regressar para o nosso eu, quando o exterior
vive a nos tentar com o deslumbramento, talvez seja a única forma de, por uma
vez na vida, simplesmente arrumá-lo, num mundo cada vez mais desarrumado.
III - Pessoa: autonomia
III - Pessoa: autonomia
A liberdade
permite ao homem alcançar sua grandeza máxima, mas também, se manejada
irracionalmente, é condição de possibilidade de sua maior degradação. Talvez
seja o dom mais valioso, porque impregna e define toda sua atuação. Nesse
sentido, Sartre tem razão ao afirmar vigorosamente que “o homem está condenado
a ser livre”. No “processo” da vida, para além dos manuais de direito,
parece-me um caso de “sentença” irrecorrível...
O homem é
livre desde o mais profundo de seu ser. Por isso, a modernidade associou o
exercício da liberdade, nos mais variados campos, com a plena realização da
pessoa. Em qualquer manifestação popular, panfletagem partidária, greve geral,
debate de chapa para centro acadêmico ou conversa familiar entre pais e
adolescentes, o assunto da liberdade é sempre veiculado: é um direito e um
ideal que se entende irrenunciável.
Essa
liberdade constitutiva da pessoa consiste numa intimidade livre, um espaço
interior que ninguém pode possuir ou acessá-lo se eu não permito e no qual
estou à disposição de mim mesmo. É um campo interior de novidade inacessível
para os outros.
Mesmo
para o cônjuge no seio da intimidade matrimonial e para pais e filhos no âmbito
da relação familiar. Um local onde sou dono de mim mesmo e, logo, das próprias
ações ou omissões. Um campo de batalha onde são travadas as guerras invisíveis
da alma e que nenhum exército do mundo é capaz de interferir.
Ao longo
da história, mas, principalmente, no século XX, os totalitarismos à la carte
foram pródigos na tentativa de suprimir este nível de liberdade. Dos gulags aos
campos de concentração, nenhuma prisão ou cativeiro tem a capacidade de
eliminar uma crença ou um amor no interior da alma.
Esse
núcleo inviolável do homem só pode ser exterminado com a morte. Por isso que
todas as formas, explícitas ou esfumaçadas, de perseguição de liberdade de
expressão ou de religião sempre terminam num rotundo fracasso, porque nunca
atingem o interior da consciência.
Dessa
liberdade, a ser respeitada pelas leis em geral, florescem os direitos fundamentais,
como o direito à liberdade de pensamento, que demanda uma natural
expressividade. O direito à liberdade religiosa, que não inclui apenas o crer,
mas um espaço público para a prática da fé. O direito à escusa de consciência,
por motivos morais ou filosóficos, a ser aplicada de forma abrangente e em
relação à uma série de domínios da existência.
De outro
lado, imaginar que essa liberdade resume-se na ausência total de limites é puro
exercício de fantasia. Uma equivocada abstração que, se confundida com a
liberdade, pode provocar consequências nefastas. Hegel, com acerto, chamou isso
de liberdade do vazio.
Desde
Hobbes, para quem a liberdade é a ausência de impedimentos externos, costuma-se
compreender que ser livre consiste em se suprimir toda a dependência. Ao longo
do tempo, essa ideia leva ao desenraizamento e à desorientação. É o cenário
europeu de hoje: o Velho Continente sempre foi o timoneiro da história, para o
bem ou para mal e, atualmente, cada vez mais divorciado dos ideais que
plasmaram sua civilização, lembra mais um barco à deriva ou uma nau sem rumo,
porque a bússola não funciona mais...
Se a
liberdade não tem limites, prevalecem a arbitrariedade e o capricho. A
liberdade nunca parte de um ponto zero. Nós somos nós e nossas circunstâncias,
já dizia Ortega y Gasset. Assim, somos livres a partir desse referencial.
“A
escolha é possível em algum sentido, mas o que não é absolutamente possível é
não escolher. Eu posso sempre escolher, mas devo saber que se não escolho,
ainda assim eu escolho”. Termino com as palavras do mesmo existencialista
francês que abriu as alas do artigo e que, apesar de sua intelectualidade
sofisticada, optou pela cartilha política autoritária. E com liberdade.
IV - Pessoa: dimensão racional
IV - Pessoa: dimensão racional
Além da
qualidade de ser dotado de autonomia, o homem é capaz de conhecer e pensar e
essa faculdade tem, como objeto, não só o particular, o sensível ou o material,
mas o universal e o abstrato. Ainda que todo conhecimento passe antes
pelos sentidos, podemos migrar do concreto para o teórico e chegar às
conclusões que recebem o nome de princípios.
A Reforma
Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa foram fenômenos históricos em
que essa dimensão tomou uma tal proporção que os efeitos perduram até hoje. No
primeiro caso, prevaleceu a soberania da razão do sujeito que pretendeu ter
acesso ao divino sem uma mediação eclesiástica. No segundo, houve a tripartição
da cultura em três âmbitos diferentes e autônomos (ciência, moral e arte), cada
um deles regidos por uma lógica e princípios próprios. No terceiro, a razão
coletiva que almejava liberdade pôs o Antigo Regime para baixo.
O homem
não conhece este ou aquele animal, esta ou aquela árvore ou esta ou aquela
flor. Mas o animal, a árvore e a flor enquanto tal. Além disso, o homem possui
as ideias de bondade, virtude, sociedade, trabalho, as quais não se referem a
nada de material ou de concreto, porém remetem ao universal e ao abstrato.
Também
possuímos a capacidade de julgar e raciocinar. O homem formula proposições
abrangentes como “os corpos caem”, “a água molha”, “o fogo queima”, “o calor
expande”, “o frio contrai”. Chegamos a umas ideias refletindo sobre outras e
concluímos pela existência de algo posterior a partir da existência de um algo
anterior. Aliás, a prova mais cabal da dimensão racional do homem está na
ciência.
O homem
esforça-se por coordenar todo o conhecimento de maneira sistemática: divide-os,
classifica-os segundo estes ou aqueles argumentos e, assim, obtém as teorias
gerais das inúmeras esferas da realidade, com pretende a própria ciência.
Fernando
Pessoa, com genialidade peculiar, poetizou eternamente o atributo racional do
homem: “Temos todos que vivemos/ uma vida que é vivida e uma vida que é
pensada/ e a única vida que temos/ é esta que é dividida/ entre a verdadeira e
a errada/ Qual porém é verdadeira/ E qual errada, ninguém/ nos saberá explicar/
E vivemos de maneira/ Que a vida que a gente tem/ É a que tem que
pensar...".
E, quando
o pensar se volta para o outro, não convém que a razão ignore o mandamento
kantiano de que o homem jamais deve ser usado como meio, mas respeitado como um
fim. Porque o homem pode captar a realidade não apenas em relação ao seu estado
mais elementar, mas em si mesma, como algo independente dele: como aluno, posso
ver no professor um mero empregado que é sustentado pela minha mensalidade.
Contudo, posso ver no professor o mestre que estimula meu intelecto a percorrer
o trajeto entre a ignorância e o saber.
Por fim,
o homem, ao pensar, conhece a si próprio como sujeito, como um eu. A
inteligência, por ser reflexiva, permite que nos reparemos e nos descubramos em
meio ao “nosso mundo”. Saber-se no meio do mundo é reconhecer que a realidade
não é composta de entes isolados, mas deve ser contextualizada para apreender
totalidades de sentido.
Nessa
vida que a gente tem que pensar, como ensina o bardo, nossos registros são como
as notas musicais numa partitura: variam de altura, duração e intensidade.
Analogia um tanto apropriada para estas terras de Carlos Gomes. E a notação do
nosso ser agradece, quando o irracionalismo, o pessimismo e outras tipologias
pós-modernas de desrazão não falam mais alto, pois o homem, quando reflete, é
plenamente capaz de ser livre, furtando-se das paixões dos sentidos.
V – Pessoa humana: eu, o outro e a linguagem
V – Pessoa humana: eu, o outro e a linguagem
Uns
versos de uma canção popular, que já começa a ter a pátina do tempo, exaltam,
com a simplicidade e a dignidade de uma antologia literária, o outro e a
linguagem: “Palavra não foi feita para dividir ninguém/ Palavra é a ponte onde
o amor vai e vem”. A alma exprime-se pelo corpo e, especialmente, pela
linguagem, até porque o homem, como ser social, precisa de sinais e símbolos
para se corresponder com os outros. Eis duas outras dimensões da pessoa: a
transcendência e a comunicação.
Nós
falamos. Alguns falam além da conta, ébrios ou não. Outros falam sozinhos.
Outros dormindo. Há quem fale com as paredes. Minha filha de cinco anos deve
sofrer de logorréia: ela fala ininterruptamente da manhã até à noite.
Shakespeare saiu-se com esta pérola, a de que “sua fala é um banquete
fantástico em que abundam os pratos esquisitos” (Muito barulho por nada, II/3).
Comunicamo-nos
com os outros de várias formas. Quanto não diz um singelo olhar entre esposos,
um sorriso maroto levemente esboçado pelo filho travesso, um silêncio rotundo
num velório, um gesto apaixonado de um namorado ou mesmo um aceno afetuoso ou
ofensivo!
Inúmeras
são as vias da linguagem: as “pontes” que alcançam os outros, uma via de mão
dupla onde trafegam as alegrias e as dores, os ódios e os amores, as certezas e
hesitações, as esperanças e ilusões. A linguagem tem sido objeto de uma
progressiva atenção por vários ramos do saber desde o começo do século passado.
Alguns
chegam a definir o homem exclusivamente como um ente que fala, com a tendência
a unir pensamento e linguagem, estudando a dimensão intelectual humana a partir
desta relação. A razão abstrata e a lógica científica, tidas como as linguagens
humanas por excelência, passaram a ter a companhia das linguagens cotidianas do
“mundo da vida” (Husserl e Habermas), pois a fala é mais ampla que a ciência,
já que abrange os âmbitos do trabalho e da convivência social e cultural.
Assim, a
linguagem é um método humano, não instintivo, de comunicar ideias, emoções e
desejos por meio de símbolos convencionados. E sua forma é o pensamento, porque
um falar sem pensamento não comunicada nada, como algumas obras de arte
pós-moderna. Falar e pensar acontecem ao mesmo tempo, mesmo naquelas situações
em que falamos sem “pensar” antes...
O homem
não é uma pedra. Possui uma interioridade a transmitir e tem o conveniente de
que alguém recebe aquilo que é expressado. Aqui entra o outro. Por ser pessoa,
o eu necessita do encontro com o tu. Os filmes infantis comprovam isso. Os
selvagens de ficção, como o Tarzã e o Mogli, só sobrevivem em seus contos
porque eles falam com os animais personificados.
A pessoa,
sem o próximo, acabaria por se frustrar radicalmente, porque não teria um
destinatário. Aquela interioridade não seria transmitida. Seria uma vida
estéril, convertida numa sombra entre os viventes. No mundo grego, isso era a
pena de desterro: perder a pátria, ir para outro lugar, com outra língua e
outros costumes, era pior que morrer, porque era, de certa forma, uma morte em
vida. Hoje, o desterro, em muitas sociedades, é composto por uma multidão de
solitários...
A pessoa,
ao longo da vida, precisa de outras para aprender a reconhecer-se a si mesma,
desenvolver sua vida e alcançar sua plenitude. Originariamente, a expressão
“pessoa” significava a máscara do ator no teatro, o rosto do representado. O
outro é sempre um rosto que se mostra para nós.
Como uma
criança que aprende a conhecer o rosto da mãe antes de seu próprio rosto. O
sorriso materno é o seu primeiro contato com a realidade. “Dos nossos planos é
que tenho mais saudade/ Quando olhávamos juntos na mesma direção/ Aonde está
você agora além de aqui, dentro de mim”, já cantava o poeta de minha geração.
Muitos
estudiosos sérios, como John Rawls, concebem uma sociedade ideal como aquela na
qual todos dialogam livremente. Todos, isto é, o eu e o tu. Dialogam, ou seja,
falam. Quando uma estrutura, como a família ou a sociedade, tem problemas,
muitas conversas são necessárias para que as pessoas entrem num consenso.
Porém, não basta reunir-se. Dialogar é compartilhar a interioridade, abrir-se
ao semelhante, estar disposto a escutá-lo.
VI - Pessoa: reconhecimento e dignidade
VI - Pessoa: reconhecimento e dignidade
A
filosofia ensina que todo ser humano é pessoa. Isso é teoria. Contudo, na
prática, a constatação de que este ou aquele ser humano é uma pessoa não é
mediada pela pura especulação metafísica, a qual limita-se a indicar os
princípios primeiros e os fins últimos da realidade e do agir.
A par
disso, o direito, na tarefa de determinação da noção de dignidade desta mesma
pessoa, estabelece seu estatuto e, por ser um ramo do saber envolto numa
dimensão prática, deve especificar as condições de efetividade da mesma
dignidade.
Em suma,
não basta declarar pomposamente que todo cidadão tem direito à saúde como
efeito do princípio da dignidade humana. É preciso criar condições materiais
para que o sistema público ofereça uma estrutura condizente, o que, certamente,
não se ajusta lá muito com os corredores “terminais” dos hospitais do SUS...
Logo, a
filosofia e o direito orientam nossa razão na prática cotidiana. Num primeiro
momento, a razão diz à nossa consciência que o sujeito que está diante de nós é
um ser humano, seja um embrião, um assassino contumaz, um idoso inválido ou um
doente com câncer terminal.
Depois,
convoca o nosso agir a uma atuação consequente, isto é, a identificação do
vizinho, do porteiro ou do motorista, numa situação concreta, como pessoa, por
meio de uma postura denominada reconhecimento.
No mundo
empírico, reconhecemos imediatamente alguém como um ser humano. É um fenômeno
universalmente histórico, porque todo sujeito, apelando aos seus sentidos e ao
senso natural de socialização, consegue distinguir um ser humano dos demais
seres vivos.
A
dificuldade aparece no momento em que nossa consciência acusa a presença não só
de um homo sapiens, mas de uma pessoa, porque isso traz inúmeras
consequências normativas. Perenes, porque são devidas enquanto aquele ser
humano for pessoa, ou seja, da fecundação até o caixão. Irrenunciáveis, pois a
ninguém é dado abrir mão, sob pena de imperar o arbítrio do mais forte. E
irrevogáveis, já que decorrem da própria natureza humana.
Assim, o
reconhecimento acima mencionado consiste em considerar o ser humano como
pessoa. Como ser em si, a pessoa é um todo e uma realidade antropológica única
e não a parte de um sistema ou de uma estrutura, como nos regimes comunistas,
na visão marxista de trabalho ou como efeito das correntes antropológicas
materialistas.
Como um
ser com outros, a pessoa é um ser que se relaciona com seu semelhante. É o
outro que limita as tendências e os instintos que todos carregamos. Antecipando
a reação de aprovação ou de desaprovação dos pais, a criança forma um ponto de
vista externo a si e, logo, distancia-se de suas inclinações e age por si
mesmo. O ideal de felicidade humana está ligado ao amor romântico, à família e
aos amigos. Como efeito desse atributo, a pessoa porta consigo a exigência de
reciprocidade.
Como ser
para si, a pessoa é autofinalizada, ou seja, dispõe de uma natureza humana
comum a todos os seres, contudo realiza seus dados antropológicos (como a
razão, o afeto e a sociabilidade) de um modo particular. O que é Sócrates?
Sócrates é um ser humano. Quem é Sócrates? Sócrates é esta pessoa.
Duas
afirmações verdadeiras que designam aspectos diferentes do mesmo ser,
sintetizadas por Spaemann como “quem somos não se identifica com o que somos”.
Como resultado dessa condição, o homem deve ser respeitado como um fim (Kant).
No
momento em que se dá o reconhecimento do outro como pessoa, afirma-se, ao mesmo
tempo, uma objetiva dignidade decorrente desta condição e impõe-se uma certa e
vinculante atitude. Quando estou diante do rei Pelé, vou me comportar de forma
compatível com sua dignidade, decorrente do valor de ter sido o maior jogador
da história do futebol.
Esta
valiosa identidade não é algo subjetivo, que me perdoem os argentinos,
remetendo-lhes às estatísticas dos títulos e à beleza e singularidade de seus
gols. A dignidade é, assim, o valor objetivo de uma identidade. E, no caso do
ser humano, esse valor objetivo deriva do ser em si, do ser com outros e do ser
para si.
Se o
reconhecimento é a consideração do ser humano como pessoa, a dignidade, por sua
vez, expressa a exigência desse reconhecimento por cada um de nós sempre que
nos deparamos com o outro. Ontem, hoje e sempre.
VII - Pessoa: cientificismo
VII - Pessoa: cientificismo
No mundo
ocidental, vivemos numa época em que o conhecimento científico seria o único
método válido de apreensão da realidade que nos cerca. A ciência, sobretudo a
experimental, tem a nobre e singular tarefa de explicar os fenômenos da vida
real, ou seja, daquilo que aparece para nós e é controlável por certos
critérios.
Sabe-se
que se está defronte a um arado, porque suas características sensíveis
(estrutura rígida, com uma certa forma e finalidade de lavrar a terra antes da
semeadura) permitem identificá-lo como tal.
Então,
com base nesse conceito, o arqueólogo e o historiador tentarão determinar se
uma armação de galhos fossilizados ou uma carcaça de metal pré-histórica com um
engate para tração animal foram ou não um arado.
Quando a
ciência pretende ir além disso e resolve querer explicar absolutamente tudo,
inclusive comportamentos humanos, em termos puramente científicos,
transforma-se em cientificismo, uma espécie de fé cega no poder da ciência.
Uma visão
deturpada atual, porque os fundadores da ciência moderna compreendiam que este
saber nunca ofereceria um conhecimento completo e absoluto da vida e da
natureza, uma espécie de discurso totalizador da realidade.
Eram
conscientes de que a racionalidade científica tem uma dimensão concreta e muito
especializada, inventada para obter unicamente o tipo de conhecimento para o
qual fora criada e aplicável somente para aqueles aspectos do mundo que podem
ser captados pelas noções abstradas da ciência.
A
peculiar razão da ciência não é a razão natural da vida ordinária, rica em sua
complexa trama de fios e informada por inúmeras outras variáveis. Por isso, a
cultura cientificista dominante rejeita o conceito de pessoa, porque a ciência
é absolutamente incapaz de apreender a pessoa.
O ser
humano, como espécie, pode e deve ser estudado pela ciência, pois seu campo de
estudo se dá justamente sobre a essência (ou universal). E a realidade é
composta por inúmeras delas, como a dos vegetais e a dos animais. O ser humano,
como pessoa, não é uma essência, mas um existente e, logo, um particular, o que
o deixa fora da área de especulação da ciência.
A
existência de algo só pode ser captada por um ato de percepção. E a maneira de
a existência fazer-se presente à nossa razão não ocorre por meio de um
conceito, de uma pura abstração, mas por intermédio de um juízo. Voltemos ao
exemplo do arado. Há um conceito de arado. Contudo, a existência deste arado
que vejo aqui e agora não é fruto de um conceito, mas de um juízo que faço:
este arado existe.
Quando
olho para meu semelhante, percebo nele, pelos meus sentidos, que ele tem uma
natureza humana, igual a minha e que a ciência já se ocupou em definir pelo
conceito de ser humano. Mas esse mesmo semelhante atende pelo nome de Pedro e,
visto assim, não pode ser definido cientificamente, por ser uma pessoa
determinada. O perigo do cientificismo, ao reduzir a pessoa concreta somente à
natureza humana, ou seja, substituir o particular pela essência, está em
provocar a naturalização do ser humano.
Esse
fenômeno acaba por redundar numa antropologia naturalista, como aquela estudada
na Grécia Antiga, que leva à hierarquização e ao arbítrio e, no limite, à exclusão
e à eliminação, porque sempre haverá graus de atualização da natureza. Aqueles
que a realizam de uma forma mais plena ficarão acima dos outros. Quem não
conseguir, será subordinado ou excluído.
Na polis
grega, o cultivo da razão foi o único critério usado para estabelecer a
distinção social. O ser humano era o animal racional e político: nessa
classificação, só havia lugar para o cidadão grego culto e rico. Os
trabalhadores, os escravos e os estrangeiros, por não praticarem aquele
cultivo, eram considerados como uma anomalia antropológica...
Identificar
uma pessoa exclusivamente com os atributos do ser humano é negá-la como pessoa,
porque tais atributos elucidam o que ela é e não quem ela é. O
ser humano, como pessoa, é a existência irrepetível de um sujeito que tem
aqueles atributos. Vai além deles e, como diz o poeta, a pessoa é um mistério
que não se conhece. Apenas se reconhece como tal, pois transcende às
definições.
VII - Pessoa: valor absoluto
VII - Pessoa: valor absoluto
Talvez a
mercantilização de nossa sociedade seja uma das várias causas do relativismo
reinante. O supérfluo torna-se necessário, graças à criatividade da maioria dos
marqueteiros, os quais, por sua vez, reduzem-nos à condição de meros seres que
consomem. De tudo.
E quando
tudo se transforma em mercadoria, tudo passa a ter um preço, um valor relativo
a um padrão, uma moeda, a qual também é relativa, como se pode observar nas
oscilações do mercado de câmbio. Num ambiente em que tudo é mercadoria e tudo
tem um preço, não se admire: tudo passa a ser relativo. Inclusive o homem.
Hobbes já
havia observado isso no início da Idade Moderna, ao ter afirmado que “o valor
de um homem, tal como o de todas as outras coisas, é o seu preço (...).
Portanto, não absoluto, mas algo que depende da necessidade e julgamento de outrem
(in Leviatã, X)”.
Nessa
perspectiva relativista, pretender declarar a dignidade da pessoa humana tem o
sentido de considerar o ser humano como absoluto. Mesmo no campo do direito,
onde se ensina que não existem direitos absolutos. Concordo, com uma ressalva:
o direito à vida, pressuposto para o exercício dos demais direitos. Mas, ao que
parece, mesmo esse direito já passou a ter um preço...
Entender
o ser humano como absoluto significa captar sua condição de ser para si,
definido por uma referência própria e singular que jamais pode ser substituída
por outra referência externa, quero dizer, o ser humano não tem sua identidade
como pessoa dependente de fatores estranhos a si.
A etnia,
a classe social, o Estado, a descendência, a utilidade social, a estrutura, a
dominação, a vontade de poder e outros tantos referenciais exteriores que são
falsos absolutos. Como ser para si, dessa forma, o valor da pessoa é
incondicional, uma vez que não pode ser vinculado a um referencial de fora. É
fundada em si e tal fato produz efeitos relevantes para os outros. O respeito é
o primeiro.
Respeitar
a pessoa é a única atitude digna que lhe devemos, porque, ao fazê-lo,
reverencia-se a si mesmo. Quando essa deferência é negada, rebaixamo-nos e,
logo, surge a degradação. Essa negação pode se constituir numa forma de
opressão, numa maneira de despojar a pessoa daquilo que a faz ser ela mesma e
que lhe confere uma identidade única.
Os
processos totalitários sempre foram pródigos nesse trabalho de opressão e
despojamento. De modo consciente, planejado, gradativo e sistemático, apelando
para um predicado para conceber a noção de pessoa, sempre pautado em termos
“científicos”.
Quando o
regime nazista definiu o predicado “raça” (ariana), como o filtro de seleção de
um povo, quase não sobraram judeus em Dachau, Treblinka e outros tantos campos
de concentração. Quando o regime comunista escolheu o predicado “classe”
(proletariado), a linha de produção foi mais cruel: o resultado da reengenharia
social significou no recorde histórico de cadáveres ideológicos...
Hoje, os
movimentos totalitários estão sepultados, mas a opressão e o despojamento ainda
permanecem e voltadas para outros seres humanos. Boa parte da bioética atual
pergunta se embriões, doentes mentais, inválidos sociais e pacientes em coma
são pessoas. Quando se levanta a questão sobre o caráter de pessoa de um ser
humano, a resposta já está embutida na pergunta.
Colocar
na mesa do debate esse questionamento é relativizar tais seres, já que, tentar
se valer de uma argumentação para resolver a condição de pessoa de um ser
humano, é tornar esse caráter dependente dos argumentos e, portanto, relativo.
É
impossibilitar o reconhecimento de seu valor absoluto, de alguém que está além
de qualquer argumentação, pois sua condição estaria carente de uma
“fundamentação”. Só o relativo demanda uma fundamentação e não o absoluto. O
absoluto é o fundamento.
A pessoa
é um fim em si mesma. Eis o princípio fundamental de uma ética e uma
antropologia personalistas. Kant já nos alertava para trabalhar “de modo que
trates à humanidade, seja na tua própria pessoa ou na de outro, sempre como um
fim, nunca apenas com um meio”. O valor da pessoa é absoluto. E não relativo,
porque quando tudo se transforma em relativo, tudo, portanto, passa a ser
permitido. Com respeito à divergência, é o que penso”.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br)
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br)
http://www.epm.tjsp.jus.br/Internas/ArtigosView.aspx?ID=15410.
Acesso: 6/9/2012
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