segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Direito, filisodia e justiça.

“Pensar o Direito


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


I - Pensar o Direito: Justiça

Evito falar sobre diretamente sobre leis. Depois de passar um bom período do dia debruçado sobre processos e códigos, o que menos quero, depois da jornada de trabalho, é ficar debatendo sobre a lei tal ou a lei qual. Parece que estou levando lição para casa.

Já fiz o suficiente nesta vida e, mesmo quando não tinha, acabava por fazer tarefa da mesma maneira: lá no Porto Seguro, os professores tinham uma irresistível atração “pedagógica” por prova surpresa ou chamada oral...

Contudo, não me furto a pensar o direito, que não se confunde com a lei, que se resume a seu instrumento. Pensamento, dizia o poeta inglês, não paga imposto (Noite de Reis, I-3). Se ele conhecesse a voracidade fiscal do nosso governo ou mesmo meu filho, para quem pensar é muito cansativo, talvez refizesse a afirmação: “pensamento, se for contra a coroa, pode ser confiscado” ou “como é bom não pensar em nada e, depois, descansar”.

E, quando resolvo pensar a fundo a situação atual do direito, tenho a vontade de imitar meu filho quando o assunto envolve, por exemplo, direito penal, essa área tão importante no cotidiano das pessoas. Tomemos dois exemplos.

A Lei Maria da Penha, mais uma dessas legislações promulgadas no calor dos fatos, ainda que tenha seu reto propósito, muitas vezes, na prática, é um verdadeiro desafio à inteligência e ao bom senso.

A mulher agredida (em regra, covarde e repugnantemente) vai até o plantão do fórum e consegue uma medida de afastamento do agressor que convive com ela sob o mesmo teto. Algumas horas depois, a mesma vítima, na porta de sua residência, implora ao oficial de justiça que não dê cumprimento à medida, porque o agressor é o homem de sua vida e que seu amor por ele é incondicional.

Quando ouvi isso pela primeira (e última) vez, disse à distinta senhora que seu amor pelo agressor não era incondicionado, mas bem epidérmico: começava com beijos e abraços, passava pelos tapas e terminava com hematomas.

E, neste caso, como em outros iguais, minha ignorância era incapaz de entender, do ponto de vista humano (o jurídico já tinha comido poeira), esse fenômeno antropológico. Não é o foco destas linhas, mas a resposta passa pelo perdão. E alguém já disse que, se não existisse o perdão, nossa vida seria um inferno...

De qualquer forma, ao que parece e apesar dos constantes arrependimentos que os processos registram, nossa experiência foi feliz, tanto que a estamos importando para os países do primeiro mundo (tenho lá minhas duvidas sobre o acerto desta expressão nos dias atuais, ainda mais porque constato que a profecia de um amigo piadista toma, cada vez mais, a forma de realidade: se o Brasil não se tornar primeiro mundo, o primeiro mundo vai virar Brasil...).

A Lei de Tóxicos transformou-se num diploma da lei penal benevolente. Já não via muito sentido em dar sermão em usuário de classe média-alta, porque se o sujeito não ouvia nem o pai dele, quanto mais alguém que fizesse as vezes dele. Depois, a lei incrementou a figura de “doente” do usuário. Mas o vício não se reduz a uma questão médica.

Seus componentes fisiológicos reais são, na verdade, predisponentes, mas não condicionantes, ao contrário da opinião difundida por médicos e viciados e, logo, tratar uma questão essencialmente não médica como uma patologia piora a visão das coisas, ao invés de melhorá-la.

Agora, o “pequeno” traficante não precisa ir mais para a prisão, como se essa figura existisse numa realidade criminosa de total simbiose entre produtor, distribuidor, traficante, maus policiais e usuário, cada qual, de sua maneira e na escala própria, trazendo danos sociais e familiares, às vezes, irreversíveis.

Na essência, ambas as leis têm suas bases alienadas das realidades éticas do homem e da sociedade. As objeções aqui levantadas podem ser resumidas numa única questão: não haveria um ponto de apoio capaz de atribuir ao direito um novo relevo, baseado na adoção de um lugar de destaque para a reflexão da justiça e de seu fundamento axiológico? Será que a academia não poderia ensinar em pensar “a” lei e não “na” lei?

Deixo a pergunta para a reflexão do leitor, que já tem as informações essenciais para se viver neste mundo. Mas não basta tê-las. É necessário levantar a cabeça para pensar, para ver além delas, inclusive no direito, essa realidade tão cara e sensível para a sociedade. Do contrário, teremos vivido a vida “não examinada” da pesada sentença de Sócrates. Menos meu filho, que ainda tem uma vida inteira pela frente para mudar.

II – Pensar o Direito: ordem natural

A realidade histórica aponta que não há sociedade sem direito, nem direito sem sociedade. A existência de normas jurídicas, mais do que fundada numa obra da consciente vontade dos homens, resulta de uma necessidade natural: a vida em comunidade gera naturalmente uma ordem social, fato que pode ser observado mesmo nas sociedades de malfeitores. Não há sociedade humana sem uma ordem.

Como a política, a realidade e a disciplina que trata dos problemas do poder, a existência de normas jurídicas não foi fruto de um contrato social, mas decorre da natureza social do homem. E ele, como ser racional e transcendente, precisa de uma ordem, porém, não de uma ordem instintiva, como numa colmeia ou numa colônia de formigas, mas de uma ordem justa, aspiração esta inscrita no coração do homem e atestada por expoentes diversos como São Paulo e Rousseau.

A busca de uma ordem justa, que se dá por meio das leis, é fruto de uma construção humana voluntária no seio da interação social. Mas essa tarefa não é imune ao erro e, logo, o direito pode até tornar-se injusto, principalmente hoje, em que a noção de direito está, a nosso ver, na prática, concretizada pela ideia, cada vez mais cativante, de que a singela declaração de uma norma pelo poder estatal bastaria para a solução de um caso específico, o que, às vezes, pode não atender os ditames de justiça ali exigidos.

A ordem social, da qual o direito faz parte, ergue-se, também, sobre os alicerces de uma ordem natural, baseada na constante e perpétua vontade de justiça existente na natureza humana. Basta visitar a entrada de um fórum durante o período de sessão de júri de algum homicida mais cruel que a média: é só o que se lê nas faixas e cartazes. De todos os tipos e com todos os erros de português. Mas com o mesmo sentimento.

Aristóteles já observou que há um direito justo por natureza, de valor universal e imutável. É justo como o fogo “que queima do mesmo modo na Grécia e na Pérsia”. Assim como nas leis da física, onde a vontade do homem é irrelevante (se eu tentar voar, vou cair pela ação da lei da gravidade), também tomam parte, na ordem natural do universo, alguns princípios imutáveis de ordem social e jurídica.

O respeito pela vida, pela integridade física e moral das pessoas, pela liberdade e pela propriedade, o direito à legítima defesa e à restituição do estado anterior no caso de dano, enfim, estes e outros que não precisariam de um código escrito para ter vigência.

É bem verdade que nem sempre foram reconhecidos ou respeitados por muitos povos durante a história da humanidade. Mesmo Roma, no auge de seu esplendor imperial e de sua riqueza jurídica, mantinha a instituição da escravidão regulada por leis, como se fosse algo trivial. Mas a trivialidade, verdadeira transgressão à ordem natural, cobrou seu preço: quando ela cessou e a economia descambou, foi o começo do fim.

No século XX, não foi diferente. Um regime que se baseava no purismo de sua raça e que, por isso, matava os “impuros” indiscriminadamente, só podia terminar no mal absoluto que Hannah Arendt bem descreveu e, ao cabo, na própria ruína.

O outro regime, que almejava virar a mesa da natureza intrínseca das relações econômicas, da natureza imperfeita do homem e da própria dinâmica natural das relações em sociedade, constituindo-se num projeto insano de reengenharia social, seguiu o mesmo fim. Não adianta: toda sociedade que insiste em desrespeitar àquela ordem natural não resta imune à sua queda.

E, à medida que a história ensina os acertos e desacertos nesse assunto, o direito vai incorporando novos princípios ao patrimônio jurídico da humanidade e demonstrando a vitalidade e a perenidade de sua ordem natural. Como, de resto, nas leis físicas: até que Copérnico apresentasse o sistema heliocêntrico, passaram-se séculos e mais séculos. Mas, nem por isso, a astronomia caiu em descrédito depois.

Hoje, divulga-se a ideia de direito como sinônimo exclusivo de segurança jurídica. A segurança jurídica é como um guarda-chuva: protege, mas obriga. Abriga, mas é um incômodo. No limite, o mundo dos chapéus-de-chuva é um universo cinzento de pessoas sem rosto. Abrigadas, seguras, mas, como a sociedade da qual fazem parte, desprovidas de vitalidade e de personalidade.

III – Pensar o Direito: a crise do Direito

Muito se fala sobre a necessidade de reforma do Poder Judiciário. Por vários motivos: algumas propostas, sabiamente e com acerto, apontam a morosidade como sua principal deficiência. Outras, demonstrando certa ignorância, indicam “os privilégios” dos magistrados como a causa de seu retrocesso, sugerindo seu fim.

Por fim, outras propostas, em nome da democratização, defendem uma maior aproximação do direito aplicado com o chamado “direito achado na rua”, o que reduz o direito ao puro fato, visto como algo axiologicamente neutro. Porque “o direito existe para a vida e não a vida para o direito”, como pode ser lido na decisão do STF sobre a união estável homossexual.

Se a reforma é inevitável, as soluções invariavelmente são estruturais e acabam não atingindo o verdadeiro cerne da crise do direito: a de seus fundamentos, que traz prejuízo à paz social e ao respeito à pessoa humana.

Essa situação atinge os mais variados domínios da lei, mas, sobretudo, algumas áreas particularmente sensíveis, como hoje pode ser visto na biotecnologia, na família e na prática democrática. Nos últimos anos, sucessivas medidas legais, com um ar de corrida vertiginosa para o abismo, debilitam o homem no reduto mais íntimo e sagrado de sua dignidade.

Vida, identidade genética, integridade física, procriação, doença, morte, paternidade, filiação, educação, sexualidade, afetividade, valores, privacidade, entre outros temas, estiveram na pauta do legislador, o qual assumiu a condição de líder daquilo que muitos julgam ser uma rebelião oficial contra a ordem natural das coisas. Uma espécie de revolta dos códigos contra a natureza das coisas.

A crise dos fundamentos do direito é a crise do positivismo, essa linha de pensamento que reduz o direito válido ao direito escrito. Assistimos, naqueles campos da vida, à uma série de imposições de decisões humanas subjetivas e de escolhas culturais completamente desconectadas de padrões objetivos e naturais, de ordem moral, política e jurídica. Os mandatários do povo e os juristas tornaram-se a medida de todas as coisas, versão moderna da medida de Protágoras.

O estudo do direito tornou-se mais um estudo da lei do que o estudo do justo. Basta analisar o currículo da matéria de filosofia do direito em qualquer faculdade, com raras exceções: não se aprende metafísica ou mesmo antropologia e a ética natural é substituída pela ética normativa. Nas outras matérias, invariavelmente, o aluno é adestrado (acho que este verbo resume bem o que penso) a fazer a singela justaposição do fato ao texto da lei.

O direito, no campo das relações políticas, virou muito mais uma espécie de gestão convencional de interesses da maioria do que a realização responsável do bem comum. Recordo-me da máxima de Hobbes, aquele que nos rebaixou a uma matilha tresloucada de lobos, para quem a lei não procede da verdade, mas da pura autoridade.

Então, imaginem um louco e não um médico comandando o hospício: foi justamente a relação entre Hitler e os alemães, como bem descreveu Eric Voegelin na obra homônima. De fato, uma nação que, com respaldo legal, começa por queimar livros, só pode terminar matando pessoas...

A ideia de Estado de Direito resume-se à uma débil concepção de salvaguarda da legalidade vigente a todo custo. A democracia, cuja restauração custou a vida de milhares de soldados no teatro de combate da segunda guerra mundial, hoje, prevalece sob uma roupagem formal, processual e técnica, ao preço do sacrifício de valores fundamentais em prol do império da ditadura cega do princípio da maioria. Deixou-se seduzir pelo relativismo ético e, a cada dia que passa, converte-se na antessala de um novo totalitarismo.

Não creio que essa reviravolta tornará os homens mais felizes, isto é, mais plenamente pessoas. Ou mesmo se a sociedade continuará a ser um fórum ou se transformará num coliseu. Desta maneira, a política falha na missão de promover a “vida boa”, na clássica expressão do direito romano, de seus membros.

Escolher deliberadamente pelo antinatural é a forma mais rápida e segura para garantir uma boa colheita de sofrimentos humanos. Devido à ganância humana, alguém já observou, acertadamente, que o homem deixou de ser o pastor do ser para se converter em ovelha do rebanho do ter. Pausa para reflexão do fundamento do direito que queremos. Afinal, reportar-se ao fundamento é reportar-se ao ponto em que a verdade oferece-se a si mesma como sua razão.

IV – Pensar o Direito: resgate de sua essência

Há vários modos de se pensar o direito. Uns pensam que o direito resume-se às decisões do Estado ou do burocrata de plantão. Outros pretendem que o direito seja extraído exclusivamente daquilo que é usual fazer-se ou não fazer-se em sociedade, reduzindo-o a uma espécie de chancelador formal e obrigatório.

Outros veem o direito apenas como uma ciência de deduções: se a união estável homossexual foi admitida, vamos estendê-la para o casamento e, depois, permitir o divórcio, a separação e a possibilidade de adoção. Afinal, a premissa deve ser vista de maneira neutra e todas as consequências dela nada mais são que o resultado de um desdobramento lógico.

Mas todos eles partilham da ideia fundamental de que o direito não é regido por princípios fundamentais que decorrem da natureza das coisas. Só reconhecem o direito dos códigos e das leis escritas. E recomendo-lhes especial atenção com os parlamentares, porque, de um dia para o outro, mudam os códigos e eles ficam sem saber mais nada. Com uma penada do legislador, bibliotecas inteiras vão parar no sebo.

Mas o direito não se esgota no papel escrito. O direito dos códigos deve refletir o direito da ordem natural das coisas, concretizando seus princípios segundo as circunstâncias sociais e históricas. Devem caminhar de mãos juntas e não em direções opostas.

E o leitor mais cético poderia perguntar quais seriam os tais princípios. São numerosos, motivo pelo qual eles estão também escritos nas leis, reforçando sua extrema importância, mas seu reconhecimento não dependeria necessariamente disso, pois o estudo do direito, ao longo dos tempos, vai incorporando-os sob o nome de princípios gerais de direito.

Eis alguns deles: não faça aos outros aquilo que não quer para si; ninguém pode ser condenado sem prévio processo; na dúvida, o réu deve ser inocentado; todo homem é capaz de assumir direitos e obrigações; os contratos são obrigatórios e a vontade dos contratantes deve ser pautada pela boa-fé e pelo equilíbrio contratual; a família é a célula social elementar e o excesso de exercício do direito consiste em seu abuso.

Este fenômeno de empobrecimento do direito, uma realidade tão rica e que o povo romano soube captar de maneira tão exemplar, a ponto de, junto com a filosofia grega, sustentar as bases da civilização ocidental até hoje, é fruto da somatória de muitas linhas de pensamento – nominalismo, empirismo, racionalismo, subjetivismo, relativismo, voluntarismo, imanentismo – que impregnam profundamente a cultura de nossa sociedade.

Não cabe aqui analisar o significado de cada um daqueles fatores nem o complexo processo histórico de formação e consolidação daquela forma míope de se ver o direito. Contudo, na base desse processo, estão causas de ordem religiosa (imanentismo, secularismo e ateísmo), de natureza moral (ligada a uma falsa ideia de liberdade e a consequente crise de valores) e deficiências sérias no ensino de filosofia e de direito.

A superação desta corrosiva doença não será feita por complexos expedientes de reengenharia político-jurídica, porque essa patologia é radical e, como uma metástase, atinge a essência, os fins e os fundamentos do ordenamento jurídico e se dissemina por todo o corpo da sociedade.

A depuração dessa forma deturpada de direito demanda um resgate das noções de justiça, de equidade e de prudência, elementos essenciais da ordem jurídica. Esta tem uma vinculação elementar à justiça, pois é dirigida à realização objetiva do justo concreto.

A equidade, por sua vez, opera como critério corretivo de adequação da solução justa ao caso concreto ou mesmo de moderação dos rigores da justiça. O direito romano já reconhecia que o máximo do direito é o máximo da injustiça.

A prudência, a virtude por excelência do jurista, é a sabedoria prática que o capacita para a decisão justa, segundo os princípios e normas que regem uma dada situação e em respeito às suas circunstâncias. A prudência também envolve o reto agir do legislador, na escolha das medidas legislativas e normativas mais convenientes.

Estes elementos, quando conjugados, produzem decisões que atendem aos princípios gerais de direito, à letra fria dos códigos e às peculiaridades do caso concreto. O direito romano foi um acabado exemplo disso: por intermédio do trabalho dos jurisconsultos, que talhavam suas sentenças com os instrumentos da justiça, equidade e prudência, criou-se uma série de soluções jurídicas de surpreendente perenidade. Porque, antes de aplicar o direito, eles o pensavam com a cabeça inteira.

V – Pensar o Direito: Direito e Filosofia

Quais são nossas obrigações uns para com os outros no âmbito de uma sociedade democrática? É justo taxar os ricos para ajudar os pobres? O governo pode criar mais um imposto específico para um serviço público marcado pela ineficiência, como a saúde? E “a mão invisível” do mercado livre realmente é capaz de regulá-lo com equidade? As virtudes que fomentam a paz e a solidariedade sociais podem ser estimuladas por ações estatais? Um governo pode subsidiar casais que tenham muitos filhos?

Como réu, posso mentir, num interrogatório, diante de um magistrado? Posso me submeter voluntariamente à condição de escravo de outra pessoa? O parlamentar pode legislar sobre moral? Quais os limites entre a igualdade e a desigualdade? A igualdade deve ser de oportunidades ou de resultados? A liberdade de expressão abrange os chamados discursos de ódio? As ações afirmativas afrontam o conceito de meritocracia? O serviço militar deve ser obrigatório? Podemos nos opor democraticamente à construção de minaretes islâmicos no solo brasileiro?

São questões práticas que, muitas vezes sem saber, inclusive meu crítico leitor, enfrentamos diariamente no trabalho, na academia ou mesmo em conversas familiares. Também são controvérsias políticas e jurídicas atuais que levantam problemas filosóficos mais profundos, os quais vêm sendo discutidos desde sempre e, na maioria das vezes, sem soluções definitivas ou apenas provisórias.

Por que tais estas e outras questões costumam ser tratadas aqui, por este colunista, há anos? Em regra, para trazer à superfície aquilo que se esconde por trás e que, em última análise, aponta para o que efetivamente está em jogo no debate público daqueles assuntos e que não se resume na matéria do repórter que, por mais importante que seja, não vai além das informações essenciais sobre o problema dado. E, excepcionalmente, para fazer aflorar um espírito crítico um tanto mais contundente em alguns leitores...

Aqui não é o local adequado para ficar ressuscitando as clássicas obras de filosofia e de política. Existem as academias para isso. Mas, numa linguagem acessível e sem perder a erudição, podemos e devemos aproveitar este precioso espaço para mostrar a atualidade do pensamento dos autores daqueles clássicos: justapor aquele mundo de controvérsias, em nossa vida pública, à luz da filosofia e do direito e, assim, estimular o espírito crítico no cidadão.

Os grandes filósofos e juristas sempre ajudaram a iluminar aquelas controvérsias de uma forma ou de outra. Isso ajuda a informar pontos obscuros ou mesmo impensáveis no trabalho de esclarecimento daqueles assuntos controversos. E, talvez, já fosse o bastante. Mas não é.

A busca pelo aprofundamento daquelas controvérsias, pelos caminhos da filosofia e do direito, importa em alguns riscos, porque a filosofia e o direito, ao mesmo tempo em que nos ensinam, também nos confrontam com aquilo que já sabemos e que tem sua origem no lar, na escola, na igreja ou no senso comum, transformando o familiar em estranho.

Esse processo de mudança não necessariamente acrescenta mais dados à controvérsia, mas nos provoca a ver a mesma controvérsia sob um ângulo novo e diverso. E, quando o conhecido torna-se alheio, ele nunca mais será o mesmo. Alguém, com acerto, já disse que o autoconhecimento é como a inocência perdida: nunca mais se esquece. Filosofia e direito refletem a história de uma civilização, mas também são o espelho da história de cada um de nós.

Meu duro crítico acha que, se tais questões nunca foram resolvidas por Platão, Aristóteles, Locke, Kant, Rawls e outros grandes pensadores, quanto mais por nós, pobres intelectuais medianos. Então, o melhor é desistir da reflexão moral e simplesmente comer, beber e viver. Se por um lado, tais controvérsias parecem insolúveis, por outro, elas são inevitáveis, porque vivemos algumas soluções para tais questões diariamente.

Por fim, faço-lhe uma advertência: seu confortável e evasivo ceticismo garante-lhe um lugar de descanso para o pensamento, no dizer de Kant, mas não é capaz de saciar a inquietude de vossa razão. E deixo uma sugestão: caso continue achando que o direito e a filosofia são um bom passatempo intelectual, então, por favor, vá fazer um MBA...

VI – Pensar o Direito: Justiça, Filosofia e virtude

Finalmente, tive a oportunidade de julgar meu primeiro processo denso, em provas e argumentações, sobre dano moral decorrente de alienação parental. A alienação parental consiste, segundo o texto legal, “na interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.

No caso concreto, o pai tinha abandonado afetivamente o filho durante toda a infância e adolescência e, em razão disso, o filho teria sido moralmente afetado pela longa ausência paterna, o que justificaria uma indenização pelos danos daí decorrentes. Prefiro não comentar sobre a possibilidade da falta de afeto ser quantificada em dinheiro, mesmo com o intuito de se realizar uma compensação pela dor sofrida.

Mas sobre ética da virtude, porque, na sentença, além dos argumentos legais, tive que buscar argumentos filosóficos e morais para criar uma ideia de pai virtuoso e, depois disso, cotejá-la com a conduta do pai faltoso no caso concreto. Teria sido muito mais difícil, se não fosse por uma obra chamada “Justiça – o que é fazer a coisa certa”, de Michael Sandel, professor da Universidade de Harvard.

Na instituição de ensino superior ao qual estou vinculado, o Instituto Internacional de Ciências Sociais, pertenço a um grupo de professores que desenvolve uma atividade chamada “Escola do Pensamento”, uma espécie de núcleo docente sobre filosofia do direito. No começo do ano, esta instigante obra foi objeto de estudo em conjunto.

Admito que, há anos, não lia algo excelente sobre a noção de justiça, apresentada de forma erudita e acessível. O autor expõe com rara desenvoltura as qualidades e os defeitos de vários sistemas éticos e de teorias da justiça, por meio da metodologia do estudo de caso, com acentuado destaque para o utilitarismo de Bentham, para a moral categórica de Kant e para a equidade de Rawls.

Segundo o autor, estas três abordagens da justiça falham por tentarem submeter a justiça a uma camisa de força da pura neutralidade, sem que possa emitir juízos morais, já que uma abordagem transforma a justiça e os direitos a uma questão de cálculo e não de princípio, a outra supera esse problema, mas peca pela maximização da liberdade das pessoas e a última submete a justiça à noção de consenso hipotético.

Para o autor, a justiça é invariavelmente crítica, porque é inseparável de concepções divergentes de mundo e de vida. Mas a justiça não é apenas a forma correta de distribuir as coisas. Diz respeito também à forma certa de avaliar as coisas que, segundo o autor, importa em voltar na história uns 2.500 anos e resgatar a noção aristotélica de ética da virtude, a ética que envolve o cultivo social de hábitos bons e preocupados com o bem comum e que julga as coisas segundo seus fins naturais.

Por exemplo, na questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o autor conclui que “não podemos nos basear nas ideias da não discriminação e da liberdade de escolha. Para decidir quem pode qualificar-se para o casamento, devemos raciocinar no sentido do propósito do casamento e das virtudes que ele honra. E isso nos conduz ao contestado terreno moral, no qual não podemos permanecer neutros em relação às concepções divergentes da vida boa” (p.321).

É impossível renunciar aos nossos juízos de valor, quando eles estão aí, diariamente, nas entrelinhas de nossas interações sociais. E também na sentença que mencionei acima: fundamentar um abandono afetivo, de uma relação de pai e filho, na letra fria da lei, num mero conjunto de direitos e obrigações normativamente estabelecidos, alheio à relação ética naturalmente exigível segundo os fins dessa mesma ligação, equivaleria a permanecer neutro ante a vitalidade desse vínculo.

O filósofo não faz a barba e a barba não o filósofo, já dizia um amigo de faculdade. O direito não é a lei e a lei não é direito. A justiça é o fim do direito. O leitor, então, perguntaria como fazer prevalecer a ética da virtude nos dias de hoje.

Recordo-me das palavras de Mika: “Lá de onde eu venho nós sempre fazemos uma reverência quando alguém faz uma pergunta fascinante. E quanto mais profunda for a pergunta, mais profundamente a gente se inclina. (...) Quando você se inclina, você dá a passagem e a gente nunca deve dar passagem para uma resposta (...), porque a resposta é sempre um trecho do caminho que está atrás de você. Só uma pergunta pode apontar o caminho para a frente (in Ei! Tem alguém aí?; Jostein Gaarder; Companhia das Letrinhas; pp.27-28)”. Com respeito à divergência, é o que penso.


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br).”

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