quarta-feira, 12 de setembro de 2012

“Ética moderna


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


I - Ética moderna: ética sem moral?

Num momento histórico marcado pelo declive das utopias e pela fragmentação social e cultural, alguns autores cunharam a expressão “éticas sem moral” para se referir a várias propostas éticas, resumidas a meros estilos de vida, como a ética da virtude, a ética feminista, a ética ecológica ou a ética sexual que, mais além de suas óbvias diferenças, teriam em comum apenas o fato de relegar a um segundo plano a questão das normas morais universais.

Para estas abordagens éticas, a pretensão de afirmar normas morais universais (como o dever de justiça) estaria diretamente ligada com os fins da razão moderna e, hoje, num horizonte pós-moderno como o nosso, já não teria muito sentido, pois só existe espaço para o desenvolvimento de perspectivas particulares sobre o bom, o belo e o verdadeiro. A moral, esse conjunto de normas universais, está morta.

Com algumas exceções, há pensadores, como Lèvinas, que mostram claramente que as condições pós-modernas abrem perspectivas de uma experiência de imperativos morais absolutos. Mas, olhando em volta, a maioria conclui, um tanto frivolamente, como Lipovetsky, que vivemos numa era marcada pelo “crepúsculo do dever”, o que significa dizer que deixamos de reconhecer a obrigação de unirmos a algo que não seja a nós mesmos.

No melhor dos casos, caberia abraçar uma causa particular e dedicar a ela uma vida inteira. Assim, por exemplo, justificaria se opor à secular opressão contra a mulheres, mostrando os preconceitos sexistas incorporados em muitas práticas correntes e hábitos sociais, sugerindo, em seu lugar, a adoção de condutas e expressões de linha oposta.

Caberia ainda criticar o excessivo foco das éticas atuais em temas de justiça ou mesmo tomar consciência da tirania com que a humanidade tratou a natureza durante séculos e propor, a partir daí, um novo modo de relacionamento com ela. Também haveria espaço para advertir que as ações têm sempre lugar em contextos particulares e que, logo, as orientações para a prática do bem deveriam ser tiradas a partir de tais situações, sem qualquer pretensão universal de sentido de bem, o que poderia minar a espontaneidade da conduta da pessoa.

Sem dúvida, pode-se criticar essas visões sobre o assunto, sugerindo que não há realmente ética sem moral, termos que, em última instancia, aludem a uma mesma realidade, a realidade do homem em sociedade. Mas esse não é ponto da questão. É outro.

Observo que a degeneração da moral, entendida como um conjunto de normas universais, válidas para todos os homens, independentemente de sua cultura, religião ou tradições, é indicativa do processo de individualização no qual estamos profundamente imersos, acompanhado de um generalizado achatamento do horizonte ético e que, segundo o caso concreto, adota perfis bem diversos.

No caso das gerações menos jovens, pode-se ver que esta degeneração da moral está muito relacionada com a perda do horizonte ético-político moderno que acompanhou a derrubada das utopias políticas do século passado. Com a queda dos ideais coletivos que guiavam a fé do homem moderno no progresso irrestrito, localizando a esperança no futuro, a atenção passou a se voltar para o presente mais imediato e fugitivo da sociedade de consumo, numa busca incessante de gratificação dos desejos individuais.

Derrubadas as esperanças modernas, boa parte delas secularizações redutivas da esperança religiosa, pareceria não haver mais nenhum motivo para se estimular a atitude de aperfeiçoamento profissional contínuo, atributo do trabalhador moderno, sobre o hedonismo do consumidor pós-moderno.

Na melhor das hipóteses, é suficiente um curso, altamente profissional, de gestão das emoções e dos conflitos no trabalho, a fim de saber lhe dar com o desgaste físico e psíquico do dia a dia e vencer as emoções negativas, que tanto prejudicam nossas relações sociais e familiares, colocando em perigo nosso próprio bem estar. Contudo, seus efeitos não são duradouros se não se impregnam no caráter da pessoa, ou seja, se não se tornam bons hábitos.

No caso das gerações mais jovens, que cresceram nesse ambiente cultural, não se pode falar propriamente em crepúsculo do dever, porque a noção de dever apenas tomou parte no horizonte de suas vidas no momento das tarefas escolares, quase sempre realizadas em nome de uma obscura promessa de êxito individual futuro. Em casa, sequer ouviram algo sobre isso. A ética dessa geração apresenta-se como uma ética de bons sentimentos que, com um certo trabalho, valeria a pena reconduzir para uma ética de virtudes, porque orientada para a forja de sua individualidade.

Esses apelos – a forja do caráter para os mais jovens e o aprimoramento das ferramentas de gestão profissional para o menos jovens – exercem sempre um certo atrativo, mais que o recurso do respeito ao outro ou ao bem comum, especialmente num contexto cultural fortemente narcisista como o nosso. Cabe a cada um de nós refletir como concretizar o melhor caminho para o retorno à uma ética virtuosa.

II - Ética moderna: flexibilidade como virtude

A vida contemporânea é marcada por um alto grau de mobilidade e de contingência. Observo isso no cotidiano das inúmeras profissões. Hoje, trabalha-se nessa empresa, amanhã em outra e, depois de amanhã, desempregado, o trabalho resume-se a buscar trabalho... Nada nos convida a planejar a longo prazo.

Nem mesmo as profissões tradicionais, como o médico e o advogado, em que as práticas mantêm-se razoavelmente estáveis, estão imunes a esse descompasso, porque elas parecem sofrer de um processo de erosão provocado pelas necessidades cada vez mais voláteis do mercado. Muitas vezes, o trabalho de um consultor vale mais que a do profissional com anos a fio de dedicação no mesmo ofício.

Ao contrário do trabalho artesanal, que requer práticas destiladas pelo tempo, no qual está implícita a forja de um dado caráter, a disposição mais necessária hoje é a flexibilidade, a capacidade de adaptação às constantes mudanças, uma postura que não parece ser compatível com deixar raízes. Eis o ponto.

Nessa “metamorfose ambulante”, anunciam-se possibilidades e perigos novos para as pessoas, sobretudo em relação ao tipo de relações humanas que podemos criar e consolidar. Talvez, a flexibilidade pudesse ser vista para além de um mero tópico de um manual de um curso de recursos humanos: a flexibilidade como virtude.

Aristóteles dizia que as virtudes ensinam-nos a comprazer e sofrer como é devido, mas elas representam principalmente disposições para a ação, que aperfeiçoam o indivíduo de modo a atuar ou reagir bem em certas circunstâncias. E os contextos que temos que identificar e realizar o bem que está em jogo estão sempre sujeitos a mudanças.

Diante de uma auditoria fraudulenta, posso admitir o erro, já que o bem em xeque é a saúde financeira da empresa, ou ficar me esquivando, apostando que a fraude não será notada publicamente. Mas se auditoria foi anulada por outro motivo, como compete a minha refazê-la, posso corrigir minha falta sem que ninguém perceba e sem a necessidade de tornar público o erro anterior. Ou solicitar minha demissão, sem ser preciso realizar novamente o mesmo trabalho. Ou, quem sabe, fraudá-la de novo, já que ninguém percebeu da primeira vez.

A flexibilidade só poderá ser realmente virtuosa, na medida em que não se confunda com um mero pragmatismo e que não se ponha a serviço de um outro fim que não seja unicamente o bem que em cada caso corresponde realizar.

Como membro de um grupo de pesquisa, realizo inúmeros trabalhos sobre os mais diversos assuntos, porque tenho uma capacidade acima da média, mas posso agir em prol do engrandecimento do grupo – o bem devido – ou por pura vaidade intelectual que crie minha “igrejinha” no mesmo grupo e que me sirva de trampolim para outras frentes profissionais. Esses dois últimos efeitos podem até surgir quando busco aquele bem devido, mas não foram os propósitos que moveram minha vontade, que privilegiou o interesse coletivo.

Nesse ponto convém lembrar que, quando o tecido moral social, que articula nossas obrigações mútuas, fica debilitado por uma série de razões – por exemplo, o atual laicismo reinante –, a prática da virtude resta mais difícil: hoje, quem está muito convicto sobre o caráter absoluto do direito à vida com argumentos de razões públicas, é tachado de religioso ou de fundamentalista...

A flexibilidade, aqui proposta como uma disposição para a ação, ainda contrasta, atualmente, com a cultura emotivista e imediatista que existe em nossa sociedade: uma cultura que se move no âmbito dos impactos emocionais, os quais, em alguns casos, nem se aproximam do senso comum de bons sentimentos, como a compaixão por um menor abandonado.

O importante é a “sensação” de viver aqui e agora e não aquilo que faz valiosa a vida a longo prazo, já que, para a atmosfera pós-moderna, o longo prazo não encerra promessa alguma, a não ser a morte. É a “cultura da adrenalina”, a qual, no fundo, é uma insuficiente resposta das pessoas a uma sede de sentido que todos temos e que nos impede de assimilar nossa vida como se fosse a de uma simples ameba.

Nessa cultura, a capacidade de resistir à crescente dor do esforço físico é o objetivo principal. O sujeito, diante da crise social de valores, busca moldar seu caráter pelo sofrimento físico, uma espécie de arrimo moral, pois o limite físico veio a substituir o limite moral que a sociedade não consegue mais lhe proporcionar.

Para se alcançar a flexibilidade como virtude, é preciso dar um passo adiante. A consciência não descansa num estado pragmático e emotivista: convém convidá-la a dar um passo rumo ao estado ético. Com respeito à divergência, é o que penso”.


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br). Acesso: 12/9/2012

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