Com a crise econômica desencadeada pela pandemia da Covid-19 e a disparada no IGP-M, proprietários e inquilinos que já haviam voltado à mesa para renegociar os valores de aluguel passaram a discutir a possibilidade de limitar o reajuste dos contratos, tanto residenciais quanto comerciais, à inflação oficial medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
O tema foi parar no Judiciário e no Legislativo. A mudança está proposta no Projeto de Lei 1026/21, que aguarda votação no Plenário da Câmara dos Deputados. O PSD também ajuizou no dia 21 a ADPF 869, no Supremo Tribunal Federal (STF), com o mesmo objetivo.
Especialistas ouvidos pelo JOTA, no entanto, consideram a proposta de reajuste pelo IPCA controversa, uma vez que ela pode ferir princípios como a autonomia da vontade das partes nos contratos particulares e da intervenção mínima do Estado nos contratos particulares (artigo 421 do Código Civil). Para a maioria deles, a saída para a crise é, antes de tudo, a negociação extrajudicial.
IGP-M acumula alta de 35,75% em 12 meses
Hoje, embora não seja obrigatório, o IGP-M é o indicador usado como praxe nos contratos de locação. Por ser sensível à alta do dólar e dos preços das commodities, como soja e milho, porém, esse índice tem crescido muito acima da inflação.
Para se ter ideia, o IGP-M acumulou alta de 35,75% nos 12 meses encerrados em junho. No mesmo mês de 2020, ele acumulava alta de 7,31% em 12 meses. Enquanto isso, o IPCA acumulou crescimento de 8,35% nos 12 meses encerrados em junho, ante 2,13% no acumulado em 12 meses em junho do ano passado.
A advogada Mariana Spoto Cobra, sócia de negócios imobiliários do escritório Mattos Filho, explica que a Lei de Locações (8.245/91) prevê que as partes podem estabelecer qualquer indexador para reajustar o aluguel. Tornar o IPCA obrigatório, a seu ver, pode ferir o princípio da autonomia da vontade das partes, segundo o qual estas têm o poder de estipular um contrato livremente.
“Esse tema vem sendo judicializado e o que vejo são decisões no sentido de manter o IGP-M, justamente tendo em vista princípios como a autonomia da vontade das partes. O que eu recomendo é a negociação entre locador e locatário, privilegiando justamente essa autonomia”, afirma Mariana.
Para o sócio do departamento de direito imobiliário do BNZ Advogados Associados, Rodrigo Ferrari Iaquinta, a fixação de um índice para o reajuste dos contratos de aluguel representaria a intervenção do Estado na dinâmica dos contratos.
“O contrato é a grande ferramenta que permite a autonomia privada, em que as partes podem negociar, estabelecer carência e descontos. As pessoas já têm a opção de aceitar ou não alugar o imóvel pelas condições oferecidas. Além disso, seria temerária a intervenção do Estado na dinâmica dos contratos”, afirma Iaquinta.
A seu ver, o que deve haver é a renegociação do contrato com fundamento em uma relação de causa e consequência. De um lado, como causa, a dificuldade financeira enfrentada por uma das partes. De outro, como consequência, a renegociação do contrato. “Não basta falar da pandemia. Eu preciso comprovar a efetiva causa e as suas consequências e, à luz disso, buscar uma conciliação primeiro no âmbito extrajudicial”, diz.
Donne Pisco, sócio-fundador do Pisco & Rodrigues Advogados, por outro lado, avalia que a fixação do IPCA como limite para o reajuste dos contratos do aluguel protegeria o inquilino e teria um impacto social positivo.
“A medida protege o inquilino, pois o IPCA, em regra, ao sofrer variações menores, limita a recomposição das perdas inflacionárias, atentando contra os interesses do locador. Sopesados os dois interesses contrapostos, a limitação tende a ter um impacto social positivo, por conferir mais previsibilidade e segurança jurídica à relação contratual, sem, no entanto, impactar negativamente o mercado”, ressalta Pisco.
Já o diretor institucional da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop), Luis Augusto Ildefonso, defende que a negociação seja realizada na ausência do Estado. “Quanto menos interferência estatal na economia, melhor. Então, a questão não é ser a favor do índice A ou B, mas da não interferência do Estado na relação”, afirma.
Merula Borges, especialista em finanças da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), também defende a negociação entre as partes. “O descolamento entre os índices que vemos hoje é incomum. Hoje, o IGP-M está bem acima do IPCA, mas no futuro essa lógica pode se inverter. Temos visto disponibilidade dos proprietários para negociar o valor do aluguel e entendemos que esse é o caminho ideal”, diz.
Reajuste e custo de vida
Autor do PL 1026/2021, o deputado Vinícius Carvalho (Republicanos/SP) defendeu, na exposição de motivos do projeto, a livre negociação entre locador e locatário, como prevê a legislação em vigor. A negociação, porém, deve se dar em termos reais, isto é, considerando a inflação do período do contrato.
“Sabemos que o locatário dificilmente terá poder de rejeitar o índice proposto. Então, estabelecemos como parâmetro o IPCA para o limite do valor que poderá ser celebrado entre as partes. É uma forma justa de reajuste de contratos, pelo real custo de vida, porém deixamos a porta aberta para a livre negociação”, escreveu. “Defendemos a livre negociação, mas também não podemos deixar o lado mais fraco dessa relação à mercê das regras do mercado”, acrescentou.
Na ADPF 869, o PSD afirmou que, diante do reflexo do modo de reajuste praticado atualmente sobre a economia nacional, o “problema demanda solução global”, e não apenas diante de casos específicos questionados no Judiciário.
“Soluções prescritas pela legislação civil, como a renegociação e a intervenção judiciária casuística, são insuficientes”, afirma o partido. “É notável a necessidade de provimentos dotados de generalidade e abstratividade, como os editados pelo STF no exercício do controle objetivo de constitucionalidade, pois aptos a oferecer solução com a amplitude global que convém ao momento presente”, defende a sigla na petição inicial.
Proprietário e inquilino: partes paritárias
Diferentemente da relação de consumo, em que se presume que o consumidor é parte vulnerável, em um contrato de aluguel proprietário e inquilino possuem condições paritárias. Iaquinta, do BNZ Advogados Associados, afirma que, com base nessa premissa, uma intervenção no indexador que reajusta o aluguel pode ser prejudicial tanto para uma parte quanto para outra.
“Com a pandemia e a disparada do IGP-M, veio essa discussão sobre preços abusivos, mas nos esquecemos que muitas pessoas vivem da renda da locação do seu imóvel”, afirma o advogado.
Mariana Spoto Cobra, do escritório Mattos Filho, apresenta dados do Sindicato da Habitação do Rio (Secovi Rio) e da Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis (Abadi) que mostram que, no Rio de Janeiro, 76,7% dos imóveis residenciais alugados são de pessoas que possuem apenas um imóvel. “Com isso, o que estamos falando é que a maioria desses proprietários conta com a renda do aluguel para sobreviver. Na maioria das vezes, a renda da locação é destinada a complementar a renda. Então, a discussão não deve ser apenas privilegiar uma parte em detrimento da outra”, diz.
Para Iaquinta, uma vez que a discussão chegue ao âmbito judicial, um dos fundamentos jurídicos para a revisão do valor do aluguel poderia ser a teoria da quebra da base objetiva do contrato, quando a base do negócio jurídico ou o seu equilíbrio é atingido por um fato superveniente.
“Toda vez que faço um contrato, por exemplo, pelo IGP-M, estou esperando que ele vai seguir com a variação dele tal qual vinha no momento em que assinei o contrato. Assim, esse aumento inesperado do IGP-M pode representar uma quebra da base objetiva do contrato, o que pode ser um fundamento para se discutir a onerosidade de um contrato”, explica o advogado.
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