quarta-feira, 17 de outubro de 2012


“A DEFINIÇÃO DO CRIME DE TORTURA NO ORDENAMENTO JURÍDICO PENAL BRASILEIRO

EDUARDO LUIZ SANTOS CABETTE
Delegado de Polícia, Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia, Mestre em Direito Social, Professor da Graduação e Pós-graduação da UNISAL nas matérias de Direito Penal, Processo Penal Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial.

“Eu não sei se eram
os antigos que diziam
em seus papiros Papillon já me dizia
que nas torturas toda carne se trai
e normalmente, comumente,
fatalmente, felizmente
displicentemente o nervo se contrai
…com precisão”
Vila do Sossego – Zé Ramalho

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Relatividade dos Direitos e Garantias Individuais – 3. Breve Histórico da Tortura e sua relação com o Processo e Direito Criminais – 4. A Definição Legal de Tortura – 5. O artigo 1º. da Lei 9455/97 em face do Princípio da Legalidade Estrita – 6. Formulando uma proposta – 7. Conclusão.
RESUMO: O presente trabalho versa sobre a problemática da definição do crime de tortura no ordenamento jurídico – penal brasileiro. Destaca-se a relevância do tema, considerando a natureza dos bens jurídicos postos em jogo, bem como a relação da prática nefasta da tortura com os modelos de processo e direito penal. Uma análise crítica da legislação vigente, sob o enfoque da questão da definição da conduta típica da tortura em face ao Princípio da Legalidade Estrita é levada a efeito, resultando numa proposta de reforma do modelo vigente com vistas à melhoria das normas legais que regulam a matéria.
PALAVRAS – CHAVE: Tortura – Direitos e Garantias Individuais – Direitos Humanos – Dignidade da pessoa humana – Processo Penal – Direito Penal – Definição de Tortura – Lei de Tortura – Princípio da Legalidade – Garantismo – Legalidade Estrita – Proposta de reforma legal”.
1 – INTRODUÇÃO
A prática da tortura, principalmente pelas instituições encarregadas da repressão penal, constitui-se em algo absolutamente inadmissível num Estado Democrático de Direito, além de configurar uma verdadeira contradição interna do sistema, pois que órgãos encarregados do cumprimento das leis agiriam de forma ilícita.
A tolerância com essa espécie de conduta não pode prosperar e torna-se uma grave omissão a falta de instrumentos adequados à sua prevenção e repressão.
A Constituição Federal é expressa em repudiar a prática da tortura e penas degradantes, desumanas ou cruéis no artigo 5º. III, XLIII e XLVII, bem como em proteger a integridade física e moral do preso (art. 5º., XLIX). Entretanto, quando da promulgação da Carta Magna, nossa legislação ordinária encontrava-se em descompasso com tal preocupação, pois que jamais havia sido elaborada qualquer normativa com o fito de proceder a uma definição do crime de tortura. O máximo existente era a menção em alguns dispositivos legais da palavra “tortura”, prevista, por exemplo, como uma qualificadora no crime de homicídio (art. 121, § 2º., III, CP) ou como agravante genérica (art. 61, II, “d”, CP). A própria Constituição Federal, embora mencionando o termo, não chegou a defini-lo, deixando essa missão ao legislador ordinário; procedimento, aliás, estritamente correto sob o aspecto da técnica legislativa.
Ocorre que o legislador ordinário tardou bastante a dedicar-se a esse importante e urgente mister, sendo objeto deste trabalho a análise expositiva e crítica do caminho até agora trilhado no ordenamento jurídico pátrio quanto ao tema da definição da conduta criminosa da tortura. Note-se que o bom termo dessa empreitada apresenta-se como um relevante aspecto na construção continuada do nosso pretendido Estado Democrático de Direito sob dois aspectos: primeiro considerando a necessidade de extirpar quaisquer práticas atentatórias à dignidade humana da realidade brasileira, sendo um dos instrumentos (embora não o único e nem o mais eficaz) uma legislação rigorosa; segundo, tendo em vista os cuidados exigidos na elaboração de qualquer norma repressiva, que deve obedecer estritamente aos princípios da legalidade e da taxatividade.
2 – RELATIVIDADE DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
É cediço na doutrina constitucional que mesmo os direitos e garantias individuais albergados pela Constituição Federal não comportam uma interpretação que os tome como absolutos ou jamais sujeitos a qualquer espécie de limitação. A regra é que todo direito é relativo.
Alexandre de Moraes assim manifesta-se sobre o tema:
“Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º. da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro ‘escudo protetivo’ da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como agravamento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito” 1
Portanto, ao indivíduo não é dado abrigar-se sob o manto protetor dos direitos e garantias, desde que haja no caso concreto um conflito com outros direitos ou interesses igualmente protegidos, coletiva ou individualmente. Apresentam-se aqui à colação princípios como os da proporcionalidade e razoabilidade a imporem certos limites mesmo ao exercício de garantias e direitos constitucionais, inclusive legitimando a atuação repressiva do Estado com instrumentos constritivos como o Direito Penal e o exercício do chamado Poder de Polícia.
Malgrado isso, quando se fala na inexistência de direitos e garantias individuais absolutos, certamente não pode ali ser agrupada a garantia contra a prática da tortura. Pode-se dizer que neste caso existe efetiva e excepcionalmente uma garantia absoluta. Não há como pensar numa situação que justifique a prática da tortura nos dias atuais. Isto seria um medonho retrocesso atávico a épocas (incrivelmente não muito distantes) em que a tortura era um meio de prova, inclusive legalmente regulamentado.2
Bobbio faz notar que embora impere a regra da relatividade mesmo entre direitos fundamentais do homem, há casos excepcionais de direitos que não comportam limitações ou confrontos, sob qualquer justificativa moralmente aceitável. Dessa natureza seriam para o autor dois direitos: o direito de não ser escravizado e o direito à garantia contra a tortura. Toma-se a liberdade de transcrever suas palavras:
“Inicialmente, cabe dizer que, entre os direitos humanos, como já se observou várias vezes, há direitos com estatutos muito diversos entre si. Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há a exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relação a esta ou àquela categoria, mesmo restrita, de membros do gênero humano (é o caso, por exemplo, do direito de não ser escravizado e de não sofrer tortura). Esses direitos são privilegiados, porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também fundamentais. Porém, até entre os chamados direitos fundamentais, os que não são suspensos em nenhuma circunstância, nem negados para determinada categoria de pessoas, são bem poucos: em outras palavras, são bem poucos os direitos considerados fundamentais que não entram em concorrência com outros direitos também considerados fundamentais, e que, portanto, não imponham, em certas situações e em relação a determinadas categorias de sujeitos, uma opção.”3
Nessa linha, as mais atuais concepções teóricas acerca do conceito de Justiça4 apontam para a imprescindibilidade de um quadro mínimo de garantias, tidas como pré – requisitos inalienáveis e absolutos para que se possa iniciar uma discussão sobre a Justiça Humana. Trata-se daquilo que se define como uma “estrutura básica” (“basic structure of society”) ensejadora da chamada “posição original” (“original position”), a partir da qual torna-se viável um projeto de Justiça.5 O mínimo exigível para que se possa sequer projetar ou pensar em uma sociedade justa é a existência de uma estrutura básica justa, propiciando um contexto social, econômico, institucional e legal no qual as pessoas tenham oportunidade de desenvolver-se livre e dignamente, enfim um chamado “contexto social de fundo” ou uma “justiça de fundo” (“background justice”) como a base sobre a qual se constrói um projeto de Justiça.6 Torna-se cristalino que um Estado que não oferta oportunidades igualitárias às pessoas ou que se omite e até permite a opressão dos indivíduos por seus próprios órgãos não é apto a sequer mencionar o termo Justiça como integrante de sua conformação. E dessa forma, a questão do repúdio e repressão à prática da tortura é um elemento bastante importante para a construção de uma sociedade justa.
3 – BREVE HISTÓRICO DA TORTURA E SUA RELAÇÃO COM O PROCESSO E DIREITO CRIMINAIS
Como já foi destacado anteriormente, a tortura não foi sempre objeto de repúdio na sociedade. Sem necessidade de remontar a épocas muito distantes podem ser constatados exemplos da tortura como meio legal de prova, visando a busca da verdade no processo ou então como espécie de pena cruel imposta para determinados crimes. Isso sem falar na tortura aceita ou tolerada informalmente pelo Estado e seus agentes, inobstante a imprevisão ou até mesmo proibição legais, que é, sem dúvida e lamentavelmente, uma realidade não só histórica como atual. Apenas a título ilustrativo é possível mencionar o fato recente de que a forçosa “necessidade da elucidação da autoria dos ilícitos penais” levou o Tribunal Superior do Estado de Israel a admitir “uma legítima pressão sobre os corpos dos suspeitos para compeli-los à admissão da culpa!”. Chegou ainda o mesmo Tribunal a reconhecer a “oportunidade” de castigar os “renitentes prisioneiros!”7
Foucault bem retrata o uso indiscriminado da tortura, especialmente como espécie de punição dirigida diretamente ao “corpo dos condenados” e caracterizada pela “ostentação dos suplícios” como uma demonstração do poder soberano ilimitado do governante sobre os súditos.8
Na obra clássica de Verri constata-se que o uso sistemático da tortura teve seu início a partir do século XI na Europa e atingiu seu ápice entre os séculos XIII e XVII, com o advento da Inquisição.9 A mitigação das penas e a condenação da tortura só vão ocorrer em finais do século XVIII e início do século XIX, com o surgimento do capitalismo industrial.10
Foi no século XVIII que os ideais iluministas submeteram à devida crítica a prática da tortura, seja por seu aspecto cruel de desrespeito ao ser humano, seja por seus efeitos deletérios práticos na aplicação da lei e na gênese de injustiças com condenações indevidas, baseadas apenas na força irracional.11
Em especial no bojo do processo a tortura tradicionalmente ocupou, em épocas pretéritas, um papel de relevo, pois vigorava um sistema de hierarquia das provas no qual a confissão era dotada de um peso enorme, chegando a ser considerada a “rainha das provas” (“Sistema da Prova Legal”)12. Assim sendo, quase tudo era permitido com o fito de obter a confissão do suspeito, a qual seria o grande fator de legitimação para a aplicação justa da reprimenda cabível. Além disso, o dogma por muito tempo imperante na teoria do processo, que dividia a verdade almejada em real e formal, estando a primeira adstrita ao processo penal, de índole pública, e a segunda ao processo civil, de caráter estritamente privado13, era um reforço à legitimação de quaisquer instrumentos destinados à procura dessa “verdade real” nos processos criminais.
Diversamente, na moderna Teoria Processual vige o “Princípio da Persuasão Racional ou do Livre Convencimento”, segundo o qual “o juiz forma livremente o seu convencimento, porém dentro de critérios racionais que devem ser indicados”. Especificamente no Direito Processual brasileiro vigora esse princípio, conforme determinam expressamente os artigos 131 do Código de Processo Civil e 157 do Código de Processo Penal.14
Ademais, a vetusta distinção entre verdade real e verdade formal no processo já não encontra guarida hodiernamente. Como bem destaca Flávio Martins A. Nunes Jr., “a verdade almejada pelo processo é uma ‘verdade processual’”, ou seja, uma “verdade judicial” encontrada por meio de uma atuação “processualmente legítima”, aproximando-se o máximo possível da certeza.15 E arremata a questão com a expressiva manifestação de Barbosa Moreira:
“(…) dizer que o processo penal persegue a chamada ‘verdade real’, ao passo que o processo civil se satisfaz com a denominada ‘verdade formal’, é repetir qual papagaio tolices mil vezes desmentidas”.16
Por sinal é de estranhar que esse verdadeiro mito17 tenha prosperado durante tanto tempo, quando autores clássicos desde antanho já haviam demonstrado à exaustão a impossibilidade da busca de uma chamada “verdade real” ou “certeza” no processo, seja ele de qualquer natureza (penal, administrativo, civil etc.), dada sua característica de reconstrução histórica de fatos passados.18
Portanto, é absolutamente inadmissível que se pretenda advogar uma busca da verdade “a qualquer preço” no processo. A conclusão inelutável é de que “o processo penal é presidido por insuprimível regra moral que submete o descobrimento da verdade a rigorosos princípios éticos. Certo é que a lisura moral e a ética efetivamente impõem restrições à busca da verdade e até formam uma espécie de barreira intransponível que prejudica a reconstituição fiel e integral dos fatos. Esse é o preço a ser pago em benefício da preservação de direitos e garantias individuais proeminentes. A questão se resolve em sede de política criminal e de acordo com a opção legislativa que emoldura o sistema processual, de sorte que se permite vedar a utilização de algum direito justamente para garantir-se a preservação de outro que a lei considere mais relevante”.19
Nem mesmo a gravidade do crime em apuração pode ter o condão de mitigar certos princípios. Railda Saraiva é enfática neste sentido ao afirmar que “a gravidade do crime em investigação ou em julgamento não pode autorizar a adoção de meios repressivos que repugnam consciência de país democrático, violando a dignidade da pessoa humana, reduzindo o valor da liberdade e da igualdade, e levando o Estado à imoral competição com os criminosos na prática da violência, em atos de desumanidade”.20
Em suma, ao menos sob o ponto de vista teórico, a legitimação da tortura no Direito Criminal não goza atualmente de qualquer credibilidade. Tratar pormenorizadamente da irracionalidade e crueldade que caracterizam essa espécie de conduta seria repisar desnecessariamente aquilo que já é notório desde as primeiras manifestações do iluminismo. Podemos afirmar com Bobbio que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de ‘justificá-los’, mas o de ‘protegê-los’. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.”21 A ingente e inadiável tarefa que se apresenta é, na verdade, a normatização desses direitos, seja em nível internacional, seja nos ordenamentos internos de cada Estado soberano. E ainda mais que isso, pois essa iniciativa já vem sendo implementada com considerável sucesso22, faz-se mister materializar o respeito a esses direitos fundamentais para que não se reduzam a previsões formais, despidas de eficácia prática no cotidiano da humanidade.
A criminalização da tortura no Brasil pela Lei 9455/97 em obediência à normativa constitucional e aos tratados internacionais é um passo em direção à normatização de um desses direitos fundamentais do homem, sua efetiva aplicação na repressão a essas condutas será uma materialização de seus preceitos formalmente previstos no diploma legal e ainda mais importante: a assimilação da relevância da extirpação da tortura de nossa realidade, ensejando ações concretas do Estado e dos próprios cidadãos, é que poderá reformular verdadeiramente a conformação de nossa sociedade, muitas vezes maculada pela violência individual e institucional.
4 – A DEFINIÇÃO LEGAL DE TORTURA
Um dos primeiros passos para a materialização do respeito à dignidade humana perfaz-se na positivação dos direitos e garantias. No caso da tortura, essa positivação pode ser constatada no ordenamento jurídico interno (normas constitucionais e ordinárias) e também no plano internacional.
Desde a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793 a preocupação com a dignidade humana tem sido objeto de convenções internacionais. Nesse diapasão, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, datada de 10.12.1948 estabelece em seu artigo V que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Na mesma linha, estabelece a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica), de 1969, em seu artigo 5º., n. 2, que “ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.
Entretanto, é a Convenção da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de 10.12.84, que vem, em seu artigo 1º., a conceituar tortura como:
“Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência”.
A Convenção Européia para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, em 1º..02.89, apresenta uma série de medidas regulamentadoras da fiscalização entre os Estados Membros com respeito a práticas ilícitas relacionadas com atos de tortura. Assim também o faz a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, datada de 1985 e ratificada pelo Brasil pelo Decreto 98.386, de 09.11.89, trazendo, porém em seu bojo uma conceituação própria de tortura:
“Art. 2º. – Para os efeitos desta convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação ou castigo pessoal, como medida preventiva ou com qualquer outro fim.
Entender-se-á também por tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou psíquica”.
No Brasil, desde a Constituição Imperial de 1824, exsurge uma declaração solene contra a tortura e outros tratamentos desumanos23, conforme se verifica da leitura do art. 179, § 19 daquele diploma:
“Desde já ficam abolidos os açoutes, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis”.24
Portanto, conforme assevera José Afonso da Silva, a condenação explicitada na Constituição de 1988 (art. 5º. III, XLIII, XLVII e XLIX) à prática da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos, já era prevista em constituições anteriores, bem como é parte integrante das “constituições modernas em geral”.25 Malgrado isso, é interessante observar, em consonância com o que destaca Adriana Ferrari, que “em nossas constituições republicanas nada é apresentado sobre a prática da tortura”26 (Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967). Tirante a manifesta repulsa a determinadas penas cruéis e uma menção direta no artigo 150, § 14 da Constituição Federal de 1967 quanto ao “respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário”, não se encontra realmente nenhuma referência explícita à tortura. Isso somente se opera com o advento da Lei Maior de 1988, através de seus dispositivos supra mencionados, os quais são, porém, normas constitucionais de eficácia limitada, precisando da atuação do legislador infraconstitucional para que seus efeitos se produzam.27 Em suma, a Constituição de 1988 deixou claro um princípio de repúdio à prática da tortura, mas reservou ao legislador ordinário a definição das condutas que a constituem, bem como a determinação dos regramentos legais tendentes à repressão e prevenção dessa grave violação dos direitos fundamentais.
Como já visto, embora houvesse a mera menção da palavra “tortura” em alguns dispositivos legais de nosso ordenamento jurídico, restava uma lacuna quanto à definição de um crime de tortura e até mesmo quanto à conceituação daquilo que consistiria em tortura para fins de interpretação da expressão existente em tais dispositivos vigentes (v.g. art. 121, § 2º., III, CP).
A primeira manifestação do legislador ordinário pátrio acerca da tipificação do crime de tortura deu-se com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90). Em seu artigo 233 o ECA previa como crime o ato de “submeter criança ou adolescente, sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura”. Também a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90), logo em seguida veio a equiparar o crime de tortura aos chamados crimes hediondos, em plena consonância com a disposição constitucional (art. 5º., XLIII, CF c/c arts. 1º. e 2º. da Lei 8072/90).28
Ocorre que nenhum dos dois diplomas sob enfoque chegou a estabelecer em que consiste a “tortura”, deixando-a sem a devida conceituação legal.29 Nessas circunstâncias a única solução seria tomar de empréstimo, para a interpretação das normas legais, os conceitos apresentados pela doutrina:30
De Plácido e Silva leciona de forma extremamente genérica que tortura “é o sofrimento ou a dor provocada por maus tratos físicos ou morais”.31
Hungria conceitua tortura como o “meio supliciante, a inflição de tormentos, a ‘judiaria’, a exasperação do sofrimento da vítima por atos de inútil crueldade”.32
Para Aníbal Bruno tortura consiste no “sofrimento desnecessário e atormentador, deliberadamente infligido à vítima”.33
Noronha conceitua o termo como o ato de “infligir-se um mal ou sofrimento desnecessário e fora do comum”.34
Finalmente, dentre outras diversas conceituações doutrinárias, Mirabete expõe que “tortura é a inflição de mal desnecessário para causar à vítima dor, angústia, amargura, sofrimento”.35
Verifica-se por um simples passar de olhos que mesmo as definições ofertadas pela doutrina são bastante vagas. Dessa forma, chegou-se a ventilar na doutrina e na jurisprudência a possibilidade de suprimento da lacuna da lei penal com uma definição de tortura inferida, por um processo de integração, dos tratados e convenções internacionais sobre o tema, firmados pelo Brasil. Para a interpretação do termo “tortura” poder-se-ia lançar mão das definições propostas, por exemplo, pelo artigo 1º. da Convenção da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, ou pelo art. 2º. da Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, inobstante o fato de que tais diplomas não tipificam crimes, mas são balizas, declarações de princípios para a elaboração de normas e execução de ações concretas internas pelos países signatários.36
Esse proceder estaria justificado porque os dispositivos de tratados e convenções internacionais integrariam a legislação brasileira, com suas conseqüentes irradiações e efeitos jurídicos. Há mesmo posições doutrinárias defendendo que esses tratados e convenções internacionais ingressariam em nosso ordenamento jurídico, no que se refere a direitos e garantias individuais, com força de normas constitucionais equiparadas às do artigo 5º., CF, inclusive com característica de “cláusulas pétreas” (art. 60, § 4º., IV, CF), por força do § 2º. do artigo 5º. da Lei Maior. Não obstante, em posição oposta, há quem defenda tratarem-se somente e sempre de normas ordinárias porque o processo legislativo para aprovação de emenda constitucional é completamente diferente e muito mais exigente do que aquele necessário à ratificação de tratados e convenções internacionais. Assim sendo, a referida equiparação burlaria o processo legislativo constitucional.37
Toda essa argumentação acabava apresentando efeitos ambíguos. Se por um lado possibilitava a aplicação dos dispositivos legais, viabilizando uma interpretação do termo tortura. De outra banda “o elastecimento do princípio da reserva legal, nele vislumbrando-se a possibilidade de interpretação dos textos penais segundo processo de integração, de analogia, ou à luz do ‘senso comum’, nada mais traduziria senão o desrespeito ao conteúdo ‘material’ da legalidade, legalidade essa cuja afronta fere, em igual medida e gravidade, direitos fundamentais absolutos”.38
A questão da aplicabilidade do art. 233 do ECA, mesmo carente de uma descrição pormenorizada daquilo que consistiria em tortura, foi exaustivamente discutida no STF, vindo à baila todas as linhas argumentativas acima mencionadas, inclusive a tese da inaplicabilidade do dispositivo por infração ao Princípio da Legalidade. Prevaleceu naquela corte superior, por apertada maioria (6×5), a tese da constitucionalidade da tipificação do delito de tortura pelo artigo 233 do ECA, quando o ato fosse perpetrado contra criança ou adolescente.39
A doutrina em geral, porém, não apoiou essa tese, chegando Alberto Silva Franco a qualificar de “absurdo” o entendimento de que o artigo 233 do ECA tipificava um crime de tortura no ordenamento jurídico brasileiro porque tratar-se-ia da admissão de um “tipo penal aberto” em flagrante violação ao Princípio da Legalidade.40 Em apoio a esse entendimento, Paulo de Tarso Dias Klautau, advoga a inconstitucionalidade da norma sob comento por infração ao art. 5º., XXXIX, CF e ainda ao art. 1º. do Código Penal. É de seu parecer que com a redação dada ao art. 233 do ECA o legislador desatendeu a princípios básicos exigíveis na elaboração de uma norma penal. Da forma como fez, acaba atribuindo “pela via do tipo aberto, a característica de crime a uma conduta que somente pode encerrar o tipo fechado”. Segundo o autor, a “natureza multifacetária da tortura” tornaria imperioso que seus delineamentos fossem “límpidos, claros, inequívocos, transparentes, cerrados, enfim, ‘numerus clausus’, para evitar a utilização da analogia incriminadora, vedada solenemente pelo Direito Penal”.41
Sob o enfoque do tema deste trabalho é forçoso reconhecer que realmente as previsões vazias até então operadas não serviam para dirimir qual seria a definição de tortura na legislação brasileira, muito simplesmente porque em nenhum momento “definiam” tal conduta. O máximo a que chegou o ECA foi prever um crime tratando da figura específica da tortura, mas sem delimitar o conteúdo daquilo em que ela consistiria. Em suma, a legislação existente sobre essa questão era extremamente tautológica, pois responderia à pergunta sobre o que é tortura dizendo: ora, tortura é tortura!
Toda essa celeuma somente teve uma pacificação com o advento da Lei 9455, de 07.04.97, a qual “define o crime de tortura e dá outras providências”, conforme estabelece sua ementa. Essa lei revogou expressamente o art. 233 do ECA (art. 4º., da Lei 9455/97) e processou à previsão do crime de tortura através do disposto em seu artigo 1º., incisos, alíneas e parágrafos :
“Art. 1º. – Constitui crime de tortura:
I- constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
§ 1º. – Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança, a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”.
A lei também prevê um crime específico para as autoridades que se omitirem diante das práticas acima elencadas (art. 1º., § 2º., da Lei 9455/97), com pena de detenção de um a quatro anos. No entanto, “esse delito, apesar de previsto na Lei 9455/97 não constitui crime de tortura”.42 No seguimento prevê formas qualificadas, aumentos de pena, regramentos sobre liberdade provisória, regime de cumprimento de pena e territorialidade, cujo detalhamento foge aos estreitos limites deste trabalho.
A partir deste ponto, a questão a ser discutida versa sobre a validade da conclusão de que, com o advento das normas supra transcritas da Lei 9455/97, ter-se-ia dado cabo do problema da falta de uma definição pormenorizada e taxativa das condutas que consistem em tortura, satisfazendo o Princípio da Legalidade e ensejando tanto aos operadores do direito quanto, principalmente, à população em geral, a tão almejada segurança jurídica no campo penal.
5 – O ARTIGO 1º. DA LEI 9455/97 EM FACE DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA
Dúvida não há que o artigo 4º. da Lei 9455/97 logrou pôr cobro a toda a polêmica reinante acerca da tipificação de um crime de tortura pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, mediante a revogação expressa do artigo 233 desse diploma. Mas, daí a concluir que a Lei 9455/97 promoveu uma definição adequada da figura criminosa da tortura, há uma longa e possivelmente invencível distância.
Na realidade a deficiência na técnica do legislador ao redigir as tipificações do crime de tortura, acaba por simplesmente trocar uma perplexidade por outra. Se a tipificação de um crime de tortura era duvidosa com relação ao artigo 233 do ECA, esta continua sendo bastante vaga em face às novas disposições da Lei de Tortura.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, tal qual outras leis ordinárias (Código Penal, Lei dos Crimes Hediondos) e a própria Constituição Federal, apenas utilizava a palavra “tortura” em um dispositivo, sem proceder a uma descrição, qualquer que fosse, ainda que singela ou genérica daquilo em que consistiria. Ora, o que faz de novo a Lei 9455/97? Procede a uma descrição segura, taxativa, pormenorizada do que seja tortura, de modo a evitar que tal conceito fique ao sabor de subjetivismos, do senso comum ou de idiossincrasias?
À vista da dicção do artigo 1º. acima transcrito a resposta só pode ser negativa. Ele realmente vai um pouco adiante em relação ao tratamento anterior sob comentário, pois descreve objetiva e subjetivamente condutas consistentes em tortura, coisa que não existia antes porque a lei, como já foi dito, se limitava a mencionar a palavra tortura sem qualquer esforço conceitual. Não obstante, o avanço descritivo foi pífio. Os contornos que são ali traçados não passam de um esboço iniciado, que não chega a definir as formas do objeto que pretende representar, de maneira que pode comportar interpretações que em nada se adequariam ao que realmente se destina. Isso porque as linhas traçadas existem e nesse ponto são melhores que uma folha em branco, mas são ainda insuficientes para a devida definição do objeto com absoluta segurança.
É interessante notar que a Lei 9455/97 efetivamente descreve condutas que constituiriam tortura, não versando esta crítica sobre eventual impropriedade do conteúdo da norma, mas sim sobre sua insuficiência descritiva.
A título ilustrativo, veja-se três afirmações que são estritamente corretas: “A população nova-iorquina é superior a 2000 habitantes”; “As palavras filosofia e farmácia derivam ambas de palavras gregas que começam com a letra pi”; e “O homem é um bípede sem penas”. Como foi dito, as três afirmações são absolutamente corretas, e, no entanto estão bem longe de precisarem algo, sendo, portanto errôneas em vários níveis apesar de sua correção. Pode-se dizer que nenhuma delas, embora verdadeira, consegue trazer à tona aquilo que tenta descrever. Será que de posse dessas afirmações corretas alguém pode ter formado uma idéia capaz de individualizar a população nova-iorquina, diferenciando-a de outras populações mundiais? Ou extrair um conceito de filosofia ou da arte farmacêutica? Ou, ainda pior, conhecer o homem em sua essência?43
Note-se que nas descrições típicas do artigo 1º. da Lei de Tortura pode-se encaixar uma infinidade de condutas, cuja configuração ou não de tortura não se dá pela inadequação à dicção legal, mas sim por uma análise meramente subjetiva, orientada pelo bom (ou mau) senso do intérprete. É claro que algumas condutas induvidosamente configuradoras da prática de tortura enquadram-se perfeitamente nas tipificações da lei, mas há certos atos que podem ser perpetrados e caberem muito bem nas definições legais, sem que justifiquem a qualificação de um crime de tortura.Exemplificando: submeter uma pessoa a uma sessão de “pau de arara” com choques elétricos para obter uma confissão, certamente teria abrigo na moldura do art. 1º., I, “a”, da Lei 9455/97. Quem negaria que isso é uma forma de tortura? Há constrangimento, emprego de violência e sofrimento físico, bem como a satisfação do elemento subjetivo consistente no desejo do agente de obter uma confissão da vítima. Por outro lado, quando um Policial Militar desfere um tapa no rosto da vítima a fim de obter informação sobre seus dados qualificativos, os quais se negou a fornecer durante o registro de uma ocorrência. A conduta também apresenta adequação ao tipo penal, tanto quanto a primeira. Apresenta todos os elementos necessários: há o constrangimento, o emprego de violência, sofrimento físico (afinal de contas é somente nos versos da canção popular que “um tapinha não dói” (sic)) e até o elemento subjetivo de obter uma informação da vítima. Há adequação típica à figura do art. 1º., I, “a”, da Lei 9455/97. Mas há mesmo o crime de tortura? Ou seria mais adequado o reconhecimento de um mero Abuso de Autoridade, previsto pela Lei 4898/65 em seus artigos 3º., “i” e 4º., “b”? Distinguir entre uma suposta adequação formal e outra material à lei não elide o fato de que a norma simplesmente não é capaz de individualizar ou determinar com segurança as condutas por ela abarcadas. Como já se disse alhures, a dicção da norma é correta, mas não possibilita ao intérprete um conhecimento seguro daquilo que pretende retratar.
A doutrina não deixou passar “in albis” as lacunas e atecnias da Lei 9455/97, especialmente no que tange à deficiente definição da conduta típica do crime de tortura.44 Efetivamente a descrição típica é muito genérica, criando o que se convencionou chamar de “tipo aberto”, gerador de insegurança jurídica e infringente do Princípio da Legalidade (art. 5º., II e XXXIX, CF e art. 1º., CP).
Quando se afirma que a descrição genérica da Lei 9455/97 infringe o Princípio da Legalidade, tem-se em consideração o conceito de “Legalidade Estrita” defendido pelo Garantismo Jurídico – Penal, de acordo com a formulação de Luigi Ferrajoli.45 Isso porque poder-se-ia argumentar que a mera previsão legal, ainda que genérica, dependente de complementação pelo intérprete por processos os mais variados, poderia satisfazer o chamado Princípio da Legalidade, desde que visto sob um prisma amplo.
Realmente, o próprio Ferrajoli opera uma distinção entre o que denomina de “Princípio da Legalidade Ampla ou de mera legalidade” e o “Princípio da Legalidade Estrita ou Princípio de Estrita Legalidade”. Para a satisfação do primeiro, não há necessidade de uma descrição semântica taxativa. Ao contrário, para obedecer ao “Princípio de estrita legalidade” é imprescindível a taxatividade descritiva das condutas incriminadas. Em suma, a mera legalidade determina que ao juiz é dado apenas reconhecer como delito àquilo que é predeterminado pelo legislador como tal. Já para a legalidade estrita, não basta que haja uma previsão do legislador para que o juiz possa reconhecer uma conduta como criminosa. Mister se faz que o legislador obedeça criteriosamente “uma regra metajurídica de formação da linguagem penal que para tal fim” lhe prescreve “o uso de termos de extensão determinada na definição das figuras delituosas, para que seja possível a sua aplicação na linguagem judicial como predicados ‘verdadeiros’ dos fatos processualmente comprovados”.46 Pode-se dizer que enquanto à mera legalidade basta a “conformidade formal às leis dos atos de produção normativa”, à legalidade estrita, além da conformidade formal, exige-se uma “conformidade substancial às leis dos significados ou conteúdos das normas produzidas”. Em suma, não basta que o legislador produza leis de acordo com o processo legislativo, mas é imprescindível que ele produza leis claras, taxativas, com descrições objetivas.É essa característica de determinação segura do conteúdo da lei penal que lhe empresta validade sob o aspecto “substancial”.47
Ferrajoli atribui essa submissão ao Princípio de estrita legalidade exclusivamente à lei penal. “Efetivamente, somente a lei penal, na medida em que incide na liberdade pessoal dos cidadãos, está obrigada a vincular a si mesma não somente as formas, senão também, por meio da verdade jurídica exigida às motivações judiciais, a substância ou os conteúdos dos atos que a ela se aplicam. Esta é a garantia estrutural que diferencia o Direito Penal no Estado ‘de direito’ do Direito Penal nos Estados simplesmente ‘legais’, nos quais o legislador é onipotente e, portanto, são válidas todas as leis vigentes, sem nenhum limite substancial à primazia da lei.” Daí deflui um axioma proposto pelo autor: “nulla poena, nullum crimen sine lege valida”.48
A lei penal só é válida no Estado de Direito quando obedece ao Princípio de Estrita Legalidade. Outra não poderia ser a conclusão, principalmente conhecendo o fato de que a teoria de Ferrajoli não se constitui de postulados estanques ou independentes, mas de uma “teia” de princípios que se complementam, integram e inter – relacionam.49 Sem a legalidade estrita seria inviável a efetividade de um outro princípio que norteia a teoria garantista, qual seja, o “Princípio da Jurisdicionariedade Estrita”, que consiste no entendimento de que também as manifestações judiciais e acusatórias devem ser fundamentadas de forma clara e taxativa, norteando-se necessariamente por leis que tenham essas características. Tanto na lei, como nas decisões judiciais e imputações deve-se evitar a “polissemia”, o uso de termos imprecisos, vagos. “O uso de palavras equívocas e de juízo de valor na descrição dos fatos imputados e na realização das provas representa, melhor, uma técnica de esvaziamento das garantias penais e processuais por parte dos juízes, não menos difundida do que a adotada analogamente pelo legislador na formulação das leis. E pode produzir a dissolução total das garantias, quando a indeterminabilidade das denotações fáticas se combina com a das denotações jurídicas: como quando uma qualificação legal vaga e/ou valorativa e/ou concorrente com outras (…) é predicada de fatos ou situações expressos, por sua vez, por termos vagos e/ou valorativos, porque se referem a períodos ou condutas vitais, a contigüidades genéricas, a inclinações, a prognoses de periculosidade ou a outras valorações do próprio julgador”.50
No campo penal a fim de satisfazer todas essas condições necessárias ao reconhecimento de um Estado de Direito, só há espaço para o Princípio da Estrita Legalidade. Olvidá-lo nessa seara, contentando-se com a mera legalidade, equivale à sua negação completa (do próprio “Princípio da Legalidade” em geral).
Há exemplos históricos desastrosos dessa negação absoluta acobertada por uma legalidade num sentido amplo:
Na Alemanha nazista uma lei datada de 28.06.1935 revogou o antigo artigo 2º. do Código Penal de 1871, que abrigava o Princípio da Legalidade penal, instituindo a seguinte normativa: “será punido quem pratique um fato que a lei declare punível ou que seja merecedor de punição, segundo o conceito fundamental de uma lei penal e segundo o são sentimento do povo. Se, opondo-se ao fato, não houver qualquer lei penal de imediata aplicabilidade, o fato punir-se-á sobre a base daquela lei penal cujo conceito fundamental melhor se ajuste a ele”. Outro exemplo pode ser encontrado no direito soviético nos anos seguintes à revolução. O Código da república russa de 1922 previu no art. 6º. que seria crime toda “ação ou omissão socialmente perigosa, que ameace as bases do ordenamento soviético e a ordem jurídica estabelecida pelo regime dos operários e camponeses para o período de transição em prol da realização do comunismo”. Chegou ainda a prever, em seu artigo 10, a analogia “in malam partem”: “em caso de ausência no Código Penal de normas específicas para cada um dos delitos, as penas ou medidas de defesa social se ajustarão aos artigos do Código Penal que contemplem delitos análogos por sua importância e qualidade”.51
Não há como pretender que a mera legalidade satisfaça a face garantista que legitima o Direito Penal enquanto inibidor de reações descontroladas e imprevisíveis (públicas ou privadas) face às condutas desviantes.52
Embora respeitando o entendimento daqueles que consideram que a “porosidade do conceito de tortura” teria sido extinta com a edição da Lei 9455/9753, tal assertiva não parece corresponder à realidade. Na verdade, o tratamento da matéria não logrou uma definição satisfatória da conduta típica, deixando quase que na mesma situação anterior os operadores do direito e juristas. Mesmo com o advento da Lei 9455/97, ainda tateamos uma definição do crime de tortura, ficando sua construção a cargo da doutrina e jurisprudência, que, com o tempo, poderão vir a formar uma noção mais segura a respeito do tema, através da análise dos casos concretos.É verdade que ao menos agora nosso ordenamento está dotado de uma lei que pune a prática da tortura, não mais permanecendo uma garantia constitucional a descoberto ou alijada da proteção necessária do ordenamento jurídico penal.54 Mas isso não é o suficiente, pois a proteção fornecida é falha e sob dois aspectos extremamente relevantes e fatais:
Em primeiro lugar a tipificação fluida pode levar ao reconhecimento da inaplicabilidade da norma por infração ao Princípio da Legalidade, conforme acima mencionado ou, no mínimo, a uma aplicação abrandada devido a sérias dificuldades de caracterização da infração penal nos casos concretos, sempre com sérios prejuízos à sociedade e à dignidade das vítimas desses atos cruéis.55
Além disso, se for feita vista grossa à indefinição do tipo penal, deixando de lado princípios básicos do Direito Penal moderno e aplicando indiscriminadamente a legislação falhada como se nada houvesse de errado; todo o prejuízo seria creditado também à própria sociedade, à dignidade das pessoas, desta feita aquelas ocupantes do pólo passivo de um processo criminal originado de fontes que olvidam conquistas seculares.
Nada mais se poderia esperar, senão tal fracasso, de uma legislação, como tantas em nossa realidade, elaborada de forma açodada, motivada por episódios isolados e em meio a comoções públicas, conforme expõe João José Leal:
“A primeira observação crítica, que deve ser feita a essa norma repressiva, refere-se ao atropelo que, mais uma vez, marcou o processo de discussão e de votação de uma lei integrante desse subsistema punitivo marginal ao Código Penal. Embora existissem, há muito tempo, projetos em tramitação no Congresso Nacional, a verdade é que a Lei 9455/97 foi discutida sumariamente e votada de forma acelerada, sob o impacto emocional causado pelo episódio da Favela Naval, em Diadema, no qual policiais militares constrangeram, espancaram inúmeras pessoas, abusaram da autoridade e causaram a morte de uma delas, durante uma blitze policial. Amplamente noticiado pelos meios de comunicação de massa, o fato causou enorme repercussão em todo o país e acabou motivando os congressistas a agilizarem o processo legislativo que culminou com a aprovação dessa lei”.56
Portanto, a questão maior subjacente a toda essa crítica quanto à insuficiência do conceito legal trazido à cena pela Lei de Tortura é aquela que diz respeito a uma “cultura” jurídica que é freqüentemente influenciada por uma tendência à elaboração de normas meramente simbólicas em resposta a motivações de fatos isolados, da pressão da mídia, da chamada “opinião pública”, de interesses eleitoreiros etc, mas tendo em último lugar (quando é que existe) o verdadeiro interesse social pelo “bem comum”, essa expressão tão “gasta” e banalizada. A grande pergunta a ser formulada é: quando vamos nos libertar de um “Direito Penal Simbólico” que apenas simula solucionar os mais diversos problemas, inclusive aqueles que não dizem respeito à seara criminal, e ingressar numa fase de seriedade não somente científico jurídica, mas também político – social?
6 – FORMULANDO UMA PROPOSTA
Talvez este trabalho não merecesse sequer o início se fosse resumir-se a uma série de críticas estéreis, apartadas de qualquer espécie de proposta construtiva ou reformadora de uma realidade apresentada como bem distante do ideal. Já prescrevia em tempos remotos o Abade Dinouart que “só se deve deixar de calar quando se tem algo a dizer que valha mais do que o silêncio”.57
É com o intento de valorizar esta fala, a fim de que supere o ingente valor do silêncio, pois a máxima acima contém de longe mais credibilidade do que o dito popular que afirma que “é melhor falar besteira do que ser mudo” (sic), que se pretende esboçar uma opção de tipificação mais segura e objetiva do delito de tortura, de forma que melhor satisfaça a legalidade estrita e enseje inclusive uma maior efetividade em sua aplicação prática pelos operadores do direito.
Não é missão fácil tipificar de forma segura e objetiva o crime de tortura, considerando o inevitável caráter multifário que pode assumir o rol de condutas a serem abarcadas. Mas não é somente neste caso que o legislador poderá deparar-se com tal dificuldade, devendo sempre procurar um método que possibilite o máximo possível de segurança ao futuro intérprete da norma. Se não for possível uma descrição estrita e exaustiva, deve buscar meios de fornecer balizas que possibilitem uma orientação segura ao aplicador do Direito. “Ao definir os crimes, a lei deve abranger todas as situações que deseja alcançar, descrevendo-as do modo mais claro possível”.58 (grifo nosso).
O ideal para a descrição de condutas típicas consiste na formulação casuística, especificando as ações ou omissões consideradas criminosas. Ocorre que nem sempre isso é possível em face da natural inviabilidade prática de que o legislador venha a prever abstratamente todas as condutas passíveis de ocorrerem na vida real. Atente-se para o fato de que, por exemplo, se a lei precisasse prever, uma a uma, todas as condutas consistentes em homicídio qualificado, “precisaria de centenas de locuções que expressem cada um dos casos possíveis e, por mais que se esforçasse, não alcançaria todas, pois a imaginação humana e o avanço tecnológico cada vez criariam novas formas graves de agressões. Seria impossível listar todas as hipóteses possíveis”.59
Em face dessa dificuldade seria sensato que houvesse uma conformação com a impunidade? Não. A obediência à legalidade, mesmo sob sua acepção estrita, não deve “engessar” o Direito Penal, subtraindo-lhe seu necessário dinamismo e eficácia. Defender a elaboração de normas claras não significa vedar o processo interpretativo que pode e deve dar vida ao Direito. Aliás, no campo da hermenêutica, de há muito foi alijada a máxima que afirma que “in claris cessat interpretatio”.60
Esse percalço deve conduzir o arquiteto da lei a projetar a norma de modo a descrever o número máximo de casuísmos, encerrando-os com uma fórmula genérica, a qual, embora aberta, terá para sua interpretação, de ser cotejada com os casos especificados detalhadamente antes. Ou seja, a parcela aberta da norma não se encontra isolada e, por isso, disposta a qualquer encaixe, mas sim conectada a uma série de descrições que irão conformar um limite razoavelmente determinado às condutas que comporta em seu bojo.
Nada mais que isso é o que faz o Código Penal nos casos de homicídio qualificado: “seleciona uma ou mais situações concretas, descreve-as minuciosamente e, em seguida, manda, por meio de uma fórmula genérica, que todas as situações análogas àquelas sejam como as concretas consideradas”. É o que se convencionou chamar de “interpretação analógica”.61
A tortura é também um caso que comporta uma infinidade de condutas, as quais podem inclusive multiplicar-se devido à prodigiosa imaginação humana ou mesmo ao desenvolvimento tecnológico. Seria uma ingrata missão pretender prever exaustivamente um rol de condutas configuradoras do ilícito de tortura. Uma missão não só ingrata, como também inexeqüível. É obvio que nem por isso pode-se optar, simplesmente, por desprezar tal categoria de ilícito, deixando-a de fora do ordenamento jurídico – penal, mormente em face dos ditames explícitos da nossa Constituição Federal (art. 5º., III e XLIII).62
Mas qual o caminho a ser trilhado para que não haja omissão quanto à criminalização da tortura e, ao mesmo tempo, prevaleça o respeito à legalidade estrita sob um critério de razoabilidade?
A proposta é que seja adotado procedimento similar àquele acima mencionado nos casos dos homicídios qualificados, ou seja, descrições de diversas condutas imagináveis casuisticamente e de forma bem determinada, fechadas por uma fórmula genérica, cujo complemento seria dado pela interpretação analógica, tendo por balizas os casos expressamente previstos pela lei.
O que acontece hoje, com a Lei 9455/97 é que apenas aquilo que poderia, quando muito, ser adotado como uma fórmula genérica é a única definição de tortura existente. Isso é insuficiente, pois o intérprete não tem nenhum critério fixo para decidir pela tipificação ou não de determinadas condutas no conteúdo descritivo fluido em vigor. As pessoas dessa forma permanecem reféns de subjetivismos, idiossincrasias e arbitrariedades incontroláveis, a prejudicarem potencialmente ora o indivíduo acusado da prática criminosa, ora o lesado por certas condutas, cuja tipificação fica ao sabor dos operadores do Direito.
E não constituiria uma tarefa tão difícil descrever uma boa gama de práticas consistentes em tortura, abarcando expressamente a grande maioria dos casos e servindo de norte à tipificação por interpretação analógica. Tanto que em parte já o fez o Médico Legista Carlos Delmonte, relacionando as seguintes práticas mais freqüentes de tortura: “1) pancadas, socos e golpes com objetos e sacos de areia, na cabeça, no dorso e genitais; 2) ameaças e humilhação; 3) aplicação de eletricidade em boca, orelhas, dorso, dedos, genitais, ânus e períneo; 4) venda nos olhos; 5) execução simulada; 6) testemunhar torturas; 7) asfixia por submersão (“submarino”); 8) isolamento por mais de 48 horas (confinamento); 9) restrição alimentar por mais de 48 horas; 10) restrição e impedimento de sono; 11) suspensão pelas mãos e pés em grandes dispositivos tipo roda (“bandeira”) ou em paus-de-arara; 12) estupro e outras violências sexuais, incluindo mutilação genital; 13) suspensão (“crucificação”); 14) queimaduras com cigarros, óleos e objetos quentes e ácidos e similares; 15) pancadas nas solas dos pés com varas ou similares (“falanga”); 16) contenção com cordas ou similares; 17) golpes simultâneos nas orelhas (“telefone”); 18) posição ou atitude forçada por horas ou dias; 19) arremesso de fezes ou urina; 20) administração forçada de drogas ou fármacos; 21) tração nos cabelos; 22) aplicação subungueal de agulhas; 23) privação de água e oferecimento de água suja, com sal ou sabão; 24) extração forçada de dentes; 25) impedimentos ou embaraços à evacuação de fezes e de urina; 26) impedimentos de cuidados médicos; 27) espancamentos diversos”.63
Tirante alguns ajustes (exclusões, inclusões, detalhamentos etc), seria um bom começo para um trabalho descritivo – exemplificativo de condutas que mereceriam a etiqueta de tortura, a serem posteriormente fechadas por uma fórmula genérica, na qual poderiam encaixar-se casos similares em gravidade e natureza olvidados pelo legislador.
Esta mesma técnica já foi utilizada pelo legislador brasileiro há muito tempo, além dos casos de homicídio qualificado, em situação bastante similar à da tortura, “mutatis mutandis”, para a tipificação pormenorizada da infração penal da “crueldade contra animais”. Ora, as semelhanças são bem maiores do que se pode imaginar por uma análise perfunctória. Tirante os elementos subjetivos diferenciados e os indivíduos atingidos pelos atos cruéis, trata-se, em ambos os casos de infligir sofrimento atroz a seres sensientes64, conduta esta multiforme.
O estatuto jurídico de proteção dos animais é incomparavelmente menos desenvolvido que aquele reservado aos homens. No entanto, no que tange à questão enfocada, a legislação que regulamenta os maus tratos a animais, quanto à técnica do legislador, supera de longe a nossa Lei de Tortura, podendo servir de paradigma para uma eventual reforma.
A referência é feita ao artigo 3º. do antigo Decreto n. 24.645, de 10 de julho de 1934. Esse diploma “constitui – ainda hoje – um dos mais completos instrumentos jurídicos de defesa dos bichos”65, elencando nos incisos do artigo sobredito nada menos do que trinta e uma condutas, afora seus desdobramentos, a configurarem maus tratos a animais. Essa velha normativa não foi revogada pelas leis ulteriores que trataram da matéria, servindo como elemento de integração ao elucidar o conteúdo de normas tais como a outrora contravenção de crueldade contra animais, prevista no artigo 64 da Lei de Contravenções Penais (Decreto – Lei 3688, de 03 de outubro de 1941), hoje erigida pela Lei Ambiental (Lei 9605/98 – artigo 32) à categoria de crime.66
De acordo com o exposto, verifica-se que a solução é possível e não só isso, tem sido tradicionalmente utilizada na elaboração de normas que apresentam dificuldades semelhantes em virtude da natureza multifária de seus objetos.
Destaque-se que a previsão de uma fórmula genérica final não constitui infração à legalidade e nem aplicação de analogia “in malam partem” no Direito Penal. Como já se disse, o Direito, em qualquer de seus ramos, deve ser dinâmico e jamais inflexível, sob pena de primar pela injustiça.
No campo penal, o excessivo apego à letra da lei motivado pelo temor do subjetivismo arbitrário, resultou em situações que beiram o ridículo, como no exemplo apresentado por Carlos Maximiliano quanto ao exagero que as luzes do século XVIII imprimiram em certos casos de interpretação apegada ao texto legal, visando extirpar a outrora atuação onipotente dos julgadores. Trata-se da restrição imposta ao termo “bigamia”, chegando-se a deixar de punir alguém que contraíra três ou mais casamentos.67
O mesmo Maximiliano esclarece que o Direito Penal é infenso à analogia “in malam partem” dada sua característica restritiva das liberdades humanas68. Entretanto, não admite confusão entre analogia e interpretação extensiva, conforme passagem que se toma a liberdade de transcrever:
“Do exposto, já ficou evidente não ser lícito equiparar a analogia à interpretação extensiva. Embora se pareçam à primeira vista, divergem sob mais de um aspecto. A última se atém ‘ao conhecimento de uma regra legal em sua particularidade em face de outro querer jurídico, ao passo que a primeira se ocupa com a semelhança entre duas questões de Direito’. Na analogia, há um pensamento fundamental em dois casos concretos; na interpretação é uma idéia estendida, dilatada, desenvolvida, até compreender outro fato abrangido pela mesma implicitamente. Uma submete duas hipóteses práticas à mesma regra legal; a outra, a analogia, desdobra um preceito de modo que se confunda com outro que lhe fica próximo.
A analogia ocupa-se com uma lacuna do Direito Positivo, com hipótese não prevista em dispositivo nenhum, e resolve esta por meio de soluções estabelecidas para casos afins; a interpretação extensiva completa a norma existente, trata de espécie já regulada pelo Código, enquadrada no sentido de um preceito explícito, embora não se compreenda na letra deste.
Os dois efeitos diferem, quanto aos pressupostos, ao fim e ao resultado: a analogia pressupõe falta de dispositivo expresso, a interpretação pressupõe a existência do mesmo; a primeira tem por escopo a pesquisa de uma idéia superior aplicável também ao caso não contemplado no texto; a segunda busca o sentido amplo de um preceito estabelecido; aquela de fato revela uma norma nova, esta apenas esclarece a antiga; numa o que se estende é o princípio; na outra, na interpretação, é a própria regra que se dilata”.69
Embora a analogia “in malam partem” seja vedada no Direito Penal, não subsiste o mesmo impedimento à aplicação da interpretação extensiva70, a qual é admitida pela maioria dos doutrinadores, desde que utilizada “cum grano salis” , excepcional e cuidadosamente, pois em regra as normas restritivas devem ser restritivamente interpretadas.71
No caso da tortura ou em qualquer outro em que se pretenda lançar mão da interpretação analógica ou extensiva, por meio do elenco de hipóteses casuísticas secundado por uma ou mais fórmulas genéricas, deve-se ter o máximo cuidado para não dar margem a ampliações indevidas. Ao intérprete caberá cingir-se à imprescindível semelhança, especialmente em grau de gravidade do atingimento do bem jurídico tutelado, com relação às condutas não expressamente previstas e eventualmente equiparadas. Outra não é a lição de Hungria ao asseverar que “toda vez que uma cláusula genérica se segue de uma fórmula casuística, deve entender-se que aquela somente compreende os casos ‘análogos’ aos destacados por esta, que, do contrário, seria inteiramente ociosa”. Adverte ainda o autor que a abstração desse “elementar raciocínio” pode levar a uma “elasticidade inteiramente aberrante” do sentido da norma.72
Na verdade, conforme ensina Carlos Maximiliano, dificilmente uma hipótese extrema pode gerar bons resultados. Não se deve impor invariavelmente à interpretação no Direito Penal ou em qualquer ramo do Direito, uma orientação restritiva, ainda que se trate de normas incriminadoras. O meio termo freqüentemente representa um ponto de equilíbrio satisfatório: “procure-se, com os recursos da hermenêutica, apreender bem o espírito do dispositivo; não se vá além das expressões da lei; porém, aplique-se na íntegra tudo o que nas mesmas se contém; nada de mais, nem de menos”. É a isso que o autor denomina “exegese extensiva por força de compreensão” ou “interpretação estrita”, a qual oferece “menos margem a equívocos e divergências”.73
Embora rejeitando, “em princípio” a interpretação extensiva na “inclusão de hipóteses punitivas”, Zaffaroni e Pierangeli parecem também admitir um grau funcional de elasticidade às normas penais, ainda que incriminadoras, desde que não seja infringido “o limite máximo da resistência semântica da letra da lei, porque isso seria analogia”.74
Por esses argumentos uma proposta de tipificação pormenorizada da tortura na forma acima delineada e tomando-se as cautelas devidas em sua operacionalização, apresenta-se como uma opção funcional e ensejadora de muito maior efetividade e segurança jurídica do que a atualmente apresentada pela Lei 9455/97.
CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho foi demonstrado que a tortura nem sempre foi proscrita dos ordenamentos jurídicos e, muito menos, prevista como crime. Essa é uma realidade que abarca também a história brasileira, pois é recente uma preocupação mais acentuada com o problema da tortura.
Valdir Sznick , citando Dionísyos Spinelles, apresenta três estágios pelos quais vem passando o enfrentamento do problema da tortura:
a) Tortura Legal – quando a tortura era regulamentada e fiscalizada de acordo com preceitos legais que a permitiam em certos casos.
b) Tolerância Informal – a tortura é aplicada sem apoio legal, contando, porém com certa condescendência social.
c) Período Proibitivo – apresentado como regra nos sistemas jurídicos atuais que aboliram e proibiram a tortura, inclusive chegando a incriminá-la em suas legislações (constituições e leis ordinárias).75
O Brasil encontra-se indubitavelmente no terceiro estágio, pois que a tortura é proscrita pela legislação, conforme dispositivos constitucionais (art. 5º. III e XLIII, CF) e penais (Lei 9455/97). Isso sob o ponto de vista formal é absolutamente verdadeiro, mas será que o é substancialmente? A tortura deixou de ser uma realidade em nossa sociedade? A tolerância informal deixou de existir? A Lei 9455/97 tem sido devidamente aplicada? As respostas a essas perguntas são certamente negativas. Como adverte Carnelutti, “a tortura (…) desapareceu teoricamente do processo moderno. Diferente é a questão de se desapareceu também de sua prática”.76
Deixando por ora de tratar de questões culturais, históricas, institucionais, políticas etc, que contribuem sobremaneira para a perpetuação da realidade indesejável da continuidade da tortura em nosso país, inobstante as regras legais existentes, cabe agora asseverar que um dos fatores que contribui de forma decisiva para a inoperância da Lei 9455/97 é sua redação deficiente no que se refere à definição do delito de tortura. Juntamente com outros diversos fatores já arrolados, essa deficiência da técnica legislativa gera uma divergência abissal entre a previsão legal do crime (criminalização primária) e a efetiva aplicação da lei penal (criminalização secundária)77. Por seu turno, tal ocorrência leva ao que os criminólogos denominam como o fenômeno da “cifra negra”, ou seja, um grande número de condutas criminosas que são perpetradas e não são reprimidas pelas agências incumbidas da aplicação da lei penal, gerando sensação de impunidade e chegando a constituir um indicador de “descriminalização” (formal ou informal).78
Isso decorre do fato de que os operadores do Direito sofrem uma inibição para a aplicação da lei penal quando seus dispositivos são demasiadamente abertos, tornando-se por demais duvidosa a tipificação correta. Note-se que, em Direito Penal, prevalece, em caso de dúvida, o Princípio do “Favor rei”.79 A eliminação dessa inibição natural e sadia, ao contrário de solucionar a questão, feriria mortalmente direitos fundamentais atrelados à segurança operada pelo Princípio da Legalidade.
Dessa forma o único caminho viável é a reforma legal, visando uma tipificação mais consentânea com o Princípio da Legalidade e os modernos postulados garantistas, proporcionando segurança aos cidadãos e eficácia punitiva aos infratores da lei penal. Afinal, a ninguém deve parecer satisfatório que todo o percurso trilhado para a construção de um sistema que proscreve e incrimina a tortura, em atenção a direitos humanos fundamentais, torne-se “uma daquelas batalhas que se travam para que tudo fique na mesma”, conforme as palavras desoladoras de Lampedusa.80”
Notas:
1. Direito Constitucional, p. 58. Neste sentido na jurisprudência: RT – STF 709/418; STJ – 6a. Turma RHC 2.777-0/RJ – Rel. Mi n. Pedro Acioli – Ementário 08/721.
2. Ver a respeito: Nicolau EYMERICH, Manual dos Inquisidores, passim. Anita Waingort NOVINSKY, A Inquisição, passim. E ainda: Carl SAGAN, O mundo assombrado pelos demônios, passim.
3. Norberto BOBBIO, A Era dos Direitos, p.20.
4. John RAWLS, Uma Teoria da Justiça, passim.
5. Nythamar de OLIVEIRA, Rawls, p. 14.
6. John RAWLS, Justiça como eqüidade – uma reformulação, p. 14.
7. Pedro Armando Egydio de CARVALHO, O Sistema Penal e a Dignidade Humana, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 24/169.
8. Michel FOUCAULT, Vigiar e Punir, p. 11 – 61.
9. Pietro VERRI, Observações sobre a tortura, passim.
10. Michel FOUCAULT, Vigiar e Punir, p. 69 – 116.
11. Ver sobre o tema os textos clássicos: Pietro VERRI, op. cit., passim. Cesare BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, p. 46 – 54.
12. Antonio Carlos de Araújo CINTRA, Ada Pellegrini GRINOVER, Cândido Rangel DINAMARCO, Teoria Geral do Processo, p. 313.
13. Hodiernamente essa divisão entre os Processos Civil e Penal, emprestando caráter privado ao primeiro e público ao segundo é absolutamente superada. O ‘Processo’ (em qualquer de seus ramos) tem caráter nitidamente público, não se devendo confundir o direito material pleiteado em juízo com o Processo enquanto ‘instrumento estatal’ que viabiliza a prestação jurisdicional. Neste sentido: Flávio Martins Alves NUNES JÚNIOR, Princípios do Processo e outros temas processuais, Volume I, p. 94 – 95. ‘A doutrina moderna, (…), refuta o caráter ‘privatista’ do processo, considerando-o instrumento público de pacificação social. (…) E não é só: a doutrina pátria moderna percebe que o processo (seja civil, seja penal) possui natureza pública, não importando qual o objeto em discussão’.
14. CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, op. cit.., p. 313.
15. Princípios do Processo e outros temas processuais, Volume I, p. 109.
16. Apud, op.cit., p. 112. Ver ainda: Francisco das Neves BAPTISTA, O mito da verdade real na dogmática do Processo Penal, p. 212 – 213. ‘Desenganadamente, a verdade que se persegue no processo penal, como no civil, é a verdade ética, ou verdade suficiente, pragmaticamente construída mediante argumentação, para pôr termo a uma contenda, a uma tensão oriunda da proposta punitiva do Estado, visante a atingir o imputado, sempre, em sua dignidade (com a desonra da reprovação pública) e, por vezes, em sua liberdade de locomoção. O deslinde desse conflito deve dar-se de tal forma que o povo, e sobretudo a comunidade jurídica, aceite a solução como satisfatória, ou, no mínimo, consiga compreende-la, conquanto dela discorde, em razão dos argumentos de sua fundamentação. Essa verdade, força é admitir, é formal, vale dizer, aceitável somente porque atingida com a observância de raciocínios gnoseologicamente válidos. Mas nem por isso é menos verdade.’
17. Francisco das Neves BAPTISTA, O mito da verdade real na dogmática do Processo Penal, p. 1 – 14.
18. Ver sobre o tema os clássicos: Francesco CARNELUTTI, As misérias do Processo Penal, p. 43 – 47. C.J. A. MITTERMAIER, Tratado da Prova em Matéria Criminal, passim. Nicola Framarino Dei MALATESTA, A Lógica das Provas em Matéria Criminal, passim.
19. Marco Antonio de BARROS, A busca da verdade no processo penal, p. 37 – 38.
20. A Constituição de 1988 e o ordenamento jurídico – penal brasileiro, p. 69.
21. Norberto BOBBIO, A Era dos Direitos, p. 24.
22. Os tratados internacionais e legislações acerca dos Direitos Humanos não são parcos e nem constituem novidade nos diversos sistemas jurídicos.
23. René Ariel DOTTI, Os Direitos Humanos do preso e as pragas do Sistema Criminal, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 42/264.
24. Tal manifestação constitui-se numa reação vigorosa contra a herança autoritária e cruel das Ordenações do Reino de Portugal que foram aplicadas no Brasil: Ordenações Afonsinas, de Dom Afonso V (1500 – 1514); Ordenações Manuelinas, de Dom Manuel, o Venturoso (1514 – 1603) e Ordenações Filipinas, de Dom Felipe II (1603 – 1824). Ibid., p. 264 – 265.
25. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 207.
26. Lei 9455/97 define o crime de tortura, In: www.geocities.yahoo.com.br/adri_ferrari , p. 2, em 17.04.2004.
27. Alexandre de MORAES, Direito Constitucional, p. 69.
28. Neste ponto é interessante anotar que quanto à terminologia alguns autores atribuem a nomenclatura de ‘crimes hediondos por equiparação ou equiparados ou figuras equiparadas’ à tortura, terrorismo e ao tráfico de entorpecentes, em face da dicção constitucional e ao sistema da Lei 8072/90 (v.g. Victor Eduardo Rios GONÇALVES, Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura, p. 2.). Há outros, porém, que preferem a denominação de ‘crimes hediondos constitucionais’ para tais figuras, considerando que a Constituição os teria dotado de tal qualidade de forma expressa e direta, deixando ao legislador ordinário a definição dos demais crimes que seriam etiquetados como hediondos, por isso denominados de ‘crimes hediondos ordinários’ (v.g. João José LEAL, Lei dos Crimes Hediondos ou Direito Penal da Severidade: doze anos de equívocos e casuísmos, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 40/160.).
29. Paulo Lúcio NOGUEIRA, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 304.
30. José de Farias TAVARES, Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 186.
31. Oscar DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, Volume 4, p. 1571.
32. Nelson HUNGRIA, Comentários ao Código Penal, Volume V, p. 167.
33. Direito Penal – Parte Especial, Volume I, Tomo IV, P. 81.
34. Edgard Magalhães NORONHA, Direito Penal, Volume 2, p. 23.
35. Julio Fabbrini MIRABETE, Manual de Direito Penal, Volume II, p. 72.
36. Sylvia Helena Steiner MALHEIROS, O Princípio da Reserva Legal e o crime de tortura na legislação brasileira, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 13/167.
37. Ver a respeito do tema: Flávia PIOVESAN, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, passim.
38. Sylvia Helena Steiner MALHEIROS, op.cit., p.170.
39. STF – Pleno – HC n. 70.389-5/SP, Rel. Min. Celso de Mello; j. 23.07.94, v.u. ‘EMENTA: Tortura contra criança ou adolescente – Existência jurídica desse crime no Direito Penal Positivo brasileiro – Necessidade de sua repressão – Convenções internacionais subscritas pelo Brasil – Previsão típica constante do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90, art. 233) – Confirmação da constitucionalidade dessa norma de tipificação penal – Delito imputado a policiais militares – Infração penal que não se qualifica como crime militar – Competência da Justiça comum do Estado – Membro – Pedido deferido em parte’. No mesmo sentido: HC 74.332-RJ, Rel. Min. Néri da Silveira, 24.09.96 – Informativo STF n. 47.
40. Crimes Hediondos, p. 63. Ver em contrário, afirmando a existência de descrição de conduta típica, apenas ensejando a necessidade de interpretação dos casos concretos pelo magistrado e avaliação de sua adequação ou não à conduta incriminada: Antonio Scarance FERNANDES, Aspectos da Lei dos Crimes Hediondos, In: Justiça Penal, p. 82. Textualmente: ‘(…) submeter a tortura é o mesmo que torturar. Há, portanto, uma ação, consistente em torturar prevista no Estatuto e que constitui o crime de tortura. Assim como matar constitui a ação que tipifica o crime de homicídio. Se o tipo é indeterminado, aberto, não especificando os elementos da ação de torturar e, por isso, ofende a regra constitucional da legalidade é outro problema. Difícil, contudo, afirmar que inexiste a afirmação no Estatuto do crime de tortura, pois, se não foi esse o delito aí definido, qual então teria sido o crime aí elencado?’
41. A tortura como crime autônomo: necessidade de tipificação, In: Estudos Jurídicos em homenagem a Manoel Pedro Pimentel, p. 325 – 326.
42. Victor Eduardo Rios GONÇALVES, Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura, p.95.
43. Exemplo ilustrativo inspirado na obra filosófica: Bruce V. FOLTZ, Habitar a Terra, p. 117.
44. Alberto Silva FRANCO, Tortura – Breves anotações sobre a Lei 9455/97, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 19/56 – 72. Mauricio Antonio Ribeiro LOPES, As crianças, a tortura, as leis e as salsichas, Boletim IBCCrim, 54/3. Eduardo Luiz Santos CABETTE, O Processo Penal e a Defesa dos Direitos e Garantias Individuais, p. 123 – 124.
45. Direito e Razão, passim.
46. Ibid., p.305.
47. Ibid., p. 305.
48. Ibid., p. 306.
49. Neste sentido: Antonio Magalhães GOMES FILHO, O ‘Modelo Garantista’ de Luigi Ferrajoli, Boletim IBCCrim, 58/6.
50. Ibid., p. 102.
51. Ibid., p. 309 – 310. Também mencionando o exemplo soviético, Zaffaroni e Pierangeli exemplificam com um caso real o curioso (ou trágico) uso que se fez da analogia: Tornou-se famosa uma sentença que, pretendendo condenar um camponês que realizara algumas circuncisões, e não encontrando tipificação legal adequada diretamente ao caso, acabou condenando-o por ‘aborto analógico’, fundamentando tal ‘decisum’ no fato de que teria agido em condições anti – higiênicas, e que, assim sendo, se equiparava ao crime de aborto, igualmente perpetrado em condições anti – higiênicas! Ver: Eugenio Raúl ZAFFARONI, José Henrique PIERANGELI, Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral, p. 337.
52. Paulo QUEIROZ, A Justificação do Direito de Punir na Obra de Luigi Ferrajoli: algumas observações críticas, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 27/143. ‘Para Ferrajoli, que define o direito penal como uma ‘técnica de definição, comprovação e repressão da desviação’, o único fim que pode e deve perseguir, legitimamente o Estado, por meio da pena, é a prevenção geral negativa. Mas não apenas a prevenção de futuros delitos, como sói enfatizar as doutrinas utilitárias tradicionais. Em seu ‘utilitarismo reformado’, com efeito, Ferrajoli dá especial ênfase à prevenção de penas informais, isto é, à prevenção de possíveis reações públicas ou privadas arbitrárias, que podem resultar da ausência ou omissão do sistema penal. Assinala, assim, que a pena não serve só para prevenir os injustos delitos, senão também os castigos injustos; que não se ameaça com ela e se a impõe só ‘ne peccetur’, senão também ‘ne punietur’, que não tutela só a pessoa ofendida pelo delito, e sim também ao delinqüente, frente às reações informais, públicas ou privadas. Confere-lhe (ao direito penal), portanto, uma dupla função preventiva, ambas de signo negativo: prevenção de futuros delitos e prevenção de reações arbitrárias, partam do particular ou do próprio Estado. Privilegia, porém, seu modelo de justificação do direito penal, essa segunda função, que considera como ‘fim fundamental’ da pena’. No mesmo sentido: Antonio Magalhães GOMES FILHO, O ‘Modelo Garantista’ de Luigi Ferrajoli, Boletim IBCCrim, 58/6. O autor esclarece que todos os princípios e axiomas garantistas enumerados por Ferrajoli ‘são barreiras, obstáculos à utilização indiscriminada da punição, cuja transgressão torna ilegítima a sanção penal’.
53. Neste sentido: Rodrigo TERRA, Breves apontamentos sobre a Lei de Tortura (Lei 9455/97), In: www.jusnavigandi.com.br , p. 3, em 17.04.04.
54. Eduardo Luiz Santos CABETTE, O Processo Penal e a Defesa dos Direitos e Garantias Individuais, p.124 – 125.
55. Aliás, será que não é esse um dos fatores contribuintes para a parca aplicação da Lei de Tortura pela Justiça Penal Brasileira?
56. Op. cit. , p. 166.
57. A arte de calar, p. 12.
58. Ney Moura TELES, Direito Penal, Volume I, p. 148.
59. Ibid., p. 149.
60. Carlos MAXIMILIANO, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 33. Segundo o autor trata-se de ‘afirmativa sem nenhum valor científico’ na atualidade. E com plena razão, pois o mero afirmar que uma dada norma é clara já consiste numa primeira interpretação dessa norma.
61. Ney Moura TELES, op.cit., p. 149.
62. Nesse ponto é interessante lembrar que há controvérsias na doutrina quanto à obrigatoriedade de criminalização de certas condutas devido às previsões constitucionais nesse sentido ou de sua expressa proteção, como é o caso da tortura, do terrorismo, dos crimes hediondos, da vida etc. Há entendimento quanto a essa obrigatoriedade quando um bem jurídico é constitucionalmente tutelado e mais ainda quando a própria Carta Magna determina expressamente sua criminalização. Ver neste sentido: Mauricio Antonio Ribeiro LOPES, Direito Penal, Estado e Constituição, p.115. De outra banda há posicionamentos quanto a tratar-se a normatização constitucional de um indicador do máximo permitido ao legislador para a defesa desses bens, mas não a imposição da seara penal necessariamente como único meio de proteção daqueles bens jurídicos. Sobre o tema disserta Janaína Paschoal, optando pela segunda orientação. Entretanto, não afasta a existência de ‘um mínimo irrenunciável’ a ser obrigatoriamente defendido pelo Direito Penal, como por exemplo, a vida. Apenas aduz que esse ‘mínimo irrenunciável’ não é pautado somente pelo fato de que certos bens jurídicos sejam tutelados constitucionalmente, mas por uma análise concreta da efetiva necessidade do apelo à ‘ultima ratio’ do Direito Penal para a sua proteção (um critério substancial e não meramente formal). Toma-se a liberdade de afirmar que o caso da tortura pode ser elencado nesse ‘mínimo irrenunciável’ não por força somente da tutela Constitucional (em especial o art. 5º., XLIII), mas por sua própria natureza a impor a repressão penal mais drástica dessas condutas, sob o risco de que a omissão ponha por terra os próprios fundamentos previstos no art. 1º., II e III, CF, descaracterizando nosso almejado Estado Democrático de Direito. Ver para maior aprofundamento: Janaina Conceição PASCHOAL, Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo, passim.
63. A perícia na tortura, Revista Justiça Penal, 5/ 21.
64. Hoje, no âmbito da chamada ‘Ecologia Profunda’ e dos movimentos de defesa dos Direitos dos Animais, denuncia-se que o tratamento diferenciado (cultural, jurídico, social etc) aos atos cruéis perpetrados contra animais e humanos, consiste num injustificável ‘antropocentrismo’, de modo que no que se refere à capacidade de experimentar sofrimento, todos os seres sensíveis merecem o mais elevado respeito, sejam homens ou animais. Ver a respeito por todos: Peter SINGER, Vida Ética, passim.
65. Laerte Fernando LEVAI, Direito dos Animais, p. 40 – 41.
66. Ibid., p. 42 – 44.
67. Op. cit. , p. 320. No mesmo sentido: Nelson HUNGRIA, Heleno FRAGOSO, Comentários ao Código Penal, Volume I, Tomo I, p. 93.
68. Op. cit., p. 322 – 323.
69. Op. cit., p. 214 – 215.
70. Quanto à terminologia é importante salientar que há autores que diferenciam interpretação analógica e interpretação extensiva, reduzindo a primeira expressão aos casos em que a lei lista descrições casuísticas e depois apresenta uma fórmula genérica abrangente, como no caso dos homicídios qualificados. E atribuindo à segunda (interpretação extensiva) casos em que a lei usa uma expressão ou palavra cujo conteúdo não abarca certas situações, mas esta seria a vontade do legislador (‘lex minus scripsit, plus voluit’). Outros estudiosos utilizam ambas expressões como sinônimas. Adeptos da primeira opção distintiva são v.g. : Nelson HUNGRIA, Heleno FRAGOSO, Comentários ao Código Penal, Volume I, Tomo I, p. 92 – 99. Flávio Augusto Monteiro de BARROS, Direito Penal, Volume 1, p. 20. Julio Fabbrini MIRABETE, Manual de Direito Penal, Volume I, p. 52 – 53. Fernando CAPEZ, Curso de Direito Penal, Volume 1, p. 35 – 36. Já na banda oposta, adeptos da sinonímia, encontram-se: Manoel Pedro PIMENTEL, O Crime e a Pena na Atualidade, p. 56. Damásio Evangelista de JESUS, Direito Penal, 1º. Volume, p. 52. José Frederico MARQUES, Tratado de Direito Penal, Volume I, p. 214 – 216. Francisco de Assis TOLEDO, Princípios Básicos de Direito Penal, p. 29. Fernando de Almeida PEDROSO, Direito Penal, p. 54.
71. Neste sentido: Ney Moura TELES, op. cit., p. 142 – 143. Nelson HUNGRIA, Heleno FRAGOSO, op. cit., p. 92 – 93. Fernando de Almeida PEDROSO, Direito Penal, p. 54. Francisco de Assis TOLEDO, Princípios Básicos de Direito Penal, p. 27-29. José Frederico MARQUES, Tratado de Direito Penal, Volume I, p. 215. Flávio Augusto Monteiro de BARROS, Direito Penal, Volume I, p. 20. Julio Fabbrini MIRABETE, Manual de Direito Penal, Volume I, p. 52 – 53. Damásio Evangelista de JESUS, Direito Penal, 1º. Volume, p. 52 – 53. René Ariel DOTTI, Curso de Direito Penal – Parte Geral, p. 248. Em sentido contrário, admitindo a interpretação extensiva ou analógica somente para os casos de benefício ao indivíduo, ver: Giuseppe BETTIOL, Direito Penal, p. 118 – 124.
72. Nelson HUNGRIA, Heleno FRAGOSO, op. cit., p. 97 – 99.
73. Op. cit. , p. 325.
74. Eugenio Raúl ZAFFARONI, José Henrique PIERANGELI, Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral, p. 176.
75. Comentários à Lei dos Crimes Hediondos, p. 232 – 233.
76. Francesco CARNELUTTI, Direito Processual Civil e Penal, Volume II, p. 186.
77. Alessandro BARATTA, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 129.
78. Raúl CERVINI, Os processos de descriminalização, p. 182 – 197.
79. Neste sentido: Nelson HUNGRIA, Heleno FRAGOSO, Comentários ao Código Penal, Volume I, Tomo I, p. 94. ‘No caso de irredutível dúvida entre o espírito e as palavras da lei, é força acolher, em direito penal, irrestritamente, o princípio ‘in dúbio pro reo’ (isto é, o mesmo critério de solução nos casos de prova dúbia no processo penal’.
80. Giuseppe Tomasi di LAMPEDUSA, O Leopardo, p. 52.





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