Aproveito
o caso da brasileira que colocou sua virgindade à venda numa espécie de reality
show de uma produtora australiana, para propor uma reflexão sobre o que, de
fato, pode-se vender na sociedade capitalista em que vivemos.
O fato de
uma moça querer vender sua virgindade talvez não possa mesmo ser capaz de
chocar ninguém. Vivemos uma época em que há um entorpecimento tal que
parece que fica difícil acontecer algo escandaloso. (Basta o exemplo da
banalização da violência e da criminalidade do dia a dia para demonstrar a
gravidade do problema). Daí que, neste artigo, a partir da proposta da
catarinense que se chama Catarina e que deu o que falar, pretendo focar o
mercado de consumo e sua incrível capacidade de criar comportamentos, sua
tremenda e oculta força para amoldar pessoas e impor normas.
Já referi
aqui nesta coluna o livro de Michael J. Sandel, cujo título é sugestivo: “O que
o dinheiro não compra”[i]. Quem lê o
livro vê que o dinheiro pode comprar quase tudo. (Há os que defendem que
possa mesmo comprar tudo). Aos moldes do livro, vou colocar uma questão:
“Tudo está à venda?”.
Pensando
na jovem catarinense, fica-se com uma tentação em responder que sim, que os
eventuais limites éticos que permitiriam que respondêssemos “não!” estão
perdidos. A importância do dinheiro na sociedade capitalista abertamente
colocada e também fixada como fundamento das relações instituídas, realmente,
estabeleceu um novo modelo normativo. Os lemas da sociedade em que vivemos são
bem conhecidos: “O dinheiro não traz felicidade, manda buscar” ; “O
dinheiro não traz felicidade, mas compra algo bem parecido”; “O dinheiro não
compra felicidade, mas prefiro chorar no carro a chorar no ônibus” e outras
bobagens do tipo, mas que dizem muito sobre o sistema. Por outro lado, não
resta dúvida de que ele é importante.
As
pessoas oprimidas pela falta do dinheiro olham à volta e depois de muito – ou
pouco – pensarem acabam descobrindo algo que possam vender dado ao alto grau de
permissividade para fazê-lo. Para ficarmos no tema da venda da virgindade
ou, tecnicamente, de parte do corpo humano – a possibilidade oferecida a um
homem de, penetrando a candidata, romper seu hímen – situarei os pontos, para
nossa reflexão, em alguns elementos do capitalismo que envolvem o corpo.
No livro “O mercado humano”, Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa apresentam um
panorama da enorme quantidade de casos de venda e compra de partes do corpo em
muitos países do mundo[ii] . Vários deles
são bem conhecidos e, inclusive, regulamentados em alguns lugares, tais como o
das barrigas de aluguel ou a venda do próprio sangue humano (algo permitido nos
Estados Unidos da América[iii]).
Berlinguer e Garrafa focam casos de venda de órgãos, mostrando o drama que
envolve vendedores desesperados e médicos e compradores inescrupulosos[iv]. O episódio da
catarinense, claro, está situado no campo da prostituição – tema também
abordado no livro dos dois autores. É do tipo de oferta do corpo às escuras. Um
“blind date” sexual em que a mulher não conhece seu parceiro; basta que ele
pague e aceite as regras previamente estabelecidas, como a própria Catarina
explica: “O comprador não pode levar outra pessoa, querer realizar fantasias
(sic…), usar brinquedo sexual, nada. Também é obrigatório o uso de camisinha e
só pode tirar a virgindade, nada mais. Conversar pode. Mas beijar, não. Beijar
não está no contrato”[v] .
(grifei o pedaço da fantasia, pois como pretendo mostrar é exatamente fantasia
– machista – que está sendo vendida).
Na
questão do uso e venda do corpo, a influência dos métodos capitalistas se
faz sentir quando as pessoas, ao se referirem a esse tipo de
transação, utilizam-se da expressão “mercado de órgãos humanos”, “mercado de
barrigas de aluguel”, “mercado de sangue humano” etc., o que é uma forma
simbólica de incorporar a transação, dando-lhe ares de normalidade, isto é,
apresentando-a como produto de consumo.
Acresço
aos exemplos acima outro citado por Sandel no referido livro: Uma mulher
de 30 anos do Estado de Utah no EUA, Kari Smith, mãe solteira de um
menino de 11 anos de idade que tinha problemas na escola, precisava de dinheiro
para a educação de seu filho. Em 2005, num leilão via internet, ela se ofereceu
para tatuar um anúncio permanente na própria testa para qualquer patrocinador
comercial que estivesse disposto a lhe pagar 10.000 dólares. Um cassino on
line aceitou a oferta. Apesar da resistência do tatuador – quem diria? –
Kari tatuou o endereço eletrônico do cassino na testa, virando uma espécie de outdoor
ambulante[vi].
Na maior
parte desses exemplos, o que os pesquisadores mostram é que se trata de gente
desesperada e necessitada. São pessoas muito pobres que vendem o próprio sangue
para conseguir trocados e continuar vivendo como der ou vendem o rim ou
alugam a testa! Mas, não deveria haver limites? Na venda de órgãos, há, e na de
sangue, também em vários lugares. E a existência de um mercado lícito ou
mesmo ilícito não seria capaz de estimular a venda aberta de qualquer coisa?
Será que basta existir compradores para surgir a oferta? Ou é o contrário?
Voltemos
ao caso do leilão da virgindade. Ao contrário do que mostram os autores nos
livros citados, não é o desespero que marca oferta de Catarina. Ao que consta,
ela não é uma moça que precise vender sua virgindade para sobreviver, como ela
mesma confirma: “O que eu posso te dizer agora é que o leilão, para mim, é
um negócio”[vii].
Aliás, diz mais que com o dinheiro que receberá pretende abrir uma Ong e
investir num projeto de casas populares para famílias pobres em Santa Catarina[viii].
A acreditar-se nas palavras dela, seria, então, um sacrifício o que ela se
propõe. Seria um sacrifício que vale a pena?
Dá para
desconfiar, pois como se pode ver das reportagens, ainda que ela pretenda
desmerecer o pagamento em dinheiro – polpudo, diga-se—há um claro interesse
pela fama, esse outro produto da sociedade de consumo, que criou as
celebridades e o culto às estas. Os chamados cinco minutos de fama são um
doença típica da sociedade capitalista contemporânea: “Quando deu certo –
o chamado para o reality show – , fiquei feliz. Eu era de uma cidade
pequena em Santa Catarina e um cineasta australiano me escolheu”[ix]
O caso é
complexo: Quem olha, pensa que ela não dá valor à própria virgindade ou
fisicamente falando, ao hímen que há de ser rompido. Não farei qualquer
consideração porque, naturalmente, somente uma avaliação sócio psicológica
poderia responder. E, talvez, ninguém tivesse nada a ver com isso não fosse um
detalhe: Catarina e os produtores do intitulado “documentário” tornaram a
oferta pública. Ela abriu mão de sua privacidade e, bem ao contrário, se
mostrou abertamente a todo o mundo. Aliás, era esse mesmo o propósito, pois se
trata de um leilão, uma oferta pública e ganha quem mais der.
Eu
pergunto: o que, de fato, Catarina está vendendo e o que os compradores
pretendem adquirir? Seria a “virgindade”? Ora, ‘virgindade” é um conceito
construído que tem base fisiológica e sócioculturais (o que faz variar
seu sentido, dependendo do local e momento da história). Do ponto de vista
objetivo, a virgindade pode ser definida como o atributo de uma pessoa que
nunca teve nenhum tipo de relação sexual, representada na mulher pela
existência do hímen intacto (o que pode eventualmente trazer problemas para
mulheres que não tenham hímen, embora nunca tivessem sido penetradas pelo
membro masculino).
Simbolicamente,
a virgindade emana a ideia de pureza, candura, da obra intocada. Na
sociedade de consumo, por isso, fala-se em CD virgem, DVD virgem, azeite virgem
ou extra virgem (quando referido à primeira prensagem) etc. Na religião cristã,
a Virgem Maria é o exemplo da pureza: a mulher santa que deu a luz sem ser
maculada.
Pergunto,
agora, como fazem os autores dos livros citados: Que mal há nisso? Se a
virgindade é dela, por que não pode vender? Nos outros casos, o aspecto
comercial mostrou-se bastante prejudicial por vários motivos. Não só porque são
sempre os oprimidos e desprotegidos que recorrem a esses estratagemas
insólitos, como também porque enfraquece o sentido moral que deveria nortear as
ações humanas e que deveriam servir de sustentação ao mercado – qualquer tipo
de mercado.
No caso
de venda de órgãos, Berlinguer e Garrafa contam que um dos primeiros processos
judiciais para punir a prática foi desenvolvido na Grã-Bretanha contra um
médico (Raymond Crockett) por ele ter transplantado para quatro pacientes
ingleses os rins de outros quatro cidadãos turcos recrutados como doadores
recompensados ou remunerados. Na sentença, o Juiz deixou claros os malefícios
do ato para todos: “A tragédia pessoal e profissional de V. S, dr. Crockett,
é que o seu comportamento desacreditou profundamente a prática do transplante
renal, que havia sido encorajada por V. S. através de suas atividades na
Grã-Bretanha”[x]
Na
questão da venda de sangue, Sandel apresenta um estudo feito pelo britânico
Richard Titmuss em 1970 para mostrar a relação entre venda e doação[xi].
Ele comparou o sistema em vigor no Reino Unido, onde todo o sangue para
transfusão é doado com o dos Estados Unidos, onde parte é doada e outra parte é
comprada por bancos de sangue comerciais de pessoas dispostas a vendê-lo.
Titmuss
comprovou, através de dados, que o sistema britânico de coleta de sangue
funciona melhor que o americano. O modelo de mercado livre para compra e venda
de sangue leva à escassez crônica, ao desperdício, a custos mais altos e a
maior risco de contaminação. Mas, ele também apontou os problemas de ordem
ética: os bancos de sangues lucrativos nos EUA recrutam boa parte de seus
vendedores em bairros pobres e favelas; pessoas desesperadas para obterem algum
dinheiro.
Há uma
redistribuição do sangue dos pobres aos ricos, um efeito perverso e imoral.
Titmuss diz, e com razão, que transformar o sangue em mercadoria corrói o
sentimento de obrigação de doar sangue, diminui o espírito de altruísmo e
solapa a relação de doação, que é uma característica ativa da vida social. E os
dados comprovavam que, por causa da existência de um mercado de compra e venda
de sangue, o que se observava nos EUA era um decréscimo do número de
doadores. “A comercialização e o lucro com o sangue vêm afastando o doador
voluntário”[xii].
Como pondera Titmuss, a partir do momento em que começam a encarar o sangue
como um produto que pode ser vendido e comprado, as pessoas perdem um pouco de
seu senso de responsabilidade moral pela doação. A compra e venda de sangue
desmoraliza a prática da doação gratuita.
Então,
para concluir, retorno ao caso da Catarina. A oferta é de um produto imaterial,
uma fantasia machista: a virgindade que será violada. Espanta mesmo que, em
pleno século XXI, algum homem pague e muito para ter essa experiência, desse
modo frio e calculista. E, se existe algum produto material, ele é o hímen que
será rompido. Daí, então, há também uma espécie de serviço: o direito a
seu rompimento. Caso típico de oferta que fazem todos os dias as prostitutas,
com a diferença de que não se trata de rompimento, mas apenas de
penetração.
Qual o
alcance desse tipo de oferta? Talvez passe em branco e, como acontece com a
maioria dos “famosos de cinco minutos”, logo logo não se tratará mais do
assunto. Realmente. Todavia, o problema da oferta remanesce e deveria nos fazer
pensar. Seu caráter machista expõe o que há de pior nesse modelo: A ideia de
que a mulher vale por sua virgindade e que sua violação é um prêmio muito
especial, algo que já devia ter sido extirpado do imaginário social masculino e
feminino, pois mantém em vigor um tabu indesejado (a virgindade) e o
preconceito de que a mulher deve sempre apresentar-se virgem para seu homem”.
Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/blogdorizzattonunes/blog.
Acesso: 11/10/2012
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