quinta-feira, 11 de outubro de 2012



Aproveito o caso da brasileira que colocou sua virgindade à venda numa espécie de reality show de uma produtora australiana, para propor uma reflexão sobre o que, de fato, pode-se vender na sociedade capitalista em que vivemos.
O fato de uma moça querer vender sua virgindade talvez não possa mesmo ser capaz de chocar  ninguém. Vivemos uma época em que há um entorpecimento tal que parece que fica difícil acontecer algo escandaloso. (Basta o exemplo da banalização da violência e da criminalidade do dia a dia para demonstrar a gravidade do problema).  Daí que, neste artigo, a partir da proposta da catarinense que se chama Catarina e que deu o que falar, pretendo focar o mercado de consumo e sua incrível capacidade de criar comportamentos, sua tremenda e oculta força para amoldar pessoas e impor normas.
Já referi aqui nesta coluna o livro de Michael J. Sandel, cujo título é sugestivo: “O que o dinheiro não compra”[i]. Quem lê o livro vê que  o dinheiro pode comprar quase tudo. (Há os que defendem que possa mesmo comprar tudo).  Aos moldes do livro, vou colocar uma questão: “Tudo está à venda?”.
Pensando na jovem catarinense, fica-se com uma tentação em responder que sim, que os eventuais limites éticos que permitiriam que respondêssemos “não!” estão perdidos. A importância do dinheiro na sociedade capitalista abertamente colocada e também fixada como fundamento das relações instituídas, realmente, estabeleceu um novo modelo normativo. Os lemas da sociedade em que vivemos são bem conhecidos: “O dinheiro não traz felicidade, manda buscar”  ; “O dinheiro não traz felicidade, mas compra algo bem parecido”; “O dinheiro não compra felicidade, mas prefiro chorar no carro a chorar no ônibus” e outras bobagens do tipo, mas que dizem muito sobre o sistema. Por outro lado, não resta dúvida de que ele é importante.

As pessoas oprimidas pela falta do dinheiro olham à volta e depois de muito – ou pouco – pensarem acabam descobrindo algo que possam vender dado ao alto grau de permissividade para fazê-lo.  Para ficarmos no tema da venda da virgindade ou, tecnicamente, de parte do corpo humano – a possibilidade oferecida a um homem de, penetrando a candidata, romper seu hímen – situarei os pontos, para nossa reflexão,  em alguns elementos do capitalismo que envolvem o corpo. No livro “O mercado humano”, Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa apresentam um panorama da enorme quantidade de casos de venda e compra de partes do corpo em muitos países do mundo[ii] . Vários deles são bem conhecidos e, inclusive, regulamentados em alguns lugares, tais como o das barrigas de aluguel ou a venda do próprio sangue humano (algo permitido nos Estados Unidos da América[iii]). Berlinguer e Garrafa focam casos de venda de órgãos, mostrando o drama que envolve vendedores desesperados e médicos e compradores inescrupulosos[iv]. O episódio da catarinense, claro, está situado no campo da prostituição – tema também abordado no livro dos dois autores. É do tipo de oferta do corpo às escuras. Um “blind date” sexual em que a mulher não conhece seu parceiro; basta que ele pague e aceite as regras previamente estabelecidas, como a própria Catarina explica: “O comprador não pode levar outra pessoa, querer realizar fantasias (sic…), usar brinquedo sexual, nada. Também é obrigatório o uso de camisinha e só pode tirar a virgindade, nada mais. Conversar pode. Mas beijar, não. Beijar não está no contrato”[v] .  (grifei o pedaço da fantasia, pois como pretendo mostrar é exatamente fantasia – machista – que está sendo vendida).
Na questão do uso e venda do corpo,  a influência dos métodos capitalistas se faz sentir  quando  as pessoas, ao se referirem a esse tipo de transação, utilizam-se da expressão “mercado de órgãos humanos”, “mercado de barrigas de aluguel”, “mercado de sangue humano” etc., o que é uma forma simbólica de incorporar a transação, dando-lhe ares de normalidade, isto é, apresentando-a como produto de consumo. 
Acresço aos exemplos acima outro citado por Sandel no referido livro:  Uma mulher de 30 anos  do Estado de Utah no EUA, Kari Smith, mãe solteira de um menino de 11 anos de idade que tinha problemas na escola, precisava de dinheiro para a educação de seu filho. Em 2005, num leilão via internet, ela se ofereceu para tatuar um anúncio permanente na própria testa para qualquer patrocinador comercial que estivesse disposto a lhe pagar 10.000 dólares.  Um cassino on line aceitou a oferta. Apesar da resistência do tatuador – quem diria? – Kari tatuou o endereço eletrônico do cassino na testa, virando uma espécie de outdoor ambulante[vi].
Na maior parte desses exemplos, o que os pesquisadores mostram é que se trata de gente desesperada e necessitada. São pessoas muito pobres que vendem o próprio sangue para conseguir trocados e continuar  vivendo como der ou vendem o rim ou alugam a testa! Mas, não deveria haver limites? Na venda de órgãos, há, e na de sangue,  também em vários lugares. E a existência de um mercado lícito ou mesmo ilícito não seria capaz de estimular a venda aberta de qualquer coisa? Será que basta existir compradores para surgir a oferta? Ou é o contrário?
Voltemos ao caso do leilão da virgindade. Ao contrário do que mostram os autores nos livros citados, não é o desespero que marca oferta de Catarina. Ao que consta, ela não é uma moça que precise vender sua virgindade para sobreviver, como ela mesma confirma: “O que eu posso te dizer agora é que o leilão, para mim, é um negócio”[vii]. Aliás, diz mais que com o dinheiro que receberá pretende abrir uma Ong e investir num projeto de casas populares para famílias pobres em Santa Catarina[viii]. A acreditar-se nas palavras dela, seria, então, um sacrifício o que ela se propõe. Seria um sacrifício que vale a pena?
Dá para desconfiar, pois como se pode ver das reportagens, ainda que ela pretenda desmerecer o pagamento em dinheiro – polpudo, diga-se—há um claro interesse pela fama, esse outro produto da sociedade de consumo, que criou as celebridades e  o culto às estas. Os chamados cinco minutos de fama são um doença típica da sociedade capitalista contemporânea: “Quando deu certo – o chamado para o reality show  – , fiquei feliz. Eu era de uma cidade pequena em Santa Catarina e um cineasta australiano me escolheu”[ix]
O caso é complexo: Quem olha, pensa que ela não dá valor à própria virgindade ou fisicamente falando, ao hímen que há de ser rompido. Não farei qualquer consideração porque, naturalmente, somente uma avaliação sócio psicológica poderia responder. E, talvez, ninguém tivesse nada a ver com isso não fosse um detalhe: Catarina e os produtores do intitulado “documentário” tornaram a oferta pública. Ela abriu mão de sua privacidade e, bem ao contrário, se mostrou abertamente a todo o mundo. Aliás, era esse mesmo o propósito, pois se trata de um leilão, uma oferta pública e ganha quem mais der.
Eu pergunto: o que, de fato, Catarina está vendendo e o que os compradores pretendem adquirir? Seria a “virgindade”? Ora, ‘virgindade” é um conceito  construído que tem base fisiológica e sócioculturais (o que faz variar seu sentido, dependendo do local e momento da história). Do ponto de vista objetivo, a virgindade pode ser definida como o atributo de uma pessoa que nunca teve nenhum tipo de relação sexual, representada na mulher pela existência do hímen intacto (o que pode eventualmente trazer problemas para mulheres que não tenham hímen, embora nunca tivessem sido penetradas pelo membro masculino).
Simbolicamente, a virgindade emana a ideia  de pureza, candura, da obra intocada. Na sociedade de consumo, por isso, fala-se em CD virgem, DVD virgem, azeite virgem ou extra virgem (quando referido à primeira prensagem) etc. Na religião cristã, a Virgem Maria é o exemplo da pureza: a mulher santa que deu a luz sem ser maculada.
Pergunto, agora, como fazem os autores dos livros citados: Que mal há nisso? Se a virgindade é dela, por que não pode vender?  Nos outros casos, o aspecto comercial mostrou-se bastante prejudicial por vários motivos. Não só porque são sempre os oprimidos e desprotegidos que recorrem a esses estratagemas insólitos, como também porque enfraquece o sentido moral que deveria nortear as ações humanas e que deveriam servir de sustentação ao mercado – qualquer tipo de mercado.
No caso de venda de órgãos, Berlinguer e Garrafa contam que um dos primeiros processos judiciais para punir a prática foi desenvolvido na Grã-Bretanha contra um médico (Raymond Crockett) por ele ter transplantado para quatro pacientes ingleses os rins de outros quatro cidadãos turcos recrutados como doadores recompensados ou remunerados. Na sentença, o Juiz deixou claros os malefícios do ato para todos: “A tragédia pessoal e profissional de V. S, dr. Crockett, é que o seu comportamento desacreditou profundamente a prática do transplante renal, que havia sido encorajada por V. S. através de suas atividades na Grã-Bretanha”[x]
Na questão da venda de sangue, Sandel apresenta um estudo feito pelo britânico Richard Titmuss em 1970 para mostrar a relação entre venda e doação[xi]. Ele comparou o sistema em vigor no Reino Unido, onde todo o sangue para transfusão é doado com o dos Estados Unidos, onde parte é doada e outra parte é comprada por bancos de sangue comerciais de pessoas dispostas a vendê-lo.
Titmuss comprovou, através de dados, que o sistema britânico de coleta de sangue funciona melhor que o americano. O modelo de mercado livre para compra e venda de sangue leva à escassez crônica, ao desperdício, a custos mais altos e a maior risco de contaminação. Mas, ele também apontou os problemas de ordem ética: os bancos  de sangues lucrativos nos EUA recrutam boa parte de seus vendedores em bairros pobres e favelas; pessoas desesperadas para obterem algum dinheiro.
Há uma redistribuição do sangue dos pobres aos ricos, um efeito perverso e imoral. Titmuss diz, e com razão, que transformar o sangue em mercadoria corrói o sentimento de obrigação de doar sangue, diminui o espírito de altruísmo e solapa a relação de doação, que é uma característica ativa da vida social. E os dados comprovavam que, por causa da existência de um mercado de compra e venda de sangue, o que se observava  nos EUA era um decréscimo do número de doadores. “A comercialização e o lucro com o sangue vêm afastando o doador voluntário”[xii]. Como pondera Titmuss, a partir do momento em que começam a encarar o sangue como um produto que pode ser vendido e comprado, as pessoas perdem um pouco de seu senso de responsabilidade moral pela doação. A compra e venda de sangue desmoraliza a prática da doação gratuita.
Então, para concluir, retorno ao caso da Catarina. A oferta é de um produto imaterial, uma fantasia machista: a virgindade que será violada. Espanta mesmo que, em pleno século XXI, algum homem pague e muito para ter essa experiência, desse modo frio e calculista. E, se existe algum produto material, ele é o hímen que será rompido. Daí, então, há também  uma espécie de serviço: o direito a seu rompimento. Caso típico de oferta que fazem todos os dias as prostitutas, com a diferença de que não se trata de rompimento,  mas apenas de penetração.
Qual o alcance desse tipo de oferta? Talvez passe em branco e, como acontece com a maioria dos “famosos de cinco minutos”, logo logo não se tratará mais do assunto. Realmente. Todavia, o problema da oferta remanesce e deveria nos fazer pensar. Seu caráter machista expõe o que há de pior nesse modelo: A ideia de que a mulher vale por sua virgindade e que sua violação é um prêmio muito especial, algo que já devia ter sido extirpado do imaginário social masculino e feminino, pois mantém em vigor um tabu indesejado (a virgindade)  e o preconceito de que a mulher deve sempre apresentar-se virgem para seu homem”.    

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