“ Judicialização
da política
Rogério Medeiros
Garcia de Lima
No Estado Democrático de Direito "todo o poder emana do povo,
que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição" (Constituição brasileira de 1988, artigo 1.º,
parágrafo único).
A Revolução Francesa
(1789) fortaleceu o denominado "sistema representativo", o qual
substituiu o direito divino dos reis pela soberania popular. Entre a
impossibilidade da democracia direta e o horror ao absolutismo monárquico, os
revolucionários pretenderam criar um governo livre e natural (Darcy Azambuja,
Introdução à Ciência Política, 4.ª edição, páginas 242-243).
No Brasil atual,
presidente da República, governadores e prefeitos são eleitos para governar.
Senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores são eleitos
para legislar. Magistrados prestam concurso ou são nomeados para julgar
conflitos de interesses, à luz da Constituição federal e dos demais textos
legais. Simples assim, parece. Mas não é.
O Poder Judiciário,
no desempenho da jurisdição, exerce uma parcela do poder político. Conforme o
magistrado francês Antoine Garapon, o controle crescente da Justiça sobre a vida
coletiva é um dos maiores fatos políticos contemporâneos. Os juízes são
chamados a se manifestar em número cada vez mais extenso de setores da vida
social (O Juiz e a Democracia: o Guardião das Promessas, tradução brasileira,
1999, página 24).
O fenômeno
"judicialização", pois, consiste na decisão pelo Judiciário de
questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral.
"Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder das instâncias
tradicionais, que são o Executivo e o Legislativo, para juízes e
tribunais" (Luís Roberto Barroso, Direito e Política: a Tênue Fronteira,
2012).
Em nosso país, a
"judicialização" da vida social foi incrementada em ritmo assustador
após a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988. Tornamo-nos
incapazes de solucionar, sem recorrer ao Poder Judiciário, conflitos de toda
natureza, públicos ou privados.
Nesse contexto, as
eleições somente são resolvidas depois do chamado "terceiro turno"
perante a Justiça Eleitoral. Raro é o pleito que não seja impugnado, muitas
vezes sem nenhum fundamento. Espetáculo deplorável.
Pior: tudo definido e
empossados os políticos, personagens não eleitas intentam governar os destinos
da coletividade. Arvoram-se em "guardiães da ética" para impor aos
políticos legitimamente sufragados modos de agir e governar.
Utilizam amplamente
meios de comunicação no intuito de propagar unilateralmente seu discurso
"ético" e arregimentar hostes de desinformados insatisfeitos. Ajuízam
uma miríade de ações coletivas em defesa da decantada "moralidade
administrativa". Parte da imprensa e cidadãos passam a interpelar
magistrados,
em busca de opiniões sobre a política "judicializada". Um aberrante
desconforto, não verificado em nações desenvolvidas, como os Estados Unidos e
potências europeias.
Em nome do princípio
democrático do acesso à Justiça, busca-se impor a governantes, legisladores,
empresários e cidadãos, de modo unilateral e autoritário, obrigações de fazer
ou não fazer. Muitas vezes sem sopesar os ônus decorrentes para os cofres
públicos e privados.
É sempre oportuno
assinalar que o Direito Administrativo contemporâneo consagra a relação
dialógica entre administração pública e administrados. Em outras palavras,
almeja-se a parceria entre público e privado, para substituir a administração
pública dos atos unilaterais, autoritária, verticalizada e hierarquizada (Maria
Sylvia Di Pietro, Parcerias na Administração Pública, 1997, páginas 11-12).
Algumas práticas não
dialógicas de imposição de políticas públicas por agentes não eleitos são os
chamados Termos de Ajustamento de Conduta, previstos pelo parágrafo 6.º do
artigo 5.º da Lei n.º 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública): "Os órgãos
públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento
de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de
título executivo extrajudicial".
Trata-se de um
mecanismo de solução extrajudicial de conflitos promovida por órgãos públicos -
inclusive pelo Ministério Público - para ajustar determinadas condutas de
agentes, públicos ou privados, que lesem o patrimônio público, o meio ambiente,
as relações de consumo, os direitos sociais, etc. No entanto, muitos Termos de
Ajustamento de Conduta têm sido arbitrariamente impostos a governos ou entes
privados para lhes impingir obrigações onerosas e, não raro, despropositadas.
É importante
assinalar que o Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente que a adesão
aos Termos de Ajustamento de Conduta não pode ser imposta unilateralmente aos
agentes públicos ou privados: "(...) O compromisso de ajustamento de
conduta é um acordo semelhante ao instituto da conciliação e, como tal, depende
da convergência de vontades entre as partes" (Recurso Especial n.º
596.764-MG, ministro Antonio Carlos Ferreira, Diário da Justiça Eletrônico
(DJE) de 23/5/2012).
Nesse contexto,
exige-se do magistrado extrema cautela no exame das questões relacionadas à
"judicialização da política". O povo elege o governante e o
governante governa. Se governa mal, o povo, em eleições democráticas
periódicas, removerá (ou não) o governante que lhe desagrade.
Aos magistrados
apenas se reserva, quando provocados, o papel de fazer cumprir a Constituição e
as leis, respeitando os postulados da governança democrática, e, se for o caso,
aplicar sanções aos que violarem os princípios da boa administração pública. O
Poder Judiciário não pode servir de trampolim para o exercício arbitrário e
ilegítimo do poder político por quem não foi eleito.”
*Doutor
pela UFMG, professor universitário, é desembargador do Tribunal Justiça de
Minas Gerais
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Qualquer sugestão ou solicitação a respeito dos temas propostos, favor enviá-los. Grata!