“Tráfico e não apreensão da
droga: entendimento recente do STJ sobre a questão da materialidade delitiva
Elaborado
em 10/2012.
(...)A decisão do STJ revoluciona a interpretação da materialidade
delitiva do crime de tráfico de drogas, tendo em vista especialmente os novos
meios de investigação dispostos à Polícia mediante as interceptações
telefônicas propiciadas pelo avanço tecnológico.
Segundo veiculado pelo Informativo 501 STJ, a Sexta Turma do
Superior Tribunal de Justiça, no bojo do HC 131.455 – MT, tendo como relatora a
Ministra Maria Thereza de Assis Moura, considerou que “a ausência de apreensão
da droga não torna a conduta atípica se existirem outros elementos de prova
aptos a comprovarem o crime de tráfico. No caso, a denúncia fundamentou-se em
provas obtidas pelas investigações policiais, dentre elas a quebra de sigilo
telefônico, que são meios hábeis para comprovar a materialidade do delito
perante a falta da droga, não caracterizando, assim, a ausência de justa causa
para a ação penal”.
A decisão do STJ sob comento promove uma verdadeira revolução
na interpretação da questão da materialidade delitiva do crime de tráfico de
drogas, tendo em vista especialmente os novos meios de investigação dispostos à
Polícia mediante as interceptações telefônicas propiciadas pelo avanço
tecnológico.
Fato é que essa nova interpretação, acaso venha a prosperar
nos tribunais, poderá ter efeitos expandidos para outros casos, tais como
contrabando ou descaminho sem apreensão de mercadorias ou tráfico de armas, uma
vez que “ubi eadem ratio, ibi ide jus” (“A mesma razão autoriza o mesmo
direito”).
É tradicional a lição da doutrina e a regra do direito
(artigo 158, CPP) de que “quando a infração deixar vestígios será indispensável
o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a
confissão do acusado”. E o tráfico de drogas, considerando seu objeto material
palpável, é induvidosamente de natureza material. É bem verdade que o artigo
167, CPP abre a possibilidade de que o exame de corpo de delito seja suprido
pela prova testemunhal quando for impossível sua realização, mas se tem
considerado que tal exceção somente pode ser aplicada quando a comprovação da
materialidade em si não se dá porque resta comprovado que o próprio agente
criminoso a destruiu ou ocultou, não sendo de se aceitar o suprimento quando o
próprio Estado (Polícia, Ministério Público ou Judiciário) não consegue a
materialidade por alguma falha ou negligência em sua atuação no sentido de
satisfazer o “onus probandi” quanto à integralidade da imputação.
(...)
A doutrina costuma classificar as infrações penais quanto à
obrigatoriedade do exame de corpo de delito em “crimes de fato permanente”
(“delicta facti permanentis”) e “crimes de fato transeunte” (“delicta facti
transeuntis”). Os primeiros são aqueles que deixam vestígios e os segundos são
os que, ao inverso, não deixam vestígios. [1]
Por inferência do disposto no artigo 158, CPP os crimes de
fato permanente devem ser comprovados em regra por meio do exame de corpo de
delito direto ou indireto, não podendo ser este meio de prova suprido nem mesmo
pela confissão do acusado. “Contrario sensu”, conclui-se que as infrações que
não deixam vestígios normalmente (crime de fato transeunte) prescindem do exame
de corpo de delito como meio necessário de prova.
A aplicação dessa regra sem qualquer ponderação perante a
realidade do mundo da vida, permitindo que a letra fria da lei seja o único
parâmetro a ser seguido pelos operadores do Direito, certamente não pode ser o
caminho mais correto para a solução de determinados casos concretos que muitas
vezes se apresentam sem qualquer aviso a fim de serem solucionados pela
jurisdição.
A palavra “jurisdição” tem efetivamente por origem
etimológica “juris” + “dictio”, que significa “dizer o Direito”, esperando-se
mesmo mais do que isso dela. A grande expectativa que se tem perante a
jurisdição é que mais do que o Direito ou a Lei, ela seja capaz de dizer e
fazer a “Justiça”. Mas, não é apegando-se cegamente a uma formalidade que se
pode buscar o Direito e a Justiça. A Justiça não deve e não pode ser cega.
Quando os gregos, com sua sabedoria, idealizaram a representação da deusa
Thêmis com a balança em uma das mãos, simbolizando o equilíbrio e a
imparcialidade, e a espada na outra, demonstrando sua força para impor suas
decisões e sanções, não optaram por vendar-lhe os olhos. Essa temeridade foi
obra de artistas alemães do Século XVI na pretensão de dar ênfase ao aspecto da
imparcialidade. [2] Com isso mutilaram pavorosamente o símbolo
produzido pela sabedoria grega. Uma Justiça cega não é imparcial, mas sim
falha, inepta, impotente. Talvez artistas contemporâneos, inspirados no erro
dos alemães do século XVI e nas novas tecnologias, pudessem fazer uma releitura
da simbologia de Thêmis dotando-a agora de uns óculos de visão noturna, já que
longe de se pretender uma Justiça cega, muito mais interessante seria ter uma
que enxergasse até no escuro. E mais, de acordo com o “decisum” em destaque do
STJ, ela também poderia estar equipada com um aparelho de escutas.
Alvissareiro é saber que a legislação processual penal
brasileira não se conforma a um modelo formalista e cego, mas apresenta-se, ao
menos no aspecto ora sob discussão, com um sistema maleável e formatado na
esteira do bom senso.
A regra do “limite probatório do corpo de delito” é, em
geral, justa e funcional, mas impõe-se a criação de algum mecanismo a
amenizar-lhe a rigidez em certas situações problemáticas. E isso deve ser feito
com cautela e inteligência, tomada esta última no sentido de “mecanismo ou
instrumento para a solução de problemas”, a “capacidade de ler a solução mais
adequada para um determinado problema”. Através de uma solução informada pela
inteligência pode-se, por meio de sua funcionalidade, fazer uso da “capacidade
imediata e estanque de associar e dissociar elementos necessários e habilmente
selecionados, quando de sua aplicabilidade”, fazendo para isso o uso “de forma
associada dos recursos da memória, da capacidade de raciocinar e da
criatividade”. [3]
Ao erigir em norma o disposto no artigo 158, CPP, o
legislador pátrio foi abeberar-se na melhor dogmática que sabiamente
estabeleceu certos “limites probatórios” a serem obedecidos pelas legislações.
Encontra-se em Malatesta a doutrina do “limite probatório do corpo de delito”,
a qual certamente confere corpo e alma ao dispositivo sobredito de nosso
diploma processual penal. [4] Referido autor estabelece que as
infrações que deixam vestígios devem ser provadas pelo respectivo exame de
corpo de delito, não podendo ser supridas pela prova testemunhal e nem mesmo
pela confissão do réu. Essa conclusão advém de um princípio da teoria geral da
prova erigida por Malatesta, qual seja, o “Princípio da Melhor Prova”. São suas
palavras:
“Primeiramente, se, para servir de base a uma condenação
penal não basta a verdade formal, mas é preciso a verdade substancial, é
necessário, pois, procurar sempre as melhores provas em matéria penal, porque
são elas que melhor podem fazer chegar à conquista da verdade substancial: é
preciso não contentar-se com provas fornecidas senão quando são as
melhores que se possam ter em concreto, e, por fim, quando a lógica das
coisas não obriga a crer que devam existir outras ainda melhores” (grifo
nosso). [5]
Da lição acima o que se pode concluir, conforme já o fez
outrora o autor em destaque, é que quando se tratam de crimes de fato
transeunte pode haver contentamento com uma prova não material (v.g. um
testemunho, uma confissão, um documento, um conjunto indiciário etc.). Mas,
quando se versa sobre um delito de fato permanente, que deixa naturalmente seus
vestígios materiais, as provas diversas do exame de corpo de delito não podem
ser consideradas mais do que meras coadjuvantes. Jamais podem ser consideradas
a “melhor prova” que se poderia ter da materialidade de um vestígio material.
Ora, essa “melhor prova” no caso enfocado não pode deixar de ser o exame de
corpo de delito que constata os referidos vestígios. Ocupando, portanto, a
posição de “melhor prova” e considerando o princípio antes erigido de que se
deve sempre buscar a “melhor prova possível”, impõe-se o não contentamento com
um conteúdo probatório que não satisfaça o nível de qualidade exigível e
possível no caso concreto. A penalidade processual para a desídia ou a
negligência na busca da “melhor prova” é que o fato probando seja considerado
não comprovado ou, no mínimo, duvidoso, o que, por seu turno acarretará no
Processo Penal o chamamento à baila do “Princípio do Favor Rei” (“in dubio pro
reo”) com a consequente inviabilidade de uma decisão condenatória ou, por vezes,
até mesmo da formulação de uma acusação consistente. [6]
Entretanto não escapou ao formulador da doutrina em
exposição, que tanto inspirou o legislador pátrio na formulação do artigo 158,
CPP, o necessário bom senso de ter em mente que não é no brocardo “dura lex sed
lex” que se encontra o melhor caminho para a Justiça. Na verdade, neste ponto
bem lembrou-se Malatesta de outro ditado latino, a não permitir o inebriamento
diante da formulação de regras inflexíveis encasteladas num idealismo que pode
tornar o Direito uma ciência que se distancia da realidade e, por isso mesmo,
perde todo seu caráter científico e prático. Esse aforismo é que aquele que diz
“summum ius, summa injuria”.
Em sua exposição Malatesta admite que em certos casos a regra
geral deva ceder espaço para situações excepcionais em que mesmo em crimes de
fato permanente poder-se-á aceitar como melhor prova não aquela material, mas
também as provas pessoais, tais como depoimentos de testemunhas ou confissões,
além, é claro, de outros vestígios que indiquem a veracidade desses testemunhos
e interrogatórios. Um conjunto probatório sólido e coerente poderá suplantar o
corpo de delito em determinadas situações excepcionais. Resta saber que
especificidade é exigível para a admissão de exceções ao “limite probatório do
corpo de delito”?
Em sua doutrina o autor sob comento faz uso de um conceito
extremamente comum na ponderação de diversas questões difíceis (“hard cases”) a
serem enfrentadas no mundo jurídico. Embora sem fazer menção direta, traz à
baila a chamada “justa causa”, ou seja, para que se possa concordar com a
dispensa do corpo de delito em infrações materiais é preciso comprovar que o
desaparecimento dos vestígios deixados pelo crime é justificado e,
consequentemente, torna-se impossível a produção da chamada “melhor prova”. [7]
Segundo Malatesta, “é preciso, então, antes de emprestar plena fé às
testemunhas” que afirmam a materialidade delitiva, a qual por sua natureza
deveria “subsistir”, comprovar uma “causa razoável do seu desaparecimento”. [8]
Certamente uma das principais causas razoáveis a creditarem a
dispensa do corpo de delito impossível de ser realizado é a circunstância em
que se consegue comprovar com certeza que os vestígios foram destruídos pelo
próprio criminoso no afã de livrar-se da responsabilidade criminal. É claro que
não se poderia concordar com a premiação ao Estado desidioso na produção da
prova criminal, o qual simplesmente deixa escapar sem mais as oportunidades que
tem de produzir as melhores provas. A sanção processual imposta pelo “limite
probatório do corpo de delito” é, além de justa e coerente, de certa forma
também pedagógica, pois que incita os operadores do Direito (Delegados de
Polícia, Promotores, Advogados e Juízes) a atuarem com especial denodo sob pena
de terem escancaradas à sociedade sua inépcia, para além de eventuais
responsabilidades criminais e administrativas. De outra banda, o Direito também
não poderia recompensar o criminoso astuto com a impunidade sempre que este,
sabedor da importância da materialidade delitiva, venha a destruí-la ou
ocultá-la de forma competente. Fato este que frequentemente ocorre nos casos de
traficantes bem organizados. Isso seria o equivalente a estabelecer um “Direito
Premial” para a má fé, para a velhacaria e, em alguns casos, até mesmo para a
frieza e crueldade da premeditação criminosa. Não é sem razão que
hodiernamente nosso Pretório Excelso, manifestou-se, pela pena do Ministro
Gilmar Mendes, no sentido de que “os direitos e garantias constitucionais não
podem servir de manto protetor a práticas ilícitas”. [9]
Nesse diapasão, se por um lado é verdade que a garantia do
corpo de delito para comprovar os ilícitos materiais contribui para uma
otimização da prova e para a segurança jurídica especialmente nos casos de
condenações criminais, evitando muitas vezes a apenação de inocentes, por outro
lado deve-se considerar o fato de que a legislação e os operadores do Direito
não podem ser ingênuos e muito menos adeptos de um laxismo que permita uma
válvula de escape formal em determinados casos em que é claramente reconhecível
que o corpo de delito foi deliberadamente destruído ou ocultado pelo próprio
infrator na intenção de obter sua impunidade. É nessas horas que a Justiça não
pode mesmo estar com os olhos vendados. Deve mantê-los abertos e atentos a fim
de julgar com equilíbrio e aplicar a força com precisão e proporção.
Acertadamente a legislação brasileira abraçou a tese
ponderada de Malatesta que tanto influenciou a produção de legislações
processuais penais ao redor do mundo. Estabeleceu sim o “limite probatório do
corpo de delito” para as infrações que deixam vestígios, mas a temperou com a
previsão de uma situação excepcional em que esse exame poderá ser suprido pela
prova testemunhal “lato sensu” (depoimentos, declarações, confissão e agora os
meios tecnológicos de interceptação telefônica). Tal aspecto da dogmática em
estudo encontra-se estampado no artigo 167, CPP, conforme acima já aventado.
É bem verdade que faltou ao legislador ordinário brasileiro
expressar em suas palavras a excepcionalidade de tal suprimento. A leitura pura
e simples do dispositivo do Código de Processo Penal Brasileiro pode transmitir
a mensagem de que em qualquer circunstância a prova pericial poderá ser suprida
pela prova testemunhal, com o único requisito do desaparecimento dos vestígios
que possibilitariam a produção da primeira. Como visto, não é esta a orientação
da doutrina original referente ao tema, já que para autores como Malatesta, que
mesmo não sendo contemporâneos estendem suas lições humanísticas e libertárias
para o mundo atual, o suprimento sobredito somente seria possível em situações
excepcionais devidamente justificadas e em que o corpo de delito não sofreu
desaparecimento por desídia estatal na produção adequada da “melhor
prova”. E isso é o que pode ocorrer em muitos casos em que traficantes
sabem atuar com astúcia, pulverizando a distribuição das drogas e
impossibilitando apreensões mesmo com o recurso das interceptações. Não
obstante, seria fechar os olhos à realidade não acatar a evidência de conversas
telefônicas reveladoras dessa atividade criminosa de forma induvidosa. Nesses
casos a atuação dos infratores inobstante os esforços policiais, está a
justificar a dispensa do corpo de delito e seu suprimento pelas novas provas
possibilitadas pela tecnologia.
Mirabete deixa claro que a regra contida no artigo 167, CPP,
não permite ao operador do Direito uma conduta omissiva na busca da prova
material. Afirma o autor que “sendo perfeitamente possível e viável o exame pericial,
não deve o magistrado pronunciar o non liquet; cabe-lhe ordenar, de ofício sua
realização (...) sob pena de nulidade da sentença, ex vi do artigo 564, III,
“b”, CPP”. [10] Segue-se daí que, “contrario sensu”, se o exame é
impossível não por desídia das partes, da polícia ou do magistrado, autorizada
está sua substituição pelo exame indireto ou pela prova testemunhal. Desse modo
consolida-se um tratamento equilibrado que não permite a omissão Estatal e nem
a premiação da astúcia criminosa.
Prossegue então o autor sob comento exemplificando:
“Por vezes, as infrações não deixam vestígios ou estes não
são encontrados, desaparecem, não permanecem, impossibilitando o exame direto.
Citem-se como exemplos o homicídio praticado por afogamento em alto – mar em
que o corpo da vítima não é encontrado, o furto em que a coisa subtraída não é
recuperada, o estupro (...) quando o fato é levado ao conhecimento da
autoridade muitos dias após a ocorrência etc. Nessas hipóteses, inexistentes os
vestígios, dispensa-se a perícia, fazendo-se então a prova da
materialidade do crime por outros meios que não o exame direto. Forma-se,
então, o corpo de delito indireto, como prevê a lei, em regra por testemunhas
(art. 167)”. [11]
Dentre os exemplos de Mirabete acima expostos, o caso do
furto sem apreensão da “res furtiva” é bastante instrutivo. Não há razão
plausível para que nesse caso se admita a prova da materialidade sem a
apreensão e não se o faça no caso do tráfico de drogas com interceptações
telefônicas conclusivas e contundentes.
Também Greco Filho aborda com cautela a questão do suprimento
da prova pericial pela testemunhal, afirmando que “para que a substituição do
exame pela prova testemunhal possa ocorrer validamente, porém, é preciso que o
desaparecimento dos vestígios seja decorrente de causas não imputáveis aos
órgãos de persecução criminal”.[12] Também ele lembra o caso do
homicídio com o corpo jogado ao mar ou num rio, onde desaparece para sempre.
Insiste, porém, que a exceção deve ser aplicada “cum grano salis”:
“O artigo 167 do Código de Processo Penal, como uma exceção à
garantia do acusado quanto à constatação dos vestígios por exame pericial, deve
ser interpretado estritamente, impondo que se aplique, exclusivamente, à
hipótese de desaparecimento natural, ou por ação do próprio acusado, e não por
inércia dos órgãos de persecução penal que atuam contra o eventual réu” (grifo
nosso). [13]
Demercian e Maluly também apontam o artigo 167, CPP, como
exceção legal ao “limite probatório do corpo de delito”, mas destacam “que o
desaparecimento dos vestígios não pode decorrer da desídia ou inércia da
autoridade, mas por circunstâncias que a impeçam de maneira peremptória de
realizar a perícia. Portanto, não se admitirá o exame indireto quando, podendo
ser realizado diretamente, não o é”. [14]
Na mesma esteira manifesta-se Espínola Filho, destacando a
supletividade da prova testemunhal perante o corpo de delito. O Exame de Corpo
de Delito somente se torna prescindível quando resta impossibilitado por
circunstâncias alheias ao poder de iniciativa estatal. Esse impedimento decorre
sempre do desaparecimento dos vestígios deixados pelo delito, mas quando estes
existem devem ser objeto da iniciativa dos órgãos persecutórios para seu exame,
sob pena de nulidade e inviabilidade probatória por outros meios. [15]
Analisando, porém, as diversas manifestações jurisprudenciais
acerca do tema em sua época, Espínola Filho erige contundente crítica àqueles
que tomam a regra da exigência do exame pericial em crimes de fato
permanente como absoluta. Aponta tal postura como inflexível à realidade,
tornando o Direito Processual Penal um instrumento inócuo quando privilegia o
aspecto garantístico em detrimento exagerado da eficácia. Em suas palavras:
“Não aceitamos a tese, que tem esteio na opinião de Câmara
Leal, da qual resulta a orientação de ser o exame de corpo de delito
indispensável, para a prova da materialidade de crimes que devem deixar
vestígios, ou, como se expressa o comentador paulista, ‘que por sua natureza
costumam deixar vestígios’ (Comentário ao Código de Processo Penal Brasileiro,
Volume 1º, 1942, p. 434). Essa compreensão traduziria uma
dificultação considerável da obra de apuração das infrações criminais, em
benefício dos malfeitores, a qual está longe de corresponder ao sistema
antiformalista do novo Código, tão cioso de armar a justiça com todos os
elementos aptos e seguros à verificação real dos fatos, como se passaram –
embora nos pareça uma concessão, sem sentido e sem razão, à tradição, aferrada
a preconceitos de forma, firmar a proibição de ser o exame de corpo de delito
direto suprido pela confissão, quando esta, se dada em juízo, deveria servir,
sem relutância alguma, a tal fim”. [16]
Resta clara a necessidade de prover as normas processuais de
uma construção, interpretação e argumentação que lhes possibilite manter o
delicado equilíbrio necessário entre eficácia e garantias, certamente
consistente num dos maiores desafios da ciência processual penal moderna.
Trata-se de uma busca que Aristóteles já indicava há milênios ao referir-se a
uma mediania virtuosa, concluindo que “a virtude é certa medianidade, como a
que ao meio dirige a sua mira”. Daí se chegando à inferência de que “é a
virtude um hábito de propor-se o que consiste na medianidade para nós,
determinada com a razão e como o homem sábio a determinaria. E é uma mediania
entre dois vícios, um por excesso e outro por falta: porque, enquanto dos
vícios alguns faltam e outros excedem da medida conveniente, quer nos afetos,
quer nas ações, a virtude, ao invés, acha e escolhe o meio”. [17]
Mister se faz neste nosso contexto, encontrar o ponto fulcral de equilíbrio
mediano entre eficácia e garantias processuais, o que tem sido ao longo do
tempo uma busca contínua dos cultores da ciência processual em geral e,
especialmente, do Processo Penal.
No seio dessa noção de mediania virtuosa deve-se promover uma
harmonização entre os dispositivos dos artigos 158 e 167, CPP, inclusive com
reflexos na interpretação e aplicação do artigo 564, III, “b”, do mesmo
“codex”. Este mandamento por último mencionado estabelece que haverá nulidade
pela falta de exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios.
Entretanto, o próprio dispositivo em destaque ressalva o disposto no artigo
167, CPP, promovendo, portanto, expressa e claramente, a necessária harmonia
entre o “limite probatório do corpo de delito” e sua excepcional substituição
pelo exame indireto e/ou pela prova testemunhal “lato sensu”, à qual certamente
se podem acrescer as interceptações telefônicas urdidas na tecnologia contemporânea.
O sopesar de todas as circunstâncias que envolvem o caso
concreto diante do qual se procura ajustar sistematicamente os dispositivos
legais acima aventados, adquire ainda maior relevo quando se está diante da
situação em que foi o próprio réu ou investigado o autor da destruição ou
ocultação da materialidade delitiva, impossibilitando por seus atos a
realização regular do exame pericial necessário. É que nessas circunstâncias há
que notar-se que a nulidade não pode beneficiar àquele que lhe deu causa, sob
pena de abrir uma porta de entrada à litigância de má fé no processo. Se
tal fosse permissível num sistema jurídico, bastaria que a parte interessada em
anular um processo provocasse “sponte propria” uma causa de nulidade, de modo
que o mundo do Direito estaria definitivamente escancarado para o abandono do
ideal de Justiça, abraçando as puras manobras maliciosas e a permissividade
imoral, que transformariam o mundo jurídico em exclusiva discussão retórica e
embate de técnicas de contorno da lei e do justo.
Portanto, não é sem razão que o artigo 565, CPP, estabelece
que “nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para
que tenha concorrido”. Seria mesmo o cúmulo alegar o traficante que deveria ser
absolvido porque a polícia não conseguiu apreender as drogas devido à sua
“esperteza”, mesmo com quebra de seu sigilo telefônico. Ora, se resta
comprovado por outros meios de prova seguramente que o infrator foi quem
impossibilitou o exame pericial devido a manobras de destruição ou ocultação,
não há dúvida de que foi ele o causador direto da eventual nulidade que, de
acordo com o ditame coerente e sábio da lei, não lhe pode beneficiar. Anote-se
que tal regramento é mantido no Projeto de Código de Processo Penal n. 156/09
em seu artigo 156. Isso porque a legislação pátria não poderia abrir mão de uma
norma que assegura um processo justo e ético, além de que obediente ao
princípio geral do Direito do qual se extrai que de um ato ilícito não podem
decorrer direitos ao seu executor. Muito ao reverso, dos atos ilícitos somente
podem decorrer direitos aos por ele prejudicados e deveres e sanções àqueles
que o praticaram. Por isso ao infrator que destrói ou oculta o corpo de delito,
impossibilitando a perícia por parte dos órgãos persecutórios que para isso se
esforçam, não decorre o reconhecimento da nulidade da prova contra si
produzida, mas sim, por força do artigo 167 c/c 565, CPP, o direito às agências
estatais de comprovarem a materialidade por outros meios tais como o exame indireto,
a prova testemunhal, gravações telefônicas licitamente colhidas etc. É claro
que para que isso possa ser aceito deverá haver prova cabal quanto à conduta do
implicado em impossibilitar a realização da perícia, pois que, conforme já
dito, se esta não se realiza por desídia das agências estatais, não cabe ao
indivíduo arcar com as consequências, mas sim ao próprio Estado.
REFERÊNCIAS:
ARISTÓTELES. A Ética. Trad. Cássio M. Fonseca. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1985.
DEMERCIAN, Pedro Henrique, MALULY, Jorge Assaf. Curso de
Processo Penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro
Anotado. Volume II. Campinas: Bookseller, 2000.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
JÚNIOR, Bosco, TERCEIRO, José Gil. O Mito de Thêmis.
Disponível em www.discipulosdethemis.hpg.com.br , acesso em 03.04.11.
MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em
matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed.
São Paulo: Atlas, 2006.
ORRUTEA, Rogério Moreira. Sobre a hipérbole humana ou o homem
este desconhecido. Curitiba: Juruá, 2010.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal.
13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
Notas
[1] TOURINHO FILHO, Fernando
da Costa. Manual de Processo Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 569.
[2] JÚNIOR, Bosco, TERCEIRO,
José Gil. O Mito de Thêmis. Disponível em www.discipulosdethemis.hpg.com.br ,
acesso em 03.04.11.
[3] ORRUTEA, Rogério Moreira.
Sobre a hipérbole humana ou o homem este desconhecido. Curitiba: Juruá, 2010,
p. 106.
[4] MALATESTA, Nicola
Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio.
Campinas: Bookseller, 1996, p. 514 – 523.
[5] Op. Cit., p. 102.
[6] Não é também em outra
fonte que se abeberou o legislador brasileiro ao estabelecer a redação do
artigo 525, CPP: “Nos casos de haver o crime deixado vestígio, a queixa ou
denúncia não será recebida se não for instruída com o exame pericial dos
objetos que constituam o corpo de delito”.
[7] Op. Cit., p. 521.
[8] Op. Cit., 523.
[9] HC 103.236, Rel. Min.
Gilmar Mendes, 2ª Turma, Julgado em 14.06.2009, DJ de
03.09.2010.
[10] MIRABETE, Julio Fabbrini.
Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 266.
[11] Op. Cit., p. 266. O autor
arrola várias decisões jurisprudenciais neste sentido: RT 387/2020;
550/272; 564/400; 575/479; 582/375; 605/321; RTJ 89/110; RDJ 8/111.
[12] GRECO FILHO, Vicente.
Manual de Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 212.
[13] Op. Cit., p. 212.
[14] DEMERCIAN, Pedro Henrique,
MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2009, p. 325.
[15] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo.
Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Volume II. Campinas: Bookseller,
2000, p. 522.
[16] Op. Cit., p. 547.
[17] A Ética. Trad. Cássio M.
Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985, p. 71.
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