Por
Rizzatto Nunes
Num de
meus artigos do ano passado (de 18-4-2011) eu contei uma estória para
ilustrar o drama vivido por centenas de consumidores neste país. Vou
transcrevê-la a seguir e depois continuo o presente.
Ei-la:
José da
Silva, usuário do plano de saúde X, que firmou para si e sua família, chega ao
Hospital Y, para internar sua esposa que teve um ataque cardíaco. A situação é
grave e ela necessita de atendimento médico urgente.
Ele,
tenso, vai ao balcão de atendimento da entrada de emergência do hospital
e entrega a carteirinha do plano de saúde. A atendente, então, com muita calma,
num contraste muito forte com a dor do Sr. José, pede a guia de internação.
José está
tão nervoso que sequer entende o pedido:
“Guia ? Que guia ?“.
“Para sua esposa dar entrada no hospital o senhor tem que me apresentar a
guia de internação expedida pelo seu plano“, responde a mocinha do balcão,
com uma frieza de mármore e, claro, lendo um roteiro escrito a sua frente.
Confuso,
José gagueja e diz que não tem guia alguma. E, levantando a voz, assim, meio
sem querer, aponta para sua mulher deitada na maca:
“Ela teve um ataque… São duas horas da madrugada! Ela teve um ataque…precisa
de ajuda…”
“Eu sei meu senhor. Eu sei. Mas este é o procedimento.”, devolveu a
mármore que fala.
José já
ia responder, quando a treinada funcionária hospitalar interviu:
“Mas, não se preocupe. Nós temos a solução. O senhor assine, por favor, um
cheque-caução e me entregue que está tudo resolvido “
“O que é isso?”, perguntou, atônito, José.
“É o seguinte: o senhor deixa um cheque conosco; ele fica como garantia dos
gastos aqui no hospital; se o plano de saúde não cobrir os valores que o
hospital vai cobrar, então, nós depositamos o cheque”
“Mas, como? Se eu tenho plano de saúde é exatamente pra não ter que passar
por isso. Veja minha mulher, ela está morrendo… Está morrendo!”.
“Calma, calma. É rápido. Pegue seu talão que eu vou calcular quanto é o
valor para o preenchimento…”
“Eu… Eu não tenho talão de cheque aqui comigo”.
“Então me passa o relógio!”
* *
* * * * *
*
A
narrativa da estória (tirando, claro, o pedido do relógio) mostrava o que
acontecia regularmente nos atendimentos de urgência de muitos hospitais
brasileiros. Por isso, evidentemente, a Lei 12.653, recentemente promulgada,
que tipificou o crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar
emergencial é bem vinda[i]. Ela coloca
uma pá de cal nos absurdos argumentos que sempre pretenderam justificar em
Juízo a validade do procedimento.
Assim,
escrevo este artigo não para falar do que já sabemos, mas apenas para lembrar
que, como se trata de lei penal, a mesma não retroage e existem centenas de
casos de abusos praticados anteriormente nos moldes em que a lei agora vem
coibir expressamente. E, quero consignar que esses consumidores que foram
violados no passado não estão desprotegidos. Isso porque, mesmo antes da
introdução desse novo crime no Código Penal (CP) já era possível enquadrar a
conduta lesiva dos hospitais nas normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC)
e até do próprio CP.
Com
efeito, o poder Judiciário já vinha anulando contratos obtidos desse modo
abusivo pelos hospitais, com base nas normas em vigor. E mais: um elemento
importante que foi considerado muitas vezes dizia respeito ao ônus da prova
para a demonstração da lisura do procedimento. Entendia-se que havia presunção
“juris tantum” de que, em internações hospitalares de urgência, os funcionários
dos hospitais impunham seus contratos e títulos aos próprios pacientes ou seus
acompanhantes.
Transcrevo,
para terminar, trechos de uma dessas decisões:
“(…)conforme
vem decidindo esta C. Câmara, toda vez que o consumidor alega que foi coagido a
assinar contrato de prestação de serviço hospitalar ou o chamado cheque-caução
numa internação de emergência, inverte-se o ônus da prova para que o hospital
demonstre o inverso.
Isto é,
há mesmo presunção juris tantum de que, em internações hospitalares de
urgência, os funcionários dos hospitais impõem seus contratos aos próprios pacientes
ou seus acompanhantes em flagrante violação ao sistema legal. Infelizmente,
trata-se de prática conhecida que vige no setor.
Com
efeito, a prática é claramente abusiva, conforme definido pelo Código de Defesa
do Consumidor, no inciso V do artigo 39, que assim dispõe:
‘Art. 39.
É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas
abusivas:
V- exigir
do consumidor vantagem manifestamente excessiva.”
E, para
se fixar o sentido de “vantagem manifestamente excessiva”, deve-se valer do § 1º
do artigo 51 do mesmo diploma legal, que, por sua vez, dispõe:
‘§1º
Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I –
ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II –
restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato,
de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;
III – se
mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e
conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares
ao caso’.
Não resta
dúvida, portanto, de que a imposição de contrato ou título de crédito a ser
assinado na véspera de uma internação de emergência é ilegal. E, se assim o é,
como de fato se verifica, tal comportamento dos funcionários dos hospitais ___
claro, a mando dos administradores e proprietários destes ___
configura em tese o crime de constrangimento ilegal previsto no artigo 146 do
Código Penal, assim tipificado:
‘Art. 146
– Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe
haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena –
detenção, de três meses a um ano, ou multa.’
Esta C.
Câmara vem decidindo nesse sentido regularmente. Por exemplo nas apelações
7.051.878-4, Des. Relator Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, j.
25.06.08, v.u. e 7.109.503-1, Des. Relator Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de
Direito Privado, j. 04.02.09, v.u.
Destaque-se
do apelo nº 7.051.878-4, acima citado, o seguinte trecho que deixa patente o
abuso:
‘Anote-se
que a prática abusiva da autora contra a ré se deu no ato da internação, que se
realizava em caráter de urgência, previamente a qualquer definição do valor
final devido, que dependia de apuração, sem que fosse concedido tempo
suficiente para a devida reflexão por parte da ré, dadas as condições da
paciente.
Como bem
apontado pela r. sentença atacada, ‘a conduta da autora, na hipótese,
caracteriza verdadeira coação psicológica, a invalidar o termo de responsabilidade
e a emissão da nota promissória referidos, sem o que nenhuma obrigação reste a
cargo da ré, a respeito das despesas ora cobradas.’ (fls. 146)’.
Desse
modo, patente o abuso da exigência feita pelo hospital réu que não se
desincumbiu, repita-se, de seu ônus de provar a licitude do contrato firmado,
era de se julgar procedente a ação.
Diante do
exposto, dá-se provimento ao recurso para julgar a ação procedente.”[ii]
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