quinta-feira, 11 de outubro de 2012



Por Rizzatto Nunes
Num de meus artigos do ano passado (de 18-4-2011) eu contei uma estória para  ilustrar o drama vivido por centenas de consumidores neste país. Vou transcrevê-la a seguir e depois continuo o presente.

Ei-la: 

José da Silva, usuário do plano de saúde X, que firmou para si e sua família, chega ao Hospital Y, para internar sua esposa que teve um ataque cardíaco. A situação é grave e ela necessita de atendimento médico urgente.
                                                    
Ele, tenso, vai ao balcão de atendimento da entrada de  emergência do hospital e entrega a carteirinha do plano de saúde. A atendente, então, com muita calma, num contraste muito forte com a dor do Sr. José, pede a guia de internação.
José está tão nervoso que sequer entende o pedido:
                    “Guia ? Que guia ?“.
                     “Para sua esposa dar entrada no hospital o senhor tem que me apresentar a guia de internação expedida pelo seu plano“, responde a mocinha do balcão, com uma frieza de mármore e, claro, lendo um roteiro escrito a sua frente.
Confuso, José gagueja e diz que não tem guia alguma. E, levantando a voz, assim, meio sem querer, aponta para sua mulher deitada na maca:   
                     “Ela teve um ataque… São duas horas da madrugada! Ela teve um ataque…precisa de ajuda…”
                      “Eu sei meu senhor. Eu sei. Mas este é o procedimento.”, devolveu a mármore que fala.

José já ia responder, quando a treinada funcionária hospitalar interviu:
                      “Mas, não se preocupe. Nós temos a solução. O senhor assine, por favor, um cheque-caução e me entregue que está tudo resolvido “
                       “O que é isso?”, perguntou, atônito, José.
                        “É o seguinte: o senhor deixa um cheque conosco; ele fica como garantia dos gastos aqui no hospital; se o plano de saúde não cobrir os valores que o hospital vai cobrar, então, nós depositamos o cheque”
                        “Mas, como? Se eu tenho plano de saúde é exatamente pra não ter que passar por isso. Veja minha mulher, ela está morrendo… Está morrendo!”.
                        “Calma, calma. É rápido. Pegue seu talão que eu vou calcular quanto é o valor para o preenchimento…”
                         “Eu… Eu não tenho talão de cheque aqui comigo”.
                         “Então me passa o relógio!”
                                            * * * * * * * *                                    

A narrativa da estória (tirando, claro, o pedido do relógio) mostrava o que acontecia regularmente nos atendimentos de urgência de muitos hospitais brasileiros. Por isso, evidentemente, a Lei 12.653, recentemente promulgada,  que tipificou o crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial é bem vinda[i]. Ela coloca uma pá de cal nos absurdos argumentos que sempre pretenderam justificar em Juízo a validade do procedimento.
Assim, escrevo este artigo não para falar do que já sabemos, mas apenas para lembrar que, como se trata de lei penal, a mesma não retroage e existem centenas de casos de abusos praticados anteriormente nos moldes em que a lei agora vem coibir expressamente. E, quero consignar que esses consumidores que foram violados no passado não estão desprotegidos. Isso porque, mesmo antes da introdução desse novo crime no Código Penal (CP) já era possível enquadrar a conduta lesiva dos hospitais nas normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e até do próprio CP.
Com efeito, o poder Judiciário já vinha anulando contratos obtidos desse modo abusivo pelos hospitais, com base nas normas em vigor. E mais: um elemento importante que foi considerado muitas vezes dizia respeito ao ônus da prova para a demonstração da lisura do procedimento. Entendia-se que havia presunção “juris tantum” de que, em internações hospitalares de urgência, os funcionários dos hospitais impunham seus contratos e títulos aos próprios pacientes ou seus acompanhantes.
Transcrevo, para terminar, trechos de uma dessas decisões:
“(…)conforme vem decidindo esta C. Câmara, toda vez que o consumidor alega que foi coagido a assinar contrato de prestação de serviço hospitalar ou o chamado cheque-caução numa internação de emergência, inverte-se o ônus da prova para que o hospital demonstre o inverso.
Isto é, há mesmo presunção juris tantum de que, em internações hospitalares de urgência, os funcionários dos hospitais impõem seus contratos aos próprios pacientes ou seus acompanhantes em flagrante violação ao sistema legal. Infelizmente, trata-se de prática conhecida que vige no setor.
Com efeito, a prática é claramente abusiva, conforme definido pelo Código de Defesa do Consumidor, no inciso V do artigo 39, que assim dispõe:
‘Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
V- exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.”
E, para se fixar o sentido de “vantagem manifestamente excessiva”, deve-se valer do § 1º do artigo 51 do mesmo diploma legal, que, por sua vez, dispõe:
‘§1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso’.
Não resta dúvida, portanto, de que a imposição de contrato ou título de crédito a ser assinado na véspera de uma internação de emergência é ilegal. E, se assim o é, como de fato se verifica, tal comportamento dos funcionários dos hospitais ___ claro, a mando dos administradores e proprietários destes ___ configura em tese o crime de constrangimento ilegal previsto no artigo 146 do Código Penal, assim tipificado:
‘Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.’

Esta C. Câmara vem decidindo nesse sentido regularmente. Por exemplo nas apelações 7.051.878-4, Des. Relator Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, j. 25.06.08, v.u. e 7.109.503-1, Des. Relator Rizzatto Nunes, 23ª Câmara de Direito Privado, j. 04.02.09, v.u.
Destaque-se do apelo nº 7.051.878-4, acima citado, o seguinte trecho que deixa patente o abuso:
‘Anote-se que a prática abusiva da autora contra a ré se deu no ato da internação, que se realizava em caráter de urgência, previamente a qualquer definição do valor final devido, que dependia de apuração, sem que fosse concedido tempo suficiente para a devida reflexão por parte da ré, dadas as condições da paciente.
Como bem apontado pela r. sentença atacada, ‘a conduta da autora, na hipótese, caracteriza verdadeira coação psicológica, a invalidar o termo de responsabilidade e a emissão da nota promissória referidos, sem o que nenhuma obrigação reste a cargo da ré, a respeito das despesas ora cobradas.’ (fls. 146)’.

Desse modo, patente o abuso da exigência feita pelo hospital réu que não se desincumbiu, repita-se, de seu ônus de provar a licitude do contrato firmado, era de se julgar procedente a ação.

Diante do exposto, dá-se provimento ao recurso para julgar a ação procedente.”[ii]

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