sábado, 16 de junho de 2012

Estatuto da Cidade e Plano Diretor.



         Considerando o Edital de Publicação da Escola da Defensoria Pública do Estado EDEPE referente a participação do Pré-encontro Estadual dos Defensores Públicos da área cível 2009  faço, neste momento, o pedido de inscrição  em conformidade com o que dispõe a Deliberação nº120 do Egrégio Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado de São Paulo:


Nome: Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo
Área de atuação: Civil, Processual Civil e Coletivo
Endereço: Av. Liberdade, 32, 7º andar
Telefone:  (11) 3105-5799

I Súmula


Nas ações de reintegração de posse em que o pólo passivo for integrado por população de baixa renda decorrente de ocupação coletiva, a violação da função social da propriedade por parte do autor ensejará a perda da posse/propriedade, restando-lhe tão-somente o direito de pleitear indenização ao Poder Público em razão da desapropriação indireta.



II Assunto


A presente proposta de tese possui o objetivo de trazer de forma sucinta uma explanação sobre o direito de propriedade, sua função social e a denominada desapropriação indireta.

Embora o direito de propriedade seja um direito fundamental, sua proteção só deve ser invocada quando o uso estiver em consonância com sua função social.

Não há que se falar em defesa do direto de propriedade caso não tenha sido dada a esta a função social que a Constituição lhe determina. Trata-se de nítido abuso do direito de propriedade.

Por outro lado, a Constituição Federal traz o direito à moradia digna como direito fundamental social, cuja política de desenvolvimento urbano incumbe ao Poder Público, dentro das diretrizes estabelecidas no Plano Diretor.

Vale dizer que o conceito de direito à moradia digna é muito mais amplo e complexo do que o próprio direito de propriedade. Basta verificarmos que para termos uma moradia digna não necessita obrigatoriamente termos a propriedade. Todavia, quando a Constituição elenca o direito à propriedade como direito fundamental traz direcionamento para que a propriedade seja exercida de acordo com sua função social.

Ou seja, é dever do Poder Público ordenar e planejar o desenvolvimento da cidade, como forma de garantir o direito de propriedade, de acordo com sua função social, o que gera, consequentemente, a garantia do direito à moradia digna e à cidade.

Para que a propriedade atenda sua função social, e, portanto, tenha a proteção constitucional, o direito à moradia acaba, muitas vezes, sobrepondo-se ao direito de propriedade, o que justifica admitir uma série de limitações a este último.

A Lei 10257/01 (Estatuto da Cidade), que regulamenta as diretrizes do desenvolvimento urbano das cidades, traz diversos instrumentos para a garantia da política urbana, dentre eles, a desapropriação.

Desta forma, embora a Constituição Federal garanta o direito de propriedade, sua violação, em razão da não atenção a sua função social, para garantia do direito à moradia e à cidade sustentável, o poder público deverá proceder à desapropriação da terra particular.

Muitas vezes o poder público se mantém inerte frente a violação à função social do direito de propriedade pelo seu titular, trazendo conseqüências diretas para o direito à moradia digna e à cidade de milhares de pessoas carentes.

Sabe-se que aproximadamente 50% (cinquenta por cento) da população brasileira vive, nos dias atuais, em centros urbanos. Entretanto, a migração do povo da área rural para a área urbana ocorre em meio a um sistema de segregação sócio-territorial, que gera, automaticamente, a migração deste povo do centro para a periferia.

Com isto, esta população excluída, para garantir a participação e usufruir das  beneficies da cidade, acabam dando função social a terras abandonadas, formando comunidades de famílias carentes em áreas particulares.

Com o “bumm” imobiliário do local, ou mesmo para forçar a venda da terra para aquelas simples pessoas que já ocupam o local há muitos anos, sem o devido atendimento à legislação de uso e parcelamento do solo, o dito proprietário promove ação de reintegração de posse para a remoção das famílias, ou mesmo, como dito, para coagi-las à compra. 

                              Todavia, aquela propriedade somente existe como uma abstração jurídica, pois, faticamente a terra recebeu destinação social, possui vida própria, contanto com uma realidade completamente distinta da simples propriedade reivindicada. Lá existe uma outra realidade urbana, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. O comércio está presente, serviços são prestados, moradias são vendidas, comprados, alugados, tudo a mostrar que a primitiva propriedade hoje só tem vida no papel.

                                      Assim, como incumbe ao poder público a implementação de uma política pública que garanta o direito à moradia digna, à propriedade, bem como o direito à cidade, resta somente ao proprietário reivindicar a devida indenização ao ente competente, haja vista a desapropriação indireta para  fins de interesse social, mantendo-se os posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído suas habitações e formandos núcleos residenciais, conforme dispõe o art. 2, da Lei 4.132 de 10.09.1962.

III Indicação dos itens específicos relacionados às atribuições institucionais da Defensoria Pública.

A aplicação da referida tese encontra seu fundamento nos artigos 1º, 2º, 3º e 5º, inciso VI, “b”, “e”, “g”, “i”, “l” c/c art. 52, parágrafo único, “5”, todos da Lei Complementar Estadual 988 de 09 de janeiro de 2006.
Deve-se salientar que a referida lei estabeleceu como fundamento de atuação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo a busca de uma solução justa para os casos que atuar.

Sabe-se que o direito à moradia é o direito humano mais violado no mundo. No Brasil não é diferente.

Milhões de pessoas sofrem com o déficit habitacional, tanto quantitativo como qualitativo.

Sem entrar em minúcias; existe uma cultura no sistema jurídico brasileiro de proteção quase que absoluta do direito de propriedade na sua dimensão individualista e patrimonial. Isto tem causado um “apartheid” social, já que a grande maioria da população sobre com a exclusão sócio-territorial.

A partir do momento que a terra ganhou o valor econômico que possui dentro do sistema capitalista, bem como o poder público, que tem o dever de garantir o direito social à moradia, à cidade e o pleno desenvolvimento urbano, deixa de implementar políticas públicas na referida área, haja vista que muitas vezes se mistura com o próprio detentor do poder econômico, a população de baixa renda acaba sendo excluída de direitos sociais indispensáveis para sua existência digna.

Neste sentido, senda a Defensoria Pública instrumento de garantia de direito fundamental, qual seja, o acesso pleno à justiça, a presente tese mostra extremamente relacionada com as atribuições institucionais, já que possui o condão de garantir o exercício efetivo da cidadania, com a mais ampla autonomia, indispensável para o sistema democrático.

IV Fundamentação jurídica

A fundamentação jurídica do presente trabalho encontra amparo na esfera constitucional, bem como no campo infraconstitucional.

A propriedade, antes da Constituição Federal de 1988, ainda que com previsão infraconstitucional, sempre teve uma proteção individualista. Neste sentido, o direito à propriedade atribuía ao seu titular o direito de usar, gozar e dispor da forma que melhor lhe aprouvesse.

Numa dimensão positiva, o direito à propriedade garantia ao seu titular o gozo exclusivo, sendo que, na dimensão negativa, o excluía de todos os demais.




Dispõe o art. 5º, XXII, da Constituição que :

”Art 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXII- é garantido o direito de propriedade;”

Com a promulgação da dita Carta Cidadã, o princípio da função social da propriedade foi elevado a nível Constitucional:

“Art. 5º (...)
XXIII- a propriedade atenderá sua função social;”

                                      Como senão bastasse, no sistema capitalista, cujo objetivo primordial é a cumulação de riquezas, a ordem econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios, propriedade privada e função social da propriedade." (art. 170, CF)

O que se constata é que a nova ordem constitucional deu um viés social ao direito de propriedade, esvaziando a concepção individual e privatista deste direito fundamental.

Por outro lado, a Constituição Federal a fim de concretizar seus fundamentos e objetivos, em especial, a fim de garantir o mínimo existência para o ser humano viver com dignidade, estabeleceu no art. 6º o direito social à moradia digna.

Portanto, embora se proteja o direito de propriedade, este só deveria receber o respaldo do Estado quando exercido de acordo com sua função social, o que de fato não ocorre!

O Poder Público, como órgão de Estado incumbido do dever de ordenar e planejar políticas públicas de desenvolvimento das cidades, como forma de garantir, consequentemente, o direito de propriedade, de acordo com sua função social, à moradia e à cidade, é omisso frente ao particular que descumpre a função social “de sua propriedade”.

Como dito, a terra é utilizada para fins exclusivamente econômicos; instrumento de especulação imobiliária, ou, quando menos, com o descaso próprio do poder econômico. Em casos com este, a terra é utilizada para fins especulativos (valorização), quando existe aproximadamente 7 milhões de pessoas sem um teto para morar.

Dispõe o Plano Diretor de São Paulo-PDE:

                                   “Da função social da propriedade urbana
                                   Art. 11 - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, no mínimo, os seguintes requisitos:
I - o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, o acesso universal aos direitos sociais e ao desenvolvimento econômico;
II - a compatibilidade do uso da propriedade com a infra-estrutura, equipamentos e serviços públicos disponíveis;
III - a compatibilidade do uso da propriedade com  a preservação da qualidade do ambiente urbano e natural;
IV - a compatibilidade do uso da propriedade com a segurança, bem estar e a saúde de seus usuários e vizinhos.
                                   Art. 12 - A função social da propriedade urbana, elemento constitutivo do direito de propriedade, deverá subordinar-se às exigências fundamentais de ordenação da Cidade expressas neste Plano e no artigo 151 da Lei Orgânica do Município, compreendendo:
                       I - a distribuição de usos e intensidades de ocupação do solo de forma equilibrada em relação à infra-estrutura disponível, aos transportes e ao meio ambiente, de modo a evitar ociosidade e sobrecarga dos investimentos coletivos;
                       (...)
VI - o acesso à moradia digna, com a ampliação da oferta de habitação para as faixas de renda média e baixa;

VII - a descentralização das fontes de emprego e o adensamento populacional das regiões com alto índice de oferta de trabalho;
                       VIII - a regulamentação do parcelamento, uso e ocupação do solo de modo a incentivar a ação dos agentes promotores de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação do Mercado Popular (HMP), definidos nos incisos XIII, XIV;

                             Art. 13 - Para os fins estabelecidos no artigo 182 da Constituição da República, não cumprem a função social da propriedade urbana, por não atender às exigências de ordenação da Cidade, terrenos ou glebas totalmente desocupados, ou onde o coeficiente de aproveitamento mínimo não tenha sido atingido, ressalvadas as exceções previstas nesta lei, sendo passíveis, sucessivamente, de parcelamento, edificação e utilização compulsórios, Imposto Predial e Territorial Urbano progressivo no tempo e desapropriação com pagamentos em títulos, com base nos artigos 5º, 6º, 7º e 8º da Lei Federal 10.257, de 10 de julho de 2001, Estatuto da Cidade.

                   Destarte, dispõe a Constituição Federal em seu art. 5º, inciso XXIV:

          “Art. 5º (...)

         XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.”

    Em consonância com o exposto, determina o art. 1º da Lei 4.132 de 10.09.1962 que merece ser aplicado:

“A desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem-estar social, na forma do art. 147 da Constitucional”.

E, mais adiante, preleciona o art. 2º da mesma Lei:

“Considera-se interesse social:
(...)
IV – a manutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído sua habitação, formando núcleos residenciais de mais de dez famílias;”

                       Para Hely Lopes MEIRELLES,[1]

“desapropriação ou expropriação é a transferência compulsória da propriedade particular para o poder Público ou seus delegados, por utilidade ou necessidade pública , ou ainda, interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro ( CF , art. 5º,XXVIV)”

Ora, se incumbe ao poder público o dever de garantir o direito à moradia e à cidade de todos, bem como o de planejar o desenvolvimento urbano, por meio de políticas públicas, como forma de construir uma sociedade mais livre, justa e solidaria, erradicando a pobreza e marginalização, como por exemplo, por meio da aplicação do instrumento da desapropriação de terra desocupada; óbvio que a ocupação coletiva e consolidada da propriedade particular que não recebeu de seu proprietário a devida utilização de acordo com a função social determinada pela Constituição, deu-lhe, de forma indireta, o tratamento legal para garantir uma distribuição justa da terra,  garantindo-lhe o bem estar social.

Podemos aplicar a esta consequência social decorrente da omissão, não só do particular, mas também do Estado, o instrumento da desapropriação, especificadamente, como denomina a doutrina, de desapropriação indireta.

Em eventual ação de reintegração de posse, cujo o autor não deu à terra a devida função social, e, simultaneamente,  exista posse coletiva e consolidada, restar-lhe-á somente exigir ao poder público, responsável pela política urbana, a devida indenização pela desapropriação indireta, haja vista que paira sobre o imóvel o interesse social de efetivar direito fundamental, qual seja, o direito á moradia digna.
  

Desta forma, reconhecendo-se a desapropriação indireta diante da obrigação do Poder Público de garantir o direito à moradia a toda população – como acima demonstrado, incabível se torna, assim, a ação, devendo a Autor(a) entrar com ação indenizatória frente ao Poder Público.

V fundamentação fática

Embora prevista em diversas normas infraconstitucionais, a função social da propriedade somente foi elevada a nível constitucional na CF88.

Por outro lado, ainda que previsto em diversos tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, o direito à moradia só foi introduzido na CF88 com a emenda constitucional nº26/2000.

Em 2001 foi promulgada a Lei 10257, que regulamenta o art. 182 e 183, ambos da Constituição, que traça diretrizes para a implementação de uma política pública para o desenvolvimento urbano.

Em 2005 foi criado o Ministério da Cidade, cuja função primordial é combater as desigualdades sociais, transformando as cidades em espaços mais humanizados, ampliando o acesso da população à moradia, ao saneamento e ao transporte.

Somente em 2007 teve início a elaboração de um Plano Nacional de Habitação, tendo como objetivo conhecer a realidade habitacional do país, seus déficit quantitativo e qualitativo, visando a melhor alocação dos recursos nos planejamentos locais.

Assim, o país ainda caminha, a passos lentos, na proteção efetiva deste direito fundamental.

Consequentemente, são poucos os operadores do direito que atuam efetivamente na busca por uma cidade mais justa, inclusiva e sustentável. O próprio judiciário, muitas vezes, se mostra desconhecedor da amplitude e da interdependência deste direito aos demais direitos fundamentais.

Existe uma cultura institucional enraizada de proteção da propriedade individual!

Se por um lado o Estado ainda não se apoderou do seu dever de garantir o direito à moradia e à cidade, a população, em sua maioria carente, por sua vez, clama por uma política pública de acesso à terra, já que vive há anos, ou melhor, desde o descobrimento deste país, um “apartheid” social.

Nesse sentido, brilhante acórdão proferido pelo Juiz Relator José Luiz Gavião de Almeida, do extinto 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, j. 27.08.2002, Ap. 823.916-7, 9ª Câm., atento à essa realidade social assim prelecionou:

“AÇÃO POSSESSÓRIA. Reintegração de posse – Invasão coletiva em área de terras particulares – Milhares de pessoas que, se desalojadas, não terão para onde ir – Fato que faz com que o princípio da função social da propriedade seja invocado – Particular que deve buscar no Poder Público a indenização a que faz jus decorrente da desapropriação indireta – Inteligência do art. 2º, IV, da Lei 4.132/62 e art. 5º, XXIII da CF”.

No mesmo acórdão preleciona este nobre julgador que o: 

“direito evolui, situação que, particularmente, atingiu o direito de propriedade. Não é mais possível idealizar a proteção desse direito no interesse exclusivo do particular, pois hoje princípios da função social da propriedade aguardam proteção mais efetiva. Não fora isso, a função do Judiciário, de solucionar conflitos de interesse, não pode desprezar a necessidade de pôr fim ao embate posto nos autos, mas de impedir, com a decisão dada, que outras lides venham a acontecer”.

 Com a retirada das pessoas do local, o problema não estará resolvido, ao contrário, novo conflito será gerado, pois estas pessoas, ocuparão outro espaço, seja público ou privado; somente aparentemente teríamos uma solução do Poder Judiciário.

Ante tal realidade, entendeu o I. Juiz supra mencionado que: “quando o Poder Público, responsável pela proteção de todos os cidadãos, inclusive dos aqui requeridos, permite durante muito tempo que muitos se instalem em determinado local, há de ser reconhecida a desapropriação indireta. É o sacrifício de um proprietário, indenizado entretanto por toda a sociedade, que servirá de solução a um conflito que se eterniza com a simples determinação de desocupação.”

Nas exatas palavras do ilustre Juiz Relator da Ap. Civ. 823.916-7 supra mencionada:

“Entendido que o imóvel de forma indireta desapropriado, não caberia a ação possessória que tem por finalidade recuperar a posse em decorrência da propriedade. Mas tendo havido perda desta, para o interesse público em disputa, a pretensão deve ser, tão-somente, a indenizatória, contra o Poder Público responsável pela política urbana”.

E, seguindo este entendimento, no qual deve ser dada a real eficácia aos direitos fundamentais, neste caso a função social da propriedade e o direito à moradia, decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“Ação reivindicatória – terrenos transformados em favela – função social da propriedade – direito dos proprietários de pleitear indenização” (Ap. Cív. 212.726-1-8SP, j. 16.12.1994).

Vale transcrever o trecho do acórdão proferido em Resp. pelo STJ, onde relata decisão do tribunal de Justiça de São Paulo:

“Pense-se no que ocorre com a denominada desapropriação indireta. Se o imóvel, rural ou urbano, foi ocupado ilicitamente pela Administração Pública, pode o particular defender-se logo com ações possessórias ou dominiais. Se tarda e ali é construída uma estrada, uma rua, um edifício público, o esbulhado não conseguirá reaver o terreno, o qual, entretanto, continua a ter existência física. Ao particular, só cabe
ação indenizatória.
Isto acontece porque o objeto do direito transmudou-se. Já não existe mais, jurídica, econômica e socialmente, aquele fragmento de terra do fundo rústico ou urbano. Existe uma outra coisa, ou seja, uma estrada ou uma rua, etc. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel.
Por outras palavras, o jus reivindicandi (art. 524, parte
final, do CC) foi suprimido pelas circunstâncias acima apontadas. Essa é a Doutrina e a Jurisprudência consagradas há meio século no direito brasileiro.
8 - No caso dos autos, a retomada física é também inviável.
O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito. É uma operação socialmente impossível.
E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível.
Ensina L. Recaséns Siches, com apoio explícito em Miguel Reale, que o Direito, como obra humana que é, apresenta sempre três dimensões, a saber:
'A) Dimensión de hecho, la cual comprende los hechos
humanos sociales en los que el Derecho se gesta y se
produce; así como las conductas humanas reales en las
quales el Derecho se cumple y lleva a cabo.
B) Dimension normativa (...)
C) Dimension de valor, estimativa, o axiológica, consistente en que sus normas, mediante las cuales se trata de satisfacer una série de necesidades humanas, esto intentan hacerlo con la exigencias de unos valores, de La justicia y de los demás valores que esta implica, entre los que figuran la autonomía de la persona, la seguridad, el bien común y otros.
(...) pero debemos precatarnos de que las três (dimensiones) se hallan reciprocamente unidas de un modo inescindible, vinculadas por triples nexos de esencial. implicación mutua.' ('lntroducción al Estudio Del Derecho', México, 1970, p. 45).
Por aí se vê que a dimensão simplesmente normativa do Direito é inseparável do conteúdo ético-social do mesmo, deixando a certeza de que a solução que se revela impossível do ponto de vista social é igualmente impossível do ponto de vista jurídico.
9- O atual direito positivo brasileiro não comporta o pretendido alcance do poder de reivindicar atribuído ao proprietário pelo art. 524 do CC.
A leitura de todos os textos do CC só pode se fazer à luz dos preceitos constitucionais vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida em confronto com a Constituição Federal, ou que se desenvolva paralelamente a ela. As regras legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal.
Ao mesmo tempo em que manteve a propriedade privada, a CF a submeteu ao princípio da função social (arts. 5º, XXII e XXIII; 170, II e III; 182, 2º; 184; 186; etc.).
Esse princípio não significa apenas uma limitação a mais ao direito de propriedade, como, por exemplo, as restrições administrativas, que atuam por força externa àquele direito, em decorrência do poder de polícia da Administração. O princípio da função social atua no conteúdo do direito. Entre os poderes inerentes ao domínio, previstos no art. 524 do CC (usar, fruir, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz um outro interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário. Veja-se, a esse propósito, José Afonso da Silva, 'Direito Constitucional Positivos', 5ª ed., p. 249/0, com apoio em autores europeus).
Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma, conflitivo consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos.
10 - No caso dos autos, o direito de propriedade foi
exercitado, pelos autores e por seus antecessores, de forma anti-social. O loteamento - pelo menos no que diz respeito aos nove lotes reivindicandos e suas imediações - ficou praticamente abandonado por mais de 20 (vinte) anos; não foram implantados equipamentos urbanos; em 1973, havia árvores até nas ruas; quando da aquisição dos lotes, em 1978/9, a favela já estava consolidada. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação não se pode prestigiar tal comportamento de proprietários.
O jus reivindicandi fica neutralizado pelo princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece a eventual pretensão indenizatória em favor dos proprietários, contra quem de direito.
Diante do exposto, é dado provimento ao recurso dos  réus para julgar improcedente a ação, invertidos os ônus da sucumbência, e prejudicado o recurso dos autores." (Recurso Especial nº 75.659 – SP (1995/0049519-) Rel. Min. Aldir Passarinho Junior)”

VI Sugestão de operacionalização

A tese proposta pode ser utilizada tanto em sede de contestação/embargos, bem como em recursos (agravo de instrumento, apelação, recurso especial e até mesmo em recurso extraordinário ).
Em regra, a comunidade, tomando conhecimento da ação de reintegração de posse, se dirige até a Defensoria Pública do Estado, ocasião que, dentro do prazo, poder[íamos ofertar contestação a fim de obstar o referido pedido de reintegração.

Fora do prazo de defesa, nada impede que possamos utilizar da tese aqui exposta tanto por meio de recursos como propriamente por meio de ação autônoma, haja vista a legitimidade para a propositura de ação civil pública para tutelar interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Conforme dispões a Carta Mundial do Direito à Cidade, extraída do Fórum Social das Américas – Quito – Julho 2004 e do
Fórum Mundial Urbano – Barcelona – Outubro 2004, o direito à cidade é um direito difuso pertencente as presentes e futuras gerações!!!

De forma resumida e simplista, são pressupostos para a aplicação desta tese: a) a existência de uma ação em curso; b) a violação da função social da propriedade por parte do autor; c) que haja no local uma ocupação coletiva consolidada; d) o exercício da função social da propriedade e da cidade por parte dos ocupantes.

Porquanto, esta é a proposta de tese que se apresenta para este I. Colegiado.

Fonte: Considerando o Edital de Publicação da Escola da Defensoria Pública do Estado EDEPE referente a participação do Pré-encontro Estadual dos Defensores Públicos da área cível 2009  faço, neste momento, o pedido de inscrição  em conformidade com o que dispõe a Deliberação nº120 do Egrégio Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado de São Paulo:


Nome: Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo
Área de atuação: Civil, Processual Civil e Coletivo
Endereço: Av. Liberdade, 32, 7º andar
Telefone:  (11) 3105-5799




[1] MEIRELLES Hely Lopes, Direito Administrativo, Malheiros, SP. 2001

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