“As cinzas do vulcão e a
responsabilidade civil das companhias aéreas
LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador
Uma questão jurídica que tem gerado polêmica no tema da responsabilidade civil do transportador é a da definição do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão.
Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil
no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a
teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o
mercado de consumo – que, diga-se, não lhe pertence – e nessa empreitada, na
qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras,
ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter
prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de
monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o
que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base).
O risco tem relação direta com o exercício da
liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz por que quer; é
opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou
de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços
por ele colocados no mercado podem ocasionar. O outro lado do risco da atividade
é o do risco social engendrado pela exploração do mercado. A simples colocação
de produtos e serviços gera esse risco. Inexoravelmente, a existência em si do
empreendimento traz potencialmente risco de danos às pessoas.
Decorre disso que, quem se estabelece deve de
antemão bem
calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas
também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que
advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar
desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém
quer se estabelecer como transportador de pessoas deve saber calcular as
eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente
irão ocorrer.
O CDC, fundado na teoria do risco do negócio,
estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil
objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por
culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no
art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na
verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São
elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa
exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II).
Vê-se, portanto, que a lei consumerista não inclui
como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás,
nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa).
Acontece que o Código Civil de 2002 regulou
amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o
seguinte:
“Art. 734. O transportador responde pelos danos
causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior,
sendo nula qualquer cláusula excludente a responsabilidade”.
Pergunto: existe incoerência ou contradição entres
esses dois textos legais? A resposta é não. Isso
porque, quando o Código Civil fala em força maior, está claramente se referindo
ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da
atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa
do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está
afastando quando os mesmos digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da
atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código
de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantém o nexo de causalidade e a
responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado
por força maior e fortuito internos.
Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito
interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem
previstos no cálculo) pelo transportador nem por ele evitado. Todavia, não
elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que
sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e
inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o
dever de indenizar.
O risco da atividade implica na obrigação imposta
ao empresário para que ele faça um cálculo, da melhor forma possível das várias
possibilidades de ocorrências que possam afetar seu negócio. Certos
fatos, necessariamente implicam agravamento do risco em função de sua
latente possibilidade de ocorrência e, por isso, uma vez ocorrendo, não excluem
o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o
caso das ocorrências da natureza, tais como tempestades e nevoeiros, no caso do
transportador aéreo. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de
evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os
passageiros que sofreram danos porque o fenômeno – que, aliás, ocorre
constantemente -- é integrante típico do risco daquele negócio.
Quando se trata de fortuito externo, está se
fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como
fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco
profissional. E, é aqui que eu coloco o caso do vulcão. A erupção de um vulcão
é típica de fortuito externo porque não pode, de modo algum, ser
previsto. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz
modernamente, tsunami). Desse modo, penso que não respondem as companhias
aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas
geradas pelas cinzas do vulcão e que impedem a navegação. Resguardados, claro,
os direitos dos passageiros de remarcação de passagens e cancelamento da
reserva com recebimento imediato dos valores pagos.
Já que estou tratando desse assunto, não posso
deixar de abordar uma questão bastante discutida, relativamente ao evento de
terceiro nessa questão da responsabilidade objetiva. Para excluir o nexo de
causalidade, há necessidade do fato do terceiro ser de tal modo que não pudesse
ser previsto como possibilidade dentro da estrutura do risco em cada espécie de
negócio. Serve de exemplo o caso de ataques feitos por vândalos às composições
ferroviárias, atirando pedras nos passageiros. Penso que a doutrina mais
abalizada é aquela que entende que se trata de risco da atividade previsto no
modo de oferta do serviço, de tal maneira que o usuário atingido deve ser
indenizado pelo transportador. E, por causa desse exemplo, vale que se dê uma
explicação, pois o risco da atividade muda com o passar do tempo.
Há cerca de vinte ou trinta anos, quando esses
eventos não se davam com regularidade, poder-se-ia dizer que eram fatos típicos
de terceiros a excluir o dever de indenizar porque não faziam parte do cálculo
do risco. Mas, na medida em que foram se tornando mais frequentes, não puderam
deixar de ser considerados. E, lamentavelmente, esse tipo de vandalismo se
multiplicou. Desse modo, acabaram sendo incorporados no cálculo do risco, pois
não podiam mais ser ignorados. Eles passaram a existir como possibilidade de
existência no âmbito daquele negócio. O evento, apesar de inevitável, é
atualmente previsível.
O evento produzido por terceiro capaz de evitar a
responsabilidade tem de ser aquele, não só inevitável, como não faça parte do
risco da atividade, isto é, que não tenha qualquer relação com a atividade do
fornecedor. Cito um exemplo: suponha-se que uma pessoa queira se vingar de um
inimigo e resolva matá-lo. Determinado, ele segue o desafeto até o cinema
e lá dentro causa-lhe a morte. Trata-se de um evento que incidentalmente ocorreu
no local onde se prestava um serviço, mas que com ele não tem nenhuma relação e
nenhuma conexão. É fato típico de terceiro a excluir a responsabilidade do
prestador do serviço.
E, para terminar, tenho de falar dos passageiros
que foram obrigados a mudar seus planos de viagens por causa do vulcão. Os
cancelamentos envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats,
pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o
terrestre e marítimo a eles ligados, os traslados terrestres, os passeios
previamente contratados etc. A pergunta que se faz é: pode o fornecedor cobrar
multa do consumidor que faz o cancelamento ou reter a entrada já paga? Ou,
pior, pode se negar a aceitar o cancelamento? A resposta é evidentemente não.
Normalmente, nesse tipo de atividade, quando o
consumidor desiste de empreender a viagem, é permitido que se cobre uma multa
pela desistência, desde que esta não seja abusiva. O percentual dessa multa
varia de acordo com as circunstâncias de cada negócio empreendido e somente
pode ser avaliado em cada caso concreto. Por exemplo, a cobrança de 10% do
valor da diária ou do passeio é considerado legal. Mas, no caso tratado, como
disse, nada pode ser cobrado. Isto pelo mesmo motivo analisado neste artigo.
Quando o empresário do setor hoteleiro se
estabelece e passa a oferecer seus produtos, evidentemente, assume o risco de
sofrer certas perdas advindas de cancelamentos legítimos e também de não
efetuar vendas. Esse risco é inerente à própria atividade e deve fazer parte,
como mostrei, do cálculo do risco/custo/benefício efetuado. Lembro--ademais
que, como risco típico da atividade, o mesmo não pode ser repassado ao
consumidor (anoto um dos direitos básicos do sistema capitalista: o consumidor
não assume riscos. Apenas adquire os produtos e serviços oferecidos e deles
desiste dentro das regras jurídicas estabelecidas).
Repito: no caso, o risco típico do não
preenchimento das vagas oferecidas, da não entrega do produto ou do serviço
prometido é do fornecedor. Some-se a isso, com mais força de razão, o
fundamento legal e legítimo da desistência operada pelo consumidor, que se viu
obrigado a fazê-la por razões alheias à sua vontade”.
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