“Bioética e religião
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
Os debates em curso sobre a legalização ou a proibição de práticas como o aborto, a eutanásia, o uso de drogas, incluindo até mesmo os limites de velocidade nas cidades ou estradas e o uso obrigatório do assento infantil nos carros, mostra o quanto a proteção da vida requer uma intervenção direta e específica dos parlamentos e autoridades civis.
A par disso, a abolição
gradual da religião no ambiente atual de secularismo relativista é vista como
uma evolução necessária da humanidade, para que esta possa avançar no
caminho da liberdade e do progresso científico. Nesse vácuo de valores, não
teria começado a se destacar uma outra forma de poder que, inicialmente, com
uma tonalidade puramente beneficente e digna de aplauso, não seria, na verdade,
um novo tipo de ameaça para o ser humano?
Ao que parece, o homem, ao ter
condições de produzir seres humanos dentro da proveta ou mesmo de
eliminá-los no ventre materno ou num leito hospitalar, tornou-se um
produto perfeito e acabado de si mesmo. Causa-me a impressão de que o
homem desceu às nascentes do poder de onde brota sua própria existência no afã
de querer construir o ser humano perfeito, na tentação
de instrumentalizá-lo e na loucura de considerar a si próprio
como uma coisa descartável.
Tais desejos deixaram de ser uma
criação teórica absurda de uns moralistas retrógrados. Se várias correntes
científicas duvidam da religião como uma força moral positiva, temos de
admitir, agora, que se duvide da confiabilidade da pura razão. Afinal de
contas, a bomba atômica também foi produto da razão, assim como a criação,
a seleção ou a morte de seres humanos foram engenhadas pela razão.
Não seria o caso de a bioética e
a religião se limitarem mutuamente, mostrando uma à outra as respectivas
fronteiras naturais, para que possam prosseguir em seu caminho positivo de mãos
dadas?
Por outro lado, penso que seria
de pouca utilidade para a própria religião negar a legitimidade e a necessidade
de uma reflexão racional e filosófica sobre os limites de atuação da bioética:
o crente teria apenas razões de natureza sobrenatural, as quais, por si só, não
sustentariam o convencimento alheio. A ninguém é dada a dispensa de refletir
sobre os fatos humanos à luz da razão, cujo peso e valor são inestimáveis.
Esse reencontro entre bioética e
religião, entre razão e revelação é tanto mais necessário quanto urgente,
diante do incessante avanço das ciências experimentais e depois do longo
período de “silêncio da metafísica”, que deixou a compreensão da realidade
humana à mercê das veleidades dos poderes políticos, nascidos no seio do
materialismo, do absolutismo, do historicismo e, posteriormente, desenvolvidos
no meio do relativismo hoje reinante.
Cada ser humano é portador em seu
coração, por assim dizer, de uma bioética interior dotada de uns
princípios, pois o assento dos valores nunca
permanece vago. Aqueles que utilizam células-tronco adultas nas pesquisas
científicas ou defendem a dignidade da vida de um doente
terminal agem segundo certos princípios éticos.
Os campos de atuação da bioética
são tão amplos que a própria bioética necessita dialogar continuamente com
inúmeras disciplinas e, também, com o rico e bimilenar aporte teórico sobre a
humanidade, da qual a Igreja é perita e depositária.
Assim, a bioética e a religião,
em outras palavras, a ciência e a fé, podem contribuir efetivamente para
denunciar as ações que vão contra a dignidade da pessoa humana e para promover
comportamentos concretos que auxiliem o homem a não se transformar em
instrumento de si mesmo. Da engajada turma do proselitismo anticlerical, depois
destas linhas, que venham os tomates: pelados e italianos, por favor. Salvo
melhor juízo, é o que penso”.
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