“ O normal é
sempre lícito e moral?
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
Autor: Professor do Instituto
Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br)
O que é freqüente é normal? E o que é normal é necessariamente lícito? Eis uma das inúmeras questões da moralidade coletiva deste século. A moral é um assunto de foro particular e, portanto, relacionada ao indivíduo.
O homem, contudo, vive em sociedade e, indissoluvelmente,
tem uma vida individual encadeada com a vida coletiva, e, por consequência, a
vida moral está condicionada (e não determinada) naturalmente pela situação
social em que se vive, pelo conjunto de usos e costumes, de regras e pressões
sociais.
Diante da natureza pessoal da moral, o
fator categórico é a liberdade: o homem é dotado de responsabilidade, o homem
realiza sua vida, mas, evidentemente, na medida em que as circunstâncias o
consentem. Todavia, o projeto é próprio. Cada qual vislumbra seus projetos de
vida e tenta realizá-los, mas sob o influxo das inumeráveis circunstâncias
sociais.
A liberdade, sempre fundamental e
decisiva, faz também com que o homem seja responsável por seus atos: eu sou
responsável, não pelo conteúdo último da minha vida nem por aquilo que me afeta
do exterior, mas sim por aquilo que escolho, prefiro e decido dentro das
possibilidades. Eu sou eu mais minhas circunstâncias.
O homem atual é afetado por uma série
de interpretações da realidade que, muitas vezes, têm uma conotação moral.
Surgem modos de vida e de família, de relacionamento humano e de ética
política, que são, sob certo ângulo de vista, juízos valorativos, favoráveis ou
desfavoráveis conforme o caso concreto e, não raro, apresentam-se como normais
só porque são frequentes.
Penso que esta identificação emerge com
algum perigo: considerar o frequente como normal, o normal como lícito e o
lícito legalmente como se fosse moral. A conclusão nem sempre é válida. Pode
haver situações frequentes que não são normais. Pode haver conjunturas normais,
mas que, apesar disso, nem por isso são lícitas. Pode haver coisas lícitas
legalmente, porém que não o são moralmente.
Lembre-se que a palavra “moral” deriva
do substantivo latino “moris”, que significa costume. Ou seja, os costumes têm
um caráter moral, vivem-se como algo que tem condição moral e, evidentemente, a
moral é afetada pelos costumes. Desde pequeno, sempre se ouve falar de “bons
costumes” ou “maus costumes”, diante dos quais o homem, saliente-se, é sempre
livre.
Em última análise, o homem pode acatar
as infinitas vigências sociais ou resistir a elas, mas deve submetê-las ao
ponderável. A vigência é algo dotado de força e, logo, devo sopesá-la,
precisamente porque exerce pressão. No entanto, no final das contas, sempre
posso recusar ou aceitar, com veemência ou mesmo frouxamente. Não se trata de
tarefa fácil e, na prática, a vida coletiva fica influenciada por este sistema
de pressões.
Quando se age de acordo com os bons
costumes, eles criam, em suma, hábitos. Em razão disso, não se circunscrevem a
fazer bons cidadãos do ponto de vista da conduta externa, o que se dá por
intermédio das leis. Também influenciam a moralidade do homem, ao contribuir
para formar virtudes.
No terreno da moral, sendo a vida
social uma realidade moral, a boa ação só é alcançada pelo hábito das potências
humanas especificamente pessoais: prudência, em relação à razão prática, e
justiça, fortaleza e temperança, por parte da vontade. O homem não tem outro
modo de agir neste campo.
Como a maioria das virtudes não são
inatas, mas adquiridas pela repetição de atos, as leis, compelindo a agir
segundo uma virtude, acabam conseguindo que quem as obedece alcance as virtudes
correspondentes. O motorista que cumpre o Código de Trânsito assume, com o tempo,
o hábito de dirigir prudentemente, respeitando a si e aos outros condutores e
pedestres. Eis um importante aspecto das relações entre o lícito legalmente e a
moral.
As leis não são indiferentes no que
toca à formação e ao comportamento morais do homem. Pelo contrário, influem
neles intensamente, contribuindo, de modo notável, para dotar com maior vigor
os bons costumes.
Separar em categorias estanques o
normal, o lícito e o moral, como se fossem mundos isolados e sem relação mútua,
supõe uma concepção adulterada da realidade. Hoje, é propagada pelos defensores
desse sonho que chamam de Estado moralmente neutro, assunto já abordado em
outros artigos.
As condutas frequentes, tidas como
normais, quando em desacordo objetivamente com o lícito legal ou até mesmo a
moral, afetam a ordem humana de maneira danosa, pois maculam o efeito
proporcionado pelas ações praticadas segundo aqueles ditames.
Na ordem humana, o homem tende a agir
segundo as virtudes ou os correspondentes vícios. Por isso, o normal, o lícito
e o moral caminham sempre de mãos dadas. Pretender uma postura dissonante é
cair no mais puro irrealismo. Não existe alternativa. Aliás, existe: a
alternativa da utopia”.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br)
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br)
http://www.epm.tjsp.jus.br/Internas/ArtigosView.aspx?ID=15408.
Acesso: 14/03/2013
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