“Homicídio sem cadáver?
Antônio Sérgio Tonet*
A intensa exposição na mídia do provável homicídio da modelo
Eliza Samúdio, que teria ocorrido no mês de junho de 2010, com o envolvimento
do goleiro do Flamengo Bruno Fernandes das Dores de Souza, e participação de
pessoas de seu convívio, tem suscitado interessante discussão sobre a
possibilidade de os réus serem processados e condenados por crime de homicídio
mesmo diante do desaparecimento do cadáver.
Sem entrar no mérito do caso, o assunto gerou polêmica não
apenas entre a população leiga, mas também entre os versados no Direito.
Tratando-se de crime de homicídio, há ainda outra
particularidade. Não é o Juiz de Direito quem julga o fato, mas a própria
sociedade, por meio do Tribunal do Júri, que detém soberania para tanto,
determinada pela própria Constituição.
Vale dizer, os tribunais superiores, inclusive o Supremo
Tribunal Federal, não podem alterar a decisão.
Assim, se o Júri absolveu ou condenou o réu, o Tribunal de Justiça,
por exemplo, não pode dar outra sentença quanto ao mérito.
No máximo, pode anular a decisão por alguma eventual nulidade
e determinar que novo julgamento seja feito pelo mesmo Tribunal do Júri.
Voltando à polêmica, aqueles que defendem a necessidade de se
encontrar o corpo da vítima para que o réu seja efetivamente condenado se
sustentam na tese de que o crime de homicídio é de natureza material, ou seja,
deixa vestígios.
No caso, o exame de corpo de delito poderia ser feito somente
por meio de perícia diretamente realizada no cadáver. Sem essa prova, sempre
haveria dúvidas sobre a efetiva morte da vítima, ou seja, da própria
materialidade do crime.
Os adeptos dessa corrente sempre citam o “Caso dos Irmãos
Naves”, ocorrido na Comarca de Araguari – MG na década de 1930, que se tornou
famoso no Brasil por causa da grande injustiça que se fez com os irmãos Joaquim
e Sebastião, os quais, torturados, confessaram o homicídio do primo Benedito
Pereira Caetano.
Este, na verdade, havia fugido da cidade em razão de dívidas.
Os irmãos Naves foram absolvidos, por duas vezes, pelo Júri.
Porém, como naquela época o Tribunal do Júri não detinha
soberania, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais reformou a decisão e
condenou os irmãos a dezesseis anos de reclusão.
Depois de cumprida a pena, a suposta vítima apareceu viva na
Cidade de Ponte Nova – MG, em 1952, dizendo, até, que não sabia do que tinha
acontecido com os primos!
Histórias à parte, o fato é que tem prevalecido, inclusive no
Supremo Tribunal Federal, o correto entendimento segundo o qual um crime de
homicídio não pode ficar impune somente porque o homicida cuidou de esconder,
para ninguém nunca encontrar, ou destruir o corpo da vítima.
Há casos em que os homicidas queimam o corpo da vítima e
espalham suas cinzas pelo ar; noutros, enterram-no em lugares jamais imaginados
pela polícia; há registro até mesmo de destruição total do cadáver com ácidos
poderosos.
Assim, esfumado o cadáver, ou seja, desaparecidos os
vestígios materiais, é possível a realização daquilo que em Direito se chama
exame de corpo de delito indireto, com base em provas outras que não a perícia
no cadáver da vítima, mas que do mesmo modo pode atestar a materialidade do
crime de homicídio.
Nesse contexto, de importância capital a existência de
testemunhas que relatem situações que revelem que o acusado realmente está
implicado na morte da vítima e sumiço do corpo. A delação de comparsas também
constitui valioso elemento de prova para se demonstrar indiretamente a
materialidade.
Além disso, hodiernamente a polícia conta com eficientes provas científicas e periciais,
tais como exame de DNA; degravações de conversas telefônicas judicialmente
autorizadas; definição, a partir de sinais de celular ou de GPS, da localização
dos suspeitos no momento em que ocorria o crime, entre outras.
E tais provas, devidamente concatenadas e harmônicas com
testemunhos ou delações, podem compor o exame de corpo de delito indireto e
regularmente convencer a Justiça da ocorrência do crime de homicídio.
Aliás, no Habeas Corpus n.º 78.719, relatado pelo magistral
ministro Sepúlveda Pertence, o STF autorizou o recebimento de denúncia do
Ministério Público e o início de processo por homicídio, mesmo sem se ter no
caso descoberto o cadáver, pois “a ausência de exame necroscópico é
irrelevante, desde que demonstrada a morte por outras provas”.
Por sua vez, em recente julgamento, o Superior Tribunal de
Justiça decidiu que, se os “homicídios têm por característica a ocultação dos
corpos, a existência de prova testemunhal e outras podem servir ao intuito de
fundamentar a abertura da ação penal, desde que se mostrem razoáveis no plano
do convencimento do julgador” (Habeas
Corpus n.º 79.735/RJ).
Como mencionado, tratando-se de crime de homicídio, quem dá a
palavra final é a própria sociedade, por meio do Tribunal do Júri. Mas até esse
julgamento, há outras decisões que cabem ao juiz de Direito.
Primeiro, ele deve decidir se recebe a denúncia do promotor
de Justiça; recebendo-a, e depois de ouvidas as testemunhas da acusação e da
defesa, deve analisar se há indícios razoáveis da materialidade e da autoria do
crime e decidir se envia o processo para o Tribunal do Júri, pronunciando o
réu. Em todas essas decisões, o problema da ausência do cadáver deve ser
enfrentado.
Nesse contexto, é importante que o Ministério Público e o Poder Judiciário, nunca deixem de
observar as garantias constitucionalmente asseguradas aos acusados em geral e
que, para a condenação, haja elementos probatórios sérios, ainda que indiretos,
de que se deduza por lógica estrita a morte da vítima e o envolvimento do
acusado.
Por fim, quanto ao caso da modelo Eliza Samúdio, concluídos
os trabalhos da polícia, devemos aguardar o posicionamento dos promotores de
Justiça que nele atuam, do juiz de Direito responsável pela instrução do
processo, do Tribunal de Justiça no julgamento de habeas corpus e de possíveis
recursos da defesa e, por último e o mais importante, o soberano julgamento a
ser feito pela comunidade do local onde o crime ocorreu, por meio do Tribunal
Popular do Júri”.
Procurador de Justiça Criminal; ex-promotor de Justiça do I
Tribunal do Júri de
BH
Este artigo foi publicado no caderno Direito e Justiça, do
Estado de Minas, em de 6 de agosto.
http://www.ammp.org.br/inst/artigo/Artigo-8.pdf
Acesso: 20/11/2012
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