terça-feira, 6 de novembro de 2012



Vários novos problemas rondam o consumidor brasileiro, já tão violado e ultrajado. Uma tática é conseguir através de lobbies políticos inserir artigos “ocultos” em projetos de lei que tem objetos muito diversos daquele que cuida o artigo. Como demonstrarei na sequência, essa técnica é não só antidemocrática como viola o sistema jurídico brasileiro. Um caso flagrante desse método é o do parágrafo 1º do art. 28 da Lei 10.931/2004, que pretende permitir a capitalização de juros por instituições financeiras. É uma norma enxertada numa lei que cuida dos recursos financeiros advindos da receita da União estabelecendo um mecanismo de conta única (conforme seu artigo 1º). Ora, a norma inserida não tem nenhuma relação com o objeto da lei. Há também o caso do artigo 26 da Lei 10.931/04 que criou a Cédula de Crédito Bancário, escondida numa norma que criou o “regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias...” (conf. seu art. 1º).

Vejam agora um novo caso que está para ocorrer e que merece atenção especial de nossos parlamentares: o do projeto de lei que trata do programa habitacional “Minha Casa Minha Vida”. O objetivo principal do projeto é facilitar a construção de habitações populares. Mas, eis que, de repente, uma emenda ao projeto mandou acrescentar o parágrafo 2º no artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), com o seguinte teor: “Não se considera abusiva a fixação de preço diferenciado na venda de bens ou na prestação de serviços pagos com cartão de crédito em relação ao preço à vista, desde que o consumidor seja inequívoca e ostensivamente informado pelo fornecedor a esse respeito”

Ou seja, um verdadeiro disparate. A inserção dessa alteração no CDC não tem nenhuma relação com o objeto do projeto de lei.
 

Muito bem. A verdade é a seguinte: se, de fato, parlamentares brasileiros querem aprovar uma lei para permitir que os comerciantes fixem preço diferenciado para pagamento com cartão de crédito, devem fazê-lo abertamente para que toda a sociedade possa discutir a questão e não às escondidas, de modo a surgir de um meio de uma selva de palavras atacando o consumidor.

A Lei Complementar nº 95 de 26-2-1998 proíbe esse tipo de artimanha. Ela é uma norma de organização do sistema jurídico, dispondo sobre a elaboração e consolidação das demais leis e diz como o legislador deve produzir um texto de lei, separando-o por capítulos, artigos, parágrafos etc. É norma que se aplica inclusive às medidas provisórias. Seu artigo 7º foi escrito exatamente para impedir uma prática que estava se tornando comum: a de se aprovar uma determinada lei, cuidando de um assunto e, no meio, entre seus artigos, “escondido”, o legislador colocar outro tema desconectado do objeto da norma editada.

O referido artigo é claro. Diz que, excetuados os códigos, cada lei tratará de um único objeto (inciso I); diz também que a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão (inciso II); fixa que o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva (inciso III); e estabelece que o mesmo assunto não pode ser disciplinado por mais de uma lei, exceto se a lei subseqüente se destinar a complementar lei anterior considerada básica (inciso IV).
 

É por isso que não pode o legislador aprovar uma lei para tratar de determinado assunto e, aproveitando o ensejo, inserir dentro dela regras cuidando de outro assunto divorciado de seu objeto.

Dito isso, aproveito o tema de hoje para explicar porque não se pode exigir preço diferenciado parta pagamento com cartão de crédito.


O que vem a ser preço?

O consumidor brasileiro tem uma experiência bastante negativa com os preços em geral, fruto do longo processo inflacionário que assolou o país. Perdeu-se a correta noção de seu significado.

Preço é sempre à vista

Anoto primeiramente que, atualmente, os preços são livres e podem ser fixados unilateralmente pelo fornecedor. Mas, uma vez fixados eles somente existem à vista. Explico.

Não se pode confundir preço com forma de pagamento. Esta pode ser a prazo, com 30, 60, 90 dias ou mais; em 2 ou 3 parcelas iguais, financiada por instituição financeira; pode ser paga com cheques pré-datados; mediante carnê de pagamentos; com cartão de crédito ou qualquer outro meio de pagamento.

A forma pode variar, mas o preço tem de ser o mesmo que foi estipulado à vista da compra.


Não existe preço a prazo, mas apenas pagamento a prazo.

Se o preço à vista é R$100,00 e o pagamento é a prazo, só é possível cobrar juros em operação sustentada por instituições financeiras (são as únicas autorizadas a cobrarem juros remuneratórios).

Se o fornecedor cobra R$ 100,00 à vista e recebe cheque pré-datado para 60 dias, não pode dizer que para 60 dias o preço é R$ 120,00. Essa tem sido uma prática comum, abusiva e ilegal. Nesse exemplo, veja-se que não foi o preço que variou, uma vez que o bem não tem dois preços no ato da compra. O que o fornecedor fez foi cobrar acréscimo ilegal.

A melhor maneira de deixar esse assunto plenamente esclarecido é usar o exemplo do escambo (que aqui defino como troca de um produto por outro produto). Suponhamos que um consumidor pretenda comprar uma cadeira que lhe falta para um jantar que irá dar em casa. Vai à loja de produtos usados e encontra exatamente a cadeira que precisa. Daí pergunta o preço para o vendedor. “São R$ 100,00”, responde este.

O consumidor diz que não tem dinheiro para pagar a cadeira, mas explica que o preço é exatamente o que vale o paletó que está usando.

Pergunta se o lojista aceita a troca. Ele aceita. O negócio está fechado. Preço adequado: R$ 100,00 da cadeira, igual aos R$ 100,00 do paletó. Forma de pagamento: escambo. Mas, antes de sair do estabelecimento, o consumidor propõe: “Olha, eu gostaria de usar o paletó uma última vez no jantar de amanhã, sábado, e preciso da cadeira. Posso levar a cadeira e trazer o paletó segunda-feira?”.

O vendedor concorda. Logo, a compra foi feita, mas o pagamento (entrega do paletó) foi postergado para três dias depois. Isso equivale a dizer que o preço foi fixado à vista e a forma de pagamento a prazo. O preço não podia mesmo variar. O fato é que, quando o fornecedor diz que o preço varia, não é este que aumenta: o acréscimo é simples tentativa de recebimento de remuneração sobre a quantia não recebida à vista. E, repita-se, trata-se de financiamento lícito somente se feito por instituição financeira.

Assim, se o fornecedor aceita parcelar o recebimento do preço de R$ 100,00 em 4 vezes, mediante a entrega de 4 cheques pré-datados, estes têm de ser de R$ 25,00 cada um (ou de valores diferentes, mas sempre num total de R$ 100,00: 2 de R$ 20,00 mais 2 de R$ 30,00; 2 de R$ 10,00 mais 2 de R$ 40,00; 3 de R$ 15,00 mais 1 de R$ 55,00 etc.).

Poder-se-ia argumentar que uma forma de burlar essa realidade jurídica é embutir o acréscimo futuro no preço à vista e quando for feito parcelamento nada se acrescenta. Se for pago à vista, dá-se um desconto. Mas esse argumento não resiste.

É que, se for dado desconto para pagamento à vista, então o preço só pode ser o resultado líquido: como dissemos, o preço é sempre o pago à vista. Logo, no pagamento parcelado aparecerá o acréscimo.

Mas, por outro lado, o fornecedor pode embutir o acréscimo e não dar desconto. O problema é dele, já que seu preço terá subido. Talvez ele tenha dificuldade em vender o produto, que ficou caro.

Risco e custo da atividade

Quando o comerciante estipula dois preços: uma para pagamento em dinheiro ou cheque e outro (mais caro) para pagamento com cartão de crédito, o que ele está, de fato, fazendo é transferir para o consumidor o custo de sua atividade. Todos sabem que ele faz isso porque a administradora do cartão lhe cobra percentual para sua utilização. Mas, isso é custo de seu negócio. É custo tal qual o aluguel que ele paga pelo estabelecimento, os juros que paga ao banco, os salários de seus empregados, os impostos etc. Se a moda pega, daqui a pouco alguns estabelecimentos estarão cobrando preço diferenciado em função ao aumento do IPTU ou da custo da eletricidade gasta com o ar condicionado. Ou, então, cobrando preço diferenciado para pagamento com cheque no fim de semana, porque ficará dois dias sem receber o dinheiro etc.

Repito: tudo isso é custo do negócio e é com base nesse custo que o comerciante calcula o preço de seus produtos. Mas, uma vez fixado o preço ele não pode ser diferenciado”


Autor: Rizzato Nunes.
Sou professor e escritor, minhas mais antigas profissões. Fiz minha carreira acadêmica na PUC/SP, lá obtendo os títulos de Mestre e Doutor em Filosofia do Direito e Livre-Docente em Direito do Consumidor. Fui advogado por 18 anos e sou Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Estou no Tribunal há 9 anos. Sou Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unimes/Santos (Mestrado e Doutorado). Escrevi vários livros, dentre temas jurídicos, filosóficos, contos e romances.

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