“Sistema recursal no Estatuto da Criança e do
Adolescente. Deserção no procedimento de apuração de ato infracional
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JOSÉ JACOB VALENTE - Juiz de Direito
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O
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/90) adotou regras
de direito processual penal para a instrução do procedimento destinado à
apuração da prática de ato infracional. Para a fase recursal, entretanto, a
situação é diversa. O art. 198 estabeleceu, expressamente, que “nos
procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude fica adotado o
sistema recursal do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 5.869 de
11 de janeiro de 1973, e suas alterações posteriores”, com as adaptações que
determina.
Ora, o
advogado que não estiver familiarizado com os procedimentos destinados à
apuração da prática de ato infracional poderá incidir em erro ao pretender
apelar de decisão que julga procedente a representação oferecida pelo
Ministério Público, por exemplo.
Se,
acostumado com os trâmites do processo penal, externar seu inconformismo sem
apresentar, desde logo, as razões que o levam a pedir reforma da decisão,
requerendo, ao contrário, a concessão de prazo para fazê-lo, poderá ver seu
recurso não conhecido por vício formal.
Isso
porque o sistema recursal do Código de Processo Civil exige que o recorrente
apresente, com a petição de interposição recursal, as suas razões. Em face do
que dispõe o art. 515 do Código de Processo Civil, “a apelação devolverá
ao Tribunal o conhecimento da matéria impugnada”: nem mais e nem menos,
salvo as matérias passíveis de conhecimento de ofício.
É a
consagração do princípio tantum devolutum quantum appellatum, válido
para o processo civil em geral e, por força do citado art. 198 do ECA,
aplicável aos procedimentos afetos à Justiça da Infância e Juventude.
A
jurisprudência, entretanto, ao mesmo tempo em que vem consolidando esse
entendimento também vem admitindo a juntada das razões em momento posterior,
desde que ainda dentro do decêndio legal, ainda que o mm. juiz da causa tenha
concedido, à revelia da lei, prazo para oferecimento de razões.
É o que
se vê no acórdão proferido no julgamento da Apelação Cível nº 53.587-0/0,
ocorrido em 06.4.00, rel. o des. JOSÉ LUIZ FONSECA TAVARES: “Ora, o
Estatuto da Criança e do Adolescente adotou expressamente o sistema recursal
do Código de Processo Civil (artigo 198, caput), de modo que as razões
do inconformismo são absolutamente necessárias em face do que dispõe seu
artigo 515, consubstanciador do princípio ‘tantum devolutum quantum
appellatum’, ressalvadas as matérias apreciáveis de ofício. Faltando a
definição do objeto do recurso, impossível se torna a aferição da matéria
eventualmente modificável pelo Tribunal, eis que não se pode presumir
impugnação a todos os pontos abrangidos pela decisão. Ainda que se admitisse
a juntada das razões posteriormente, desde que dentro do prazo legal, no
presente caso isso também não ocorreu. A matéria é pacífica na
jurisprudência: ‘não se conhece de apelação se, embora tempestiva a petição,
as razões são apresentadas após o último dia do prazo recursal preclusivo’
(STJ - 4ª Turma, REsp. 21.895-4 SP, rel. min. ATHOS CARNEIRO, j. 14.9.92, DJU
05.10.92).
Portanto, em virtude de irregularidade formal,
não se conhece do recurso interposto”.
Esse
entendimento, frise-se, vale tanto para recursos de apelação interpostos
contra sentença proferida em procedimentos destinados à apuração da prática
de atos infracionais como para os demais processos ligados à Justiça
menorista, como, v.g., adoção (Apelação Cível nº 64.887-0/5, julg. em
10.02.00, rel. o des. OETTERER GUEDES).
A DESERÇÃO NO PROCEDIMENTO INSTAURADO PARA
APURAÇÃO DA PRÁTICA DE ATO INFRACIONAL.
Vem sendo
questionada, desde a vigência da Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990,
denominada de ‘Estatuto da Criança e do Adolescente’, a possibilidade, ou
não, do reconhecimento da deserção no recurso de apelação interposto pelo
adolescente infrator contra decisão, proferida em procedimento destinado à
apuração da prática de ato infracional, que julgou procedente a representação
oferecida pelo Ministério Público, quando, após externar seu inconformismo, o
recorrente foge do estabelecimento onde se encontrava recolhido.
A
figura da deserção, tal como descrita, é instituto de direito processual
penal previsto expressamente no art. 595 da Lei Adjetiva, a qual dispõe que “se
o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a
apelação”. No dizer de HERÁCLITO ANTÔNIO MOSSIN (in “Recursos em
Matéria Criminal”, Ed. Atlas, 1996, pág. 56), “a deserção é uma sanção
de conteúdo processual que impede o não conhecimento do recurso (parece ter
havido erro de impressão, pois impede o conhecimento do recurso)”.
MARLON
WANDER MACHADO (in “Os Recursos no Processo Penal e a reformatio in
pejus”. Editora WVC, pág. 69) apresenta a mesma definição e, citando
SÉRGIO BERMUDES (in “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. 7,
págs. 137/138) define deserção como “a pena que tem fundamento no
relevante interesse social, no breve trancamento dos litígios e na
estabilidade das relações jurídicas. A deserção assenta na necessidade de
reprimir a indolência das partes em menoscabo da autoridade das decisões recorridas,
tendo o caráter de sanção processual”.
Ocorre
em duas circunstâncias: falta de preparo e fuga do preso. Para o presente
estudo vamos nos ater à segunda hipótese, pois, por força de expressa
disposição legal, nos procedimentos afetos à infância e juventude os recursos
serão interpostos independentemente de preparo (ECA - 198, I).
Admitido
o caráter punitivo da deserção, vemos que a consagração do princípio
constitucional segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, inserido no art. 5º,
inc. LVII, da Lei Maior, permite seu questionamento até mesmo no âmbito
processual penal.
É lição
dos eminentes professores ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO MAGALHÃES GOMES
FILHO e ANTONIO SCARANCE FERNANDES, diante desse postulado, “não ser
possível, durante a marcha do processo, inclusive na fase de tramitação de
qualquer recurso, impor ao réu medida privativa de liberdade que represente
antecipação de pena, só sendo aceitável restrição decorrente de prisão com
natureza cautelar” (“Recursos no Processo Penal”, Editora RT, 2ª
edição, pág. 137).
Esse
argumento, por si só, já bastaria para inviabilizar o reconhecimento da
deserção nos procedimentos instaurados para a apuração da prática de ato
infracional por adolescente, onde não se busca a imposição de pena alguma,
mas a aplicação da medida sócio-educativa que mais atenda aos superiores
interesses do menor, sempre na busca de sua ressocialização.
No
Capítulo III do Título VI, Livro II, do ECA, estão previstos os procedimentos
afetos à Justiça da Infância e Juventude, sem exceção. No artigo inaugural
desse Capítulo, o Estatuto estabelece que “aos procedimentos regulados
nesta Lei aplicamse subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação
processual pertinente” (Seção I - Disposições Gerais - art. 152).
Seguem-se
as seções II a VII, do Capítulo III, onde estão disciplinados os
procedimentos a serem adotados para a “perda e suspensão do pátrio poder” (Seção
II - arts. 155 a 163), para “destituição da tutela” (Seção III - art.
164), para “colocação em família substituta” (Seção IV - arts. 165 a
170), para “apuração de ato infracional atribuído a adolescente” (Seção
V - arts. 171 a 190), para “apuração de irregularidades em entidade de
atendimento” (Seção VI - arts. 191 a 193) e para “apuração de infração
administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente” (Seção
VII - arts. 194 a 197).
Do
posicionamento desses dispositivos legais decorre a conclusão lógica de que
os procedimentos adotarão, subsidiariamente, as normas gerais previstas na
legislação processual penal ou processual civil conforme seja penal ou civil
a natureza da apuração.
Isso se
justifica pela impropriedade da adoção, por exemplo, do rito processual civil
para apuração da prática de ato infracional praticado por adolescente ou,
contrariamente, do procedimento processual penal para a destituição do pátrio
poder. Já no que se refere à fase recursal, preferiu, o legislador, unificar
o procedimento. No Capítulo seguinte, o de nº IV, tratou dos recursos em
geral, estabelecendo que “nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e
Juventude fica adotado o sistema recursal do Código de Processo Civil,
aprovado pela Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973” (art. 198).
Se
pretendesse permitir a utilização do sistema recursal do Código de Processo
Penal além do Civil, o teria feito de forma expressa ou, no máximo, de forma
indireta, tal como fez no mencionado art. 152, quando previu que as normas de
direito processual podem ser observadas de forma subsidiária.
Se não
o fez, evidentemente pretendeu que o sistema recursal do Código de Processo
Civil fosse aplicado a todos os procedimentos previstos na Lei, sem exclusão.
Abstendo-se de entrar no âmago da questão, PAULO LÚCIO NOGUEIRA (in
“Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado”, Saraiva, 2ª ed., 1993,
págs. 287/288) elenca os recursos admissíveis para os procedimentos afetos à
Justiça da Criança e ao Adolescente, limitando-os àqueles previstos na
legislação Processual Civil (apelação, agravo de instrumento, embargos
infringentes, embargos de declaração, recurso extraordinário, agravo retido,
recurso adesivo e a correição parcial, ‘de discutida aplicação na esfera
processual civil).
Importante
lembrar que a jurisprudência da Câmara Especial do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, competente para o julgamento dos recursos interpostos em
procedimentos afetos à Justiça da Infância e Juventude por força do que
dispõem os arts. 187 e seguintes do Regimento Interno daquele Sodalício, não
vem admitindo a interposição de apelo na forma prevista pela legislação
processual penal, exigindo que o inconformismo seja externado por petição que
contenha as razões do pedido de modificação da decisão (v.g. Apelações Cíveis
nºs. 42.692-0/4, 43.150-0/9 e 45.107-0/8, relatadas pelo eminente des.
OETTERER GUEDES).
E a
justificativa para tais julgados é a mesma argumentação ora expendida: “o
Estatuto da Criança e do Adolescente adotou expressamente o sistema recursal
do Código de Processo Civil (artigo 198, caput), de modo que as razões
do inconformismo são absolutamente necessárias em face do que dispõe seu
artigo 515, consubstanciador do princípio tantum devolutum quantum
appellatum, ressalvadas as matérias apreciáveis de ofício” (AC nº
45.107-0/8 ).
Esse
vem sendo, inclusive, o entendimento adotado pelo Egrégio S.T.J., segundo o
qual “não se conhece de apelação se, embora tempestiva a petição, as razões
são apresentadas após o último dia do prazo recursal preclusivo” (STJ, 4ª
Turma, REsp. nº 21.895-4/SP, rel. o min. ATHOS CARNEIRO, julgado em 14 de
setembro de 1992 e publicado no DJU de 05 de outubro de 1992).
Não há,
portanto, como justificar a adoção de sistema recursal híbrido, com a
interposição do inconformismo na forma processual civil e aceitação de
instituto processual penal, com o reconhecimento da deserção em virtude da
fuga do adolescente do estabelecimento onde se encontrava recolhido.
Eventual
deserção somente seria admissível em sua modalidade processual civil, não
fosse o já referido art. 198, inc. I, do ECA, estabelecer a interposição de
recursos, no âmbito da Justiça da Infância e Juventude, independentemente de
preparo.
Finalmente,
o caráter protetivo das medidas sócio-educativas previstas no Estatuto também
se une aos demais argumentos, aumentando os motivos para a rejeição da
deserção. Como a imposição de medida sócio-educativa não busca a
punição do adolescente infrator, mas sua reabilitação, deve ser aplicada
sempre aquela que se mostre mais adequada à hipótese dos autos, levando-se em
conta a gravidade do ato praticado, as condições pessoais do menor, o amparo
familiar de que dispõe e as características do meio social em que se encontra
inserido. Ora, o adolescente pode ter recebido a imposição de medida
sócio-educativa de internação ou semiliberdade indevidamente, quer por falta
de previsão legal para o caso concreto, quer pela desnecessidade de aplicação
de medida tão severa, o que seria corrigido por meio do julgamento do recurso
interposto.
A fuga
do estabelecimento onde estava custodiado indevidamente, e onde talvez nunca
devesse ter estado, não pode impedir a mencionada correção, o que
constituiria evidente prejuízo ao menor que, ao contrário do criminoso
imputável, não tem que cumprir pena, mas reeducar-se.
Pesquisando
jurisprudência sobre a matéria, constata-se a existência de julgados em ambos
os sentidos.
Defendendo
o reconhecimento da deserção encontramos o julgamento da Apelação Cível nº
17.416-0/8, ocorrido em 23 de junho de 1994. A despeito da excelência de seu
relator, o eminente des. NEY ALMADA tem sua posição fundamentada justamente
na imposição de pena processual ao adolescente que, conforme já discorremos a
respeito, não deve ser punido, mas protegido.
O
insigne relator reconhece a índole unitária do processo e diz que “a
atitude de rebeldia não pode suscitar tratamento de indiferença no plano
processual, porque implica retardo ou inviabilidade da execução do que venha
a ser decidido no instância do apelo”.
Esse
acórdão foi utilizado como parâmetro para o julgamento das Apelações Cíveis
nº 30.130-0/8, relatada pelo des. OLIVEIRA PASSOS, e 30.354-0/0, relatada
pelo des. LAIR LOUREIRO, esta última com bem lançada declaração de voto do
des. PEREIRA DA SILVA, segundo o qual “o Estatuto da Criança e do
Adolescente adotou o regramento processual civil para reger os recursos
cabíveis em sede de jurisdição da Infância e Juventude e nada dispôs sobre a
deserção de recurso decorrente da fuga, instituto próprio do regramento
recursal processual penal que, por força do disposto no Estatuto da Criança e
do Adolescente não se aplica à hipótese dos autos”. Nos mesmos termos o
des. PEREIRA DA SILVA relatou o acórdão proferido no julgamento da Apelação
Cível nº 31.303-0/5, desta feita com voto divergente proferido pelo eminente
des. CARLOS ORTIZ. Pela rejeição da argüição também encontramos a posição do
des. SILVA LEME, externada em julgamento que contou com votação unânime, do
qual participaram os des. DIRCEU DE MELLO e LUIS DE MACEDO (Apelação Cível nº
36.240-0/3, julgada em 3 de abril de 1997). Nota-se, portanto, tendência da
jurisprudência mais atual pela não aceitação da deserção, tal como prevista
na legislação processual penal,”
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Fonte:>http://www.epm.tjsp.jus.br/Internas/ArtigosView.aspx?ID=3179<.
Acesso: 31/7/2012
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