terça-feira, 31 de julho de 2012


“O Projeto de novo Código Comercial e a proposta de permuta de documentos entre as partes: mudança legislativa e de mentalidade (Flávio Luiz Yarshell)

 Consta do Projeto de Código Comercial que tramita perante o Congresso Nacional regra segundo a qual, em medida preparatória ou incidental, poderá ser requerida a “permuta de documento” (art. 656, caput e § 1º). Assim, cada parte tem o ônus de entregar à outra, mediante protocolo, “a totalidade dos documentos que possuir, em qualquer suporte, referentes ao litígio descrito no pedido”; com exceção dos documentos em que advogado seja emissor ou destinatário no exercício da profissão. Além disso, “as partes só poderão, no processo judicial já em curso ou no que vier a ser ajuizado por qualquer delas, produzir prova documental usando documento que tiver sido entregue à parte adversa, ou desta recebido”.
A proposta – ao menos nesses termos – não encontra precedente no direito brasileiro e merece reflexão para que, se aprovada, possa ser efetivamente aplicada.
Para tanto, a mudança legislativa deve vir acompanhada de mudança de mentalidade no campo do direito probatório.
É que, entre nós, prevalece a visão segundo a qual prova é, antes de tudo, um assunto do juiz e, apenas secundariamente, das partes. Daí se apregoar reiteradamente que o destinatário da prova no processo é o juiz; que a finalidade da prova é formar o convencimento do magistrado; que a descoberta da verdade – conquanto não seja propriamente um escopo do processo – corresponde ao interesse público porque ela é instrumento para edição de decisões justas; que as regras de distribuição do ônus da prova não são voltadas à respectiva produção, mas que são apenas regras de julgamento, no caso de falta de elementos suficientes à reconstituição dos fatos relevantes (daí se falar em ônus objetivo da prova); e que o juiz, por tudo isso, é dotado de poderes de instrução, que não ficam limitados pela iniciativa das partes.
Centrar-se a prova na figura do juiz pode dar ensejo, por exemplo, a desvirtuamentos, como restrições indevidas do direito à prova: sob o pretexto de que o convencimento do juiz já está formado, limita-se a atividade das partes, como se, a partir de um dado momento, a prova não pudesse mais interferir na convicção – à semelhança de um jogo que, a julgar pelo placar, é terminado antes do tempo regulamentar garantido aos disputantes. Tal postura pode também levar a distorções como aquela que se materializa em inexistente ou em inadequada motivação, traduzida por expressões como “a partir da farta prova dos autos, convenci-me desta ou daquela tese”… Afinal, o juiz é o destinatário da prova…
O êxito da proposta legislativa, assim, depende da aceitação de que ela enfatiza a perspectiva das partes em relação à prova; que, portanto, não gira mais em torno da figura do juiz, apenas. Ela qualifica o ônus de apresentação de documentos, vinculando-o ao ônus de alegação das partes. Isso, contudo, não pode simplesmente conviver com a visão segundo a qual o juiz pode e deve, para além da atividade das partes, buscar a suposta verdade real como fundamento para justiça no caso concreto. Entre iguais, sendo o direito disponível, é correto esperar que o êxito da parte resulte do grau de seu empenho no processo.
Assim, de nada adiantará a qualificação do ônus das partes pela lei se, depois, as consequências estabelecidas para a falta da respectiva observância puderem ser supridas pelo exercício dos poderes de instrução do juiz (CPC, art. 130), a pretexto de buscar a verdade real e de fazer justiça. É preciso entender e aceitar que a justiça, nesse caso, reside na atribuição do encargo e que a atuação oficial – a exemplo do que ocorre nos casos em que a lei estabelece presunções – viria a frustrar o objetivo colimado pelo Legislador.
Não se trata de implantar um modelo liberal. Trata-se de reconhecer que, no campo que o Projeto pretende regular, aquele mecanismo pode efetivamente contribuir para a eliminação de controvérsias. Mas, se prevalecer, nessa seara, a visão estatizante – e, arrisca-se dizer, paternalista –, então a proposta está fadada ao total desprestígio e insucesso”.
Autor: Flávio Luiz Yarshell
Fonte: Carta Forense (Jul/2012)

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