Autor: Rizzatto Nunes
Professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC-SP; é Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-Professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC-SP; é Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Eu já havia escrito minha primeira coluna do ano
quando aconteceu a tragédia de Santa Maria. Escrevera sobre a –
infelizmente — regular e repetitiva tragédia anunciada de fim/início de ano que
com as chuvas, inundações, desabamentos, etc. atinge vários municípios e
pessoas todos os anos, sem que se faça muita coisa para evitá-los. Fica para a
próxima vez, pois ocorreu essa outra catástrofe que, por sua vez, sempre esteve
latentemente preparada para eclodir em algum lugar do país pelas boates, clubes
e similares que funcionam sem condições de segurança e sem a fiscalização adequada.
Era apenas questão de tempo. E veio
de forma terrível, atingindo jovens que tinham uma vida inteira pela frente.
Tentarei cuidar de alguns aspectos jurídicos, de alguns fatos e farei uma
proposta, que, penso, poderia evitar esse tipo de acontecimento.
Muito está se falando sobre o alvará
vencido. Mas, faço duas indagações:
1. Será que na época em que o alvará
estava vigorando – coisa de alguns meses atrás – as condições da boate eram
diferentes da atual? Antes de agosto de 2012 – a data que, segundo dizem,
venceu o documento –, a porta de entrada e saída era mais larga? Havia melhor
ventilação? Havia porta de emergência e sinalizada? Será que, logo após o
vencimento do alvará, os donos da boate correram para fechar saídas de
emergência, diminuíram a largura da porta de entrada/saída, fecharam os
sistemas de ventilação? A quem estamos querendo enganar? Tudo leva a crer
que o alvará foi concedido para a boate nas condições em que ela operava
realmente, como mostraram os veículos de comunicação: uma única porta de
entrada/saída de apenas dois metros de largura; sem saídas de emergência, sem
janelas, sem ventilação, enfim, um absurdo total.
2. E se o alvará venceu, por que no
dia seguinte os funcionários da Prefeitura não foram ao local para lacrar o
estabelecimento? Ou, ao menos, vistoriá-lo novamente e checar os sistemas de
segurança?
Esses são alguns dos fatos. Vamos a
outros bastante conhecidos. Deixarei meu amigo Walter Ego, chocado e indignado
com o ocorrido, falar: "Todos sabem que o que determina o controle de
entrada e saída nos serviços de casas noturnas – bares, restaurantes, boates,
etc. – é o faturamento. As saídas são estreitas – e que muitas vezes é a porta
de entrada, como na boate Kiss – para obrigar os consumidores a se
comportarem 'adequadamente' em fila para pagarem pelo consumo. Aliás, é
bastante desconfortável e às vezes até constrangedor ter de sair desses locais,
com o afunilamento proposital efetuado. Dependendo do horário, perde-se muito
tempo para deixar o estabelecimento mesmo sem qualquer ocorrência anormal.
Portas de emergência simples de manusear? Ora, os donos trancafiam todos lá
dentro e só os deixam sair após o pagamento da dívida. Portas de saída de
emergência fáceis de abrir seriam um perigo, pois poderiam facilitar a fuga de
devedores. Essas portas só funcionam mesmo nos eventos em que os consumidores
pagam pelo ingresso na entrada. Daí sim, se eles quiserem ir embora, podem ir
por qualquer saída".
Não sei dizer se em todo lugar é
assim, como diz meu amigo, mas esse fato da dificuldade de sair que coloca os
consumidores em filas estreitas está, evidentemente, ligado ao interesse do
faturamento. O empresário tem mesmo direito de receber, mas nunca, por causa
disso, abrindo mão de manter o sistema de segurança funcionando rigorosamente.
Mas, há ainda uma outra pergunta:
será mesmo legal criar filas infernais e desconfortáveis para cobrar o consumo
de centenas de pessoas ao mesmo tempo, impedindo que elas deixem o
estabelecimento comercial na hora em que quiserem sair? Tem cabimento obrigar a
que se fique 20, 30 minutos ou mais esperando para poder deixar o local?
No caso da boate Kiss, reportagens
apresentaram o depoimento de uma jovem que disse que foi impedida por
seguranças de deixar o local porque ela antes deveria pagar a consumação!
A mim, esse modelo de controle sempre
pareceu abusivo, conforme definido no Código de Defesa do Consumidor. Embora
não conste expressamente do rol do artigo 39, ela está inserida na hipótese do
“caput” (”dentre outras práticas abusivas”). E, de fato, os tais cartões
de consumo são mesmo abusivos e por dois motivos: a) têm como função não
permitir que o consumidor descubra quanto já consumiu – e já gastou; logo é uma
espécie de engodo que pretende que o cliente fique sem saber quanto gasta, que consuma
muitas vezes mais do que pode pagar ou desejaria pagar: b) impedem que o
consumidor saia do estabelecimento quando ele bem entender, violando seu
direito de ir e vir. As filas enfrentadas por ele para sair de muitas boates
são infernais e tomam muito tempo.
Penso que é o caso de se aprovar uma
lei que proíba especificamente que boates e similares se utilizem desse método
esdrúxulo e abusivo contra seus clientes. Basta a inserção de um novo inciso no
art. 39 do CDC. Esse modo de cobrança não é utilizado em vários lugares do
planeta. Em algumas boates do Canadá e Estados Unidos, por exemplo, quem
compra bebida ou comida paga na hora e sai do local quando bem entender, sem
mais delongas. Com isso, não só se respeita o consumidor, como adicionalmente
cria-se uma condição de segurança: o dono do estabelecimento sempre deixará
destrancadas saídas de emergência, eis que não ficará com medo de que seus
devedores deixem o estabelecimento. Se eles forem embora não haverá problema,
pois já pagaram. É uma forma de usar a lógica do mercado capitalista a favor do
consumidor para garantir sua incolumidade física.
Lembro que o próprio Código Penal
define o crime de perigo nesses termos:
“Art.
132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena
– detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Parágrafo
único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da
saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de
serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas
legais”.
Daí que pode e deve não só a
autoridade administrativa, mas também a autoridade policial, determinar o
esvaziamento da boate, clube ou congênere sempre que verificar que ele esteja
com lotação acima de sua capacidade e/ou sem condições de segurança adequadas.
Por isso, apresento também mais uma sugestão de introdução de outro inciso no
artigo 39 do CDC, para permitir o controle da capacidade e lotação do
estabelecimento. Aliás, anoto que é importante que o próprio consumidor
denuncie os estabelecimentos infratores, exercendo seu direito. Por isso, é
necessária a colocação do cartaz e, claro, com o telefone à mostra, o
consumidor poderá fazer reclamação não só da lotação, mas também da falta de
segurança.
Está na hora de inverter a lógica do
ganho a qualquer preço em detrimento da qualidade de vida e da segurança das
pessoas, pela lógica da responsabilidade ética.
Segue abaixo minha sugestão de
alteração da lei e, para não me alongar demais deixarei para a próxima semana a
apresentação das questões que envolvem a responsabilidade civil. Adianto apenas
o óbvio: trata-se de responsabilidade civil objetiva regulada pelo CDC. Desse
modo, o estabelecimento comercial é responsável por indenizar vítimas e
familiares. Além disso, no caso, por aquilo que se pode extrair das reportagens
efetuadas, há responsabilidade solidária da Prefeitura, responsável pela
concessão do alvará e pela fiscalização (e na sua ausência, responsabilidade
objetiva por omissão) e também do Corpo de Bombeiros (no caso, responsabilidade
do Governo Estadual).
Antes de apresentar minha proposta,
faço outra a você, leitor. Eu já dei início a um abaixo-assinado para pleitear
aos Deputados e Senadores que apresentem projeto de lei para modificar o CDC e
também a Excelentíssima Presidenta da República, Dilma Rousseff, que pode
fazer a alteração via Medida Provisória.
Eis minha proposta:
Projeto de Lei ou Medida
Provisória (Para
ficar claro, transcrevo o “caput” do art. 39)
Art. 1º – O art. 39 da Lei nº 8.078,
de 1990 que "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências", passa a vigorar com a seguinte redação e o parágrafo único
de seu artigo 39 fica renumerado para parágrafo 1º:
Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos
ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
XIV – Utilizar em boates,
clubes e estabelecimentos similares, cartões de controle de
consumo, tais como comandas, cartões ou fichas de consumação, cartões
magnéticos etc.
XV – Restringir em boates, clubes e
estabelecimentos similares ou de qualquer modo impedir ou dificultar a saída do
consumidor no momento em que este desejar.
XVI – Permitir o ingresso em boates,
clubes e estabelecimentos similares de um número maior de consumidores que o
fixado pela autoridade administrativa como máximo.
Parágrafo 2º – A cobrança do consumo
em boates, clubes e estabelecimentos similares, conforme regrado no inciso XIV
será feita no ato da entrega do produto.
Parágrafo 3º - Para fins de
controle pelo consumidor, na hipótese do inciso XVI, o número máximo de pessoas
permitidas no local, conforme determinado pela autoridade administrativa, será
afixado em cartaz visível e iluminado na entrada do estabelecimento, seguido do
número do telefone da autoridade de fiscalização e da Delegacia de Polícia
locais. Os caracteres serão ostensivos e o tamanho da fonte não será inferior
ao corpo 72 do tipo conhecido como “Times new roman”.
http://terramagazine.terra.com.br/blogdorizzattonunes/blog/2013/01/31/uma-proposta-para-impedir-outra-tragedia-como-a-da-boate-kiss-em-santa-maria/.
Acesso: 8/2/2013
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