sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013


 Autor: Rizzatto Nunes

Professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC-SP; é Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-Professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC-SP; é Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Eu já havia escrito minha primeira coluna do ano quando aconteceu a tragédia de Santa Maria. Escrevera sobre a –  infelizmente — regular e repetitiva tragédia anunciada de fim/início de ano que com as chuvas, inundações, desabamentos, etc. atinge vários municípios e pessoas todos os anos, sem que se faça muita coisa para evitá-los. Fica para a próxima vez, pois ocorreu essa outra catástrofe que, por sua vez, sempre esteve latentemente preparada para eclodir em algum lugar do país pelas boates, clubes e similares que funcionam sem condições de segurança e sem a fiscalização adequada.
Era apenas questão de tempo. E veio de forma terrível, atingindo jovens que tinham uma vida inteira pela frente. Tentarei cuidar de alguns aspectos jurídicos, de alguns fatos e farei uma proposta, que,  penso, poderia evitar esse tipo de acontecimento.
Muito está se falando sobre o alvará vencido. Mas, faço duas indagações:
1. Será que na época em que o alvará estava vigorando – coisa de alguns meses atrás – as condições da boate eram diferentes da atual? Antes de agosto de 2012 – a data que, segundo dizem, venceu o documento –, a porta de entrada e saída era mais larga? Havia melhor ventilação? Havia porta de emergência e sinalizada? Será que, logo após o vencimento do alvará, os donos da boate correram para fechar saídas de emergência, diminuíram a largura da porta de entrada/saída, fecharam os sistemas de ventilação?  A quem estamos querendo enganar? Tudo leva a crer que o alvará foi concedido para a boate nas condições em que ela operava realmente, como mostraram os veículos de comunicação: uma única porta de entrada/saída de apenas dois metros de largura; sem saídas de emergência, sem janelas, sem ventilação, enfim, um absurdo total.
2. E se o alvará venceu, por que no dia seguinte os funcionários da Prefeitura não foram ao local para lacrar o estabelecimento? Ou, ao menos, vistoriá-lo novamente e checar os sistemas de segurança?
Esses são alguns dos fatos. Vamos a outros bastante conhecidos. Deixarei meu amigo Walter Ego, chocado e indignado com o ocorrido, falar: "Todos sabem que o que determina o controle de entrada e saída nos serviços de casas noturnas – bares, restaurantes, boates, etc. – é o faturamento. As saídas são estreitas – e que muitas vezes é a porta de entrada, como na boate Kiss – para obrigar os consumidores  a se comportarem 'adequadamente' em fila para pagarem pelo consumo. Aliás, é bastante desconfortável e às vezes até constrangedor ter de sair desses locais, com o afunilamento proposital efetuado. Dependendo do horário, perde-se muito tempo para deixar o estabelecimento mesmo sem qualquer ocorrência anormal. Portas de emergência simples de manusear? Ora, os donos trancafiam todos lá dentro e só os deixam sair após o pagamento da dívida. Portas de saída de emergência fáceis de abrir seriam um perigo, pois poderiam facilitar a fuga de devedores. Essas portas só funcionam mesmo nos eventos em que os consumidores pagam pelo ingresso na entrada. Daí sim, se eles quiserem ir embora, podem ir por qualquer saída".
Não sei dizer se em todo lugar é assim, como diz meu amigo, mas esse fato da dificuldade de sair que coloca os consumidores em filas estreitas está, evidentemente, ligado ao interesse do faturamento. O empresário tem mesmo direito de receber, mas nunca, por causa disso, abrindo mão de manter o sistema de segurança funcionando rigorosamente.
Mas, há ainda uma outra pergunta: será mesmo legal criar filas infernais e desconfortáveis para cobrar o consumo de centenas de pessoas ao mesmo tempo, impedindo que  elas deixem o estabelecimento comercial na hora em que quiserem sair? Tem cabimento obrigar a que se fique 20, 30 minutos ou mais esperando para poder deixar o local?
No caso da boate Kiss, reportagens apresentaram o depoimento de uma jovem que disse que foi impedida por seguranças de deixar o local porque ela antes deveria pagar a consumação!
A mim, esse modelo de controle sempre pareceu abusivo, conforme definido no Código de Defesa do Consumidor. Embora não conste expressamente do rol do artigo 39, ela está inserida na hipótese do “caput” (”dentre outras práticas abusivas”). E, de fato,  os tais cartões de consumo são mesmo abusivos e por dois motivos: a) têm como função não permitir que o consumidor descubra quanto já consumiu – e já gastou; logo é uma espécie de engodo que pretende que o cliente fique sem saber quanto gasta, que consuma muitas vezes mais do que pode pagar ou desejaria pagar: b) impedem que o consumidor saia do estabelecimento quando ele bem entender, violando seu direito de ir e vir. As filas enfrentadas por ele para sair de muitas boates são infernais e tomam muito tempo.
Penso que é o caso de se aprovar uma lei que proíba especificamente que boates e similares se utilizem desse método esdrúxulo e abusivo contra seus clientes. Basta a inserção de um novo inciso no art. 39 do CDC. Esse modo de cobrança não é utilizado em vários lugares do planeta. Em algumas boates do Canadá e Estados Unidos,  por exemplo, quem compra bebida ou comida paga na hora e sai do local quando bem entender, sem mais delongas. Com isso, não só se respeita o consumidor, como adicionalmente cria-se uma condição de segurança: o dono do estabelecimento sempre deixará destrancadas saídas de emergência, eis que não ficará com medo de que seus devedores deixem o estabelecimento. Se eles forem embora não haverá problema, pois já pagaram. É uma forma de usar a lógica do mercado capitalista a favor do consumidor para garantir sua incolumidade física.
Lembro que o próprio Código Penal define o crime de perigo nesses termos:
“Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais”.
Daí que pode e deve não só a autoridade administrativa, mas também a autoridade policial, determinar o esvaziamento da boate, clube ou congênere sempre que verificar que ele esteja com lotação acima de sua capacidade e/ou sem condições de segurança adequadas. Por isso, apresento também mais uma sugestão de introdução de outro inciso no artigo 39 do CDC, para permitir o controle da capacidade e lotação do estabelecimento. Aliás, anoto que é importante que o próprio consumidor denuncie os estabelecimentos infratores, exercendo seu direito. Por isso, é necessária a colocação do cartaz e, claro, com o telefone à mostra, o consumidor poderá fazer reclamação não só da lotação, mas também da falta de segurança. 
Está na hora de inverter a lógica do ganho a qualquer preço em detrimento da qualidade de vida e da segurança das pessoas, pela lógica da responsabilidade ética.
Segue abaixo minha sugestão de alteração da lei e, para não me alongar demais deixarei para a próxima semana a apresentação das questões que envolvem a responsabilidade civil. Adianto apenas o óbvio: trata-se de responsabilidade civil objetiva regulada pelo CDC. Desse modo, o estabelecimento comercial é responsável por indenizar vítimas e familiares. Além disso, no caso, por aquilo que se pode extrair das reportagens efetuadas, há responsabilidade solidária da Prefeitura, responsável pela concessão do alvará e pela fiscalização (e na sua ausência, responsabilidade objetiva por omissão) e também do Corpo de Bombeiros (no caso, responsabilidade do Governo Estadual).
Antes de apresentar minha proposta, faço outra a você, leitor. Eu já dei início a um abaixo-assinado para pleitear aos Deputados e Senadores que apresentem projeto de lei para modificar o CDC e também a Excelentíssima Presidenta da República, Dilma Rousseff,  que pode fazer a alteração via Medida Provisória.
Eis minha proposta:
Projeto de Lei ou Medida Provisória  (Para ficar claro, transcrevo o “caput” do art. 39)
Art. 1º – O art. 39 da Lei nº 8.078, de 1990 que  "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências", passa a vigorar com a seguinte redação e o parágrafo único de seu artigo 39 fica renumerado para parágrafo 1º:
Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
XIV – Utilizar em  boates, clubes e estabelecimentos similares,   cartões de controle de consumo, tais como comandas, cartões ou fichas de consumação, cartões magnéticos etc.
XV – Restringir em boates, clubes e estabelecimentos similares ou de qualquer modo impedir ou dificultar a saída do consumidor no momento em que este desejar.
XVI – Permitir o ingresso em boates, clubes e estabelecimentos similares de um número maior de consumidores que o fixado pela autoridade administrativa como máximo.
Parágrafo 2º – A cobrança do consumo em boates, clubes e estabelecimentos similares, conforme regrado no inciso XIV será feita no ato da entrega do produto.
Parágrafo 3º -  Para fins de controle pelo consumidor, na hipótese do inciso XVI, o número máximo de pessoas permitidas no local, conforme determinado pela autoridade administrativa, será afixado em cartaz visível e iluminado na entrada do estabelecimento, seguido do número do telefone da autoridade de fiscalização e da Delegacia de Polícia locais. Os caracteres serão ostensivos e o tamanho da fonte não será inferior ao corpo 72 do tipo conhecido como “Times new roman”.




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