“Quem indeniza às vítimas das enchentes
Autor: Rizzatto Nunes Professor
de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela PUC-SP; é
Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado
do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Se eu quisesse,
poderia deixar pronto um artigo escrito para todo início de ano cuidando das
enchentes, dos desmoronamentos, das pessoas mortas e feridas e do abandono
posterior das ruas, cidades e pessoas, enfim do descaso das autoridades para
com a população. Repetir sempre a mesma ladainha é – com o perdão da
expressão – chover no molhado. Mas, que alternativa tenho eu? Isto é, que
alternativa temos todos nós que, de alguma maneira, nos preocupamos com o
direito das pessoas?
Só não publiquei este artigo há duas semanas atrás porque aconteceu aquela
outra tragédia de Santa Maria, uma nova crônica de mortes anunciadas, aliás
como ficou claro nas várias reportagens que foram feitas mostrando a situação
de perigo que atinge os frequentadores das boates, assim como os riscos
envolvidos.
Mas, como disse, sou obrigado a vir nesta coluna mais uma vez falar dessa
tragédia anunciada (a das inundações, deslizamentos de terras, mortes de
pessoas etc.), que infelizmente não apresenta nenhuma perspectiva de
deixar de acontecer novamente nos próximos anos.
Um outro dado, bastante assustador, chama a atenção: aos poucos e até bem
rapidamente, as desgraças desse tipo deixam o noticiário e como,
coincidentemente, sempre no início do ano nós temos o Carnaval, as mortes
desaparecem e quando muito ganham uma notinha de rodapé aqui e acolá,
substituídas que são por corpos nus, suados, por beijos oferecidos e clicados,
por muita fantasia, cerveja e um longo etc. de alegria. Aos parentes das
vítimas, vai sobrando um certo abandono jornalístico, largados à sua própria
condição solitária de dor e, posteriormente, contar, talvez, com uma nota ou
outra sobre o resultado das investigações e a respeito do andamento das ações
judiciais de indenização. É que a vida continua, como dizem. Em Santa
Maria são já 239 mortos, afora os feridos. Nos deslizamentos de terra
provocados pelas chuvas na região serrana do Rio de Janeiro em janeiro de 2011,
foram mais de 900 os mortos, mais de 400 desaparecidos, mais de 8.700 pessoas
perderam suas moradias e ficaram desabrigados, e mais de 20.700 ficaram
desalojados, morando na casa de amigos e familiares.
E neste início de ano, a mesma situação dramática se repetiu em dezenas
de localidades brasileiras atingindo centenas de pessoas. Por isso, então,
volto ao tema desse longo etecetera de catástrofes, que poderiam ter sido
evitadas.
Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do
Estado não envolve diretamente direito do consumidor – embora indiretamente
sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço
questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas
afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos, sempre na esperança de que
um dia, no futuro, este mesmo destino insólito possa vir a ser modificado.
A responsabilidade do Estado no caso de acidentes
naturais derivados de enchentes e desmoronamentos
As
várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e
previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos
de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando centenas de
mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer, passou
muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito
à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das
pessoas e de seu patrimônio. De nada adianta ficar simplesmente acusando
as vítimas depois das ocorrências, eis que, certo ou errado, elas já estavam
vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em
algum lugar.
É
verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo,
chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a
tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos
climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades
conhecidas de forma antecipada e também nas situações em que a ocupação
do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é
responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação
brasileira é clara a respeito. Faço, pois, na sequência, um resumo dos direitos
envolvidos.
·
Responsabilidade
civil objetiva
A
Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado
pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus
agentes (conforme parágrafo 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetivaimplica que não se exige prova da culpa do agente
público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a
demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão
das autoridades responsáveis.
Anoto
que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está
se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o
policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções,
agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão,
se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o
dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente
do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem
origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de
fiscalização adequada e/ou realização de obra considerada indispensável
para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro
evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc.
Muito
bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc
causando a morte e lesando centenas de pessoas o Estado será responsabilizado
se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter
tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as
tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar
que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em
caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento
de indenização.
·
Caso
fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima
Antes
de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso
fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os
eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis,
tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde
que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas.
Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não
constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas
para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos.
A
força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir,
como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de
terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da
responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a
ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo
e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da
culpa da vítima ou do terceiro. Se a culpa da vítima for concorrente,
ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em
consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor
proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente o da construção de uma casa
que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo
agente de fiscalização e também pela vítima.
·
Pensão
e outros danos materiais
As
vítimas sobreviventes podem pleitear pensão pelo período em que,
convalescentes, tenham ficado impossibilitadas de trabalhar. Do mesmo modo, os
familiares que sejam, eventualmente, dependentes da pessoa falecida têm direito
a uma pensão mensal, que será calculada de acordo com os proventos que ela
tinha em vida.
Além
da pensão, no cômputo dos danos materiais, inclui-se todo tipo de perda
relacionada ao evento danoso, tais como medicamentos, honorários médicos,
serviços de transporte etc. No caso de pessoa falecida, além dessas perdas,
cabe pedir também indenização por despesas com locomoção, estada e alimentação
dos familiares que tiveram de cuidar da difícil tarefa de reconhecer o corpo e
fazer seu traslado, despesas com o funeral etc.
·
Danos
morais
Tanto
a vítima sobrevivente como os familiares próximos à vítima falecida podem
pleitear indenização pelos danos morais sofridos, que, no caso,
dizem respeito ao sofrimento de que padeceram e das sequelas psicológicas que o
evento gerou. O valor dessa indenização será fixado pelo juiz no processo.
De
todo modo, é bom deixar consignado que o responsável em indenizar tem o dever
de dar toda assistência às vítimas e seus familiares, inclusive propondo o
pagamento de indenizações e pensões. Essa conduta, uma vez realmente adotada,
poderá influir numa eventual ação judicial para a fixação da indenização por
dano moral. É que, nas variáveis objetivas utilizadas pelo magistrado
para fixar a quantia, uma delas é a do aspecto punitivo.
Na
verdade, como se sabe, aquilo que se chama indenização em matéria de dano moral
não é propriamente indenização. Indenizar significa tornar indene, vale dizer,
encontrar o valor em dinheiro que corresponda à perda material efetiva; fazer
retornar, pois, ao “status quo” anterior. Por exemplo, se a pessoa perdeu seu
automóvel, basta saber quanto o mesmo valia e fixar a indenização nesse valor.
É um elemento de igualdade, portanto.
Já
a “indenização” por dano moral não pretende repor nenhuma perda material ou
devolver as coisas ao estado anterior. É impossível reparar o sofrimento pela
perda de um ente querido ou o causado pelos danos físicos e psicológicos nas
vítimas sobreviventes. Desse modo, a indenização por danos morais é, como se
diz, satisfativo-punitiva: uma quantia em dinheiro que possa servir de conforto
material e ao mesmo tempo punição ao infrator.
Assim,
o aspecto punitivo deve ser reforçado quando o causador do dano age com má-fé
ou com grave culpa, com intenção de causar o dano ou quando regularmente
repete os mesmos erros etc. Todavia, por outro lado, o magistrado deve levar em
conta a atitude do causador do dano após a ocorrência do evento. Se ele se
comportou adequadamente, como acima referi, então, nesse caso, a seu favor
haverá uma atenuante para fixar o “quantum” indenitário em menor valor”.
http://terramagazine.terra.com.br/blogdorizzattonunes/blog/2013/02/18/quem-indeniza-as-vitimas-das-enchentes/. Acesso: 19/2/2013
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