Autor: ANTÔNIO ALBERTO
MACHADO, membro do Ministério Público do Estado de São Paulo e professor
livre-docente do curso de direito da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), campus de Franca-S
“OS “ GRILEIROS” DO LARGO SÃO FRANCISCO.
Dois jovens “doutores da lei” publicaram um artigo
no jornal Folha
de S. Paulo em 26.06.12, sob o título “Os donos do Largo de São
Francisco”, condenando veementemente a presença de mendigos nesse local onde
funciona o tradicional curso de direito fundado por D. Pedro I em
1827, integrado à Usp a partir da criação dessa universidade em 1934,
se não me engano.
Entre outras invectivas, os aprumados doutores da
Universidade de São Paulo alegam que os mendigos praticamente moram na
calçada em frente à Faculdade de Direito e ocupam essa área o dia todo,
deixando lixo, dejetos e “dezenas de pessoas amontoadas”, promovendo algazarras
e consumo de drogas, como se estivessem numa autêntica “hospedaria a céu
aberto”, tudo sob os olhos complacentes da polícia , da Prefeitura Municipal,
do Ministério Público e do Tribunal de Justiça.
Enfim, os ciosos bacharéis da Usp produzem uma
verdadeira catilinária contra esses miseráveis ocupantes do Largo de São
Francisco, qualificando-os expressamente como “indivíduos sem propriedade”, que
deveriam ser removidos para abrigos socias, deixando livre o espaço que é de
uso comum de todos e símbolo de importantes lutas que marcaram a história
política brasileira.
O artigo não aponta nenhuma saída para o
problema e reproduz acriticamente o senso comum daqueles
que observam apenas a superfície dos fatos, e que propõem as soluções mais
ingênuas possíveis, como, por exemplo, a simples remoção dos miseráveis e
a “higienização” do espaço público, com a subsequente devolução desse espaço a
quem de direito, limpo e livre da miséria.
Mas, o artigo parece ter pelo menos um mérito:
o de chamar a atenção para o perfil de bacharel que a Universidade de São
Paulo, no seu aclamado curso de direito, vem produzindo nos últimos tempos. De
fato, deve haver algum problema com o projeto pedagógico do curso de direito do
Largo de São Franscisco para formar bacharéis que propõem a simplista repressão
aos pobres, o confinamento deles em cadeias ou serviços de atendimento
social, a “limpeza” do espaço público, sem nenhuma sensibilidade para com
a injustiça social que jaz por baixo do problema que os iluminados
doutores da lei tentaram abordar.
Deve haver mesmo algum problema com a pedagogia
jurídica do curso de direito da Usp (e dos cursos jurídicos em geral) que
produz bacharéis tão dispotos a defender a propriedade, a tradição e a família,
reprimindo os expropriados, os excluídos da participação social
e política, bem como as famílias destes, que jazem
no relento morrendo às portas de um oráculo onde só deveriam
entrar os proprietários e os grandes homens. Será que para ter alguma
dignidade e um mínimo de respeito é preciso ser proprietário?
Essas posturas, tão comuns entre os bacharéis em
direito, revelam que os cursos jurídicos no Brasil são mesmo elitizados e
elitistas. Revelam que a nossa cultura jurídica está profundamente assentada
sobre os cânones do “contrato”, da “propriedade”, da “norma” e da “autoridade”.
Quer dizer, trata-se de uma cultura jurídica essencialmente burguesa,
cujos juristas se convertem, majoritariamente, naquilo que Antonio
Gramsci chamou de “intelectuais orgânicos da burguesia”.
Mas, além da alienação social e política revelada
nesse malfadado artigo dos mancebos da Usp, chama a atenção o desprezo, talvez
o ódio de classe, e bem assim a violência verbal com que os articulistas
colocaram na mesma categoria gramatical o “lixo”, os “dejetos” e as
“dezenas de pessoas amontoadas” no Largo de São Francisco.
Era preciso ensinar a esses doutores juvenis que os
cursos de direito, e os cursos superiores em geral, têm o compromisso
pedagógico de promover o desenvolvimento social e político do país, promovendo
a igualdade e a justiça, não apenas a defesa da propriedade, dos negócios, da
tradição e do desenvolvimento econômico. Era preciso ensinar a eles que o
direito deve ser antes um instrumento de justiça e de libertação humana, e não
apenas mecanismo de repressão, controle e manutenção da ordem e
da propriedade.
Esses dois rapazes da Usp, apenas porque
cursaram essa renomada Universidade, talvez se achassem no
direito, e até na obrigação, de defender o templo sagrado onde obtiveram
os seus títulos e as suas láureas. Mas, deveriam saber que a Usp, e
a universidade pública enfim, é do povo, inclusive e sobretudo dos
mendigos, verdadeiros destinatários do saber e, sobretudo, do fazer que lá
se reproduz.
O título de doutor obtido nessa prestigiada
instituição não é, obviamente, um título de propriedade, nem pode ser um
título com o qual os seus detentores, praticando uma espécie
de ”grilagem”, venham a arvorar-se no direito e na condição de
“legítimos donos” da Usp, ou do Largo de São Francisco, propondo o
“despejo” dos miseráveis e a “reintegração de posse” naquele espaço
sagrado, porém, em nome apenas dos “abençoados” e dos “indivíduos
proprietários”.
Posted in Direito
| Tagged cultura jurídica burguesa, curso de direito na Usp, Os donos do Largo de São Francisco, projeto pedagógico da usp
http://blogs.lemos.net/machado/. Acesso: 12/12/2012
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