“Ministro Vieira de Mello Filho revela crescimento
de acidentes no setor elétrico
(Dom, 16 Dez 2012, 8h)
O número de acidentes no setor elétrico tem crescido muito, revela o
ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Vieira de Mello Filho. Segundo
o ministro, as estatísticas brasileiras nessa área são "tenebrosas".
E grande parte desses acidentes envolve trabalhadores terceirizados, setor onde
há maior descumprimento quanto às normas de segurança e higiene.
Confira, a seguir, entrevista exclusiva com o ministro sobre acidentes
com terceirizados no setor elétrico.
Ministro, no caso de E.Q., eletricista do Espírito Santo que recebeu um
choque de 13 mil Volts quando prestava serviços para uma concessionária de
energia elétrica - ele perdeu o braço direito, o braço esquerdo ficou
inutilizado, ficou sem um testículo, além de queimaduras por todo o corpo - tanto
a prestadora quanto a tomadora de serviços foram responsabilizadas. O que esse
caso pode dizer sobre a terceirização de serviços?
A premissa irreversível tem de ser fixada, a terceirização como um
fenômeno econômico e social é irreversível. O que decorre dessa premissa é qual
a repercussão da terceirização no direito do trabalho, esse é o ponto
fundamental, e como o direito do trabalho vai fazer a leitura da terceirização.
O direito do trabalho não vai ignorar essa realidade, e o caso do E.Q. é
emblemático. Se a terceirização for vista pelo prisma do custo, nós vamos ter o
prisma existencial da relação de trabalho absolutamente ignorado. O trabalhador
será tratado apenas como um número ou como uma coisa. Isso sobre o aspecto
econômico. Já sob o aspecto existencialista, nós vamos começar a discutir os
efeitos do Direito do Trabalho no tratamento da terceirização. Imaginemos, por
meio de uma metáfora, a terceirização como um rio, que brota e tem seu curso
natural. Se eu começar a assorear o rio, ele vai começar a sair dos seus
limites. Se eu tratar as margens do rio, ele vai seguir o seu curso, sem causar
nenhum dano colateral ao ambiente. A terceirização como um fenômeno econômico é
um rio, que nasceu e vai seguir o curso, o problema do Direito do Trabalho é manter
os leitos desse rio limpo, essa é que é a nossa função, na interpretação do
Direito. Portanto, enquanto ela economicamente for tratada como custo, ela vai
gerar um desprezo e um descuido com o ser humano trabalhador. O Direito do
Trabalho vai entrar nessa equação para dizer que há um limite ético na
terceirização e um limite jurídico na terceirização.
Ministro, a prestação de serviços já responde por boa parte do PIB
brasileiro. Pesquisas informam que para cada empresa detentora da concessão
para exploração da atividade existem 37 empresas contratadas, embora existam
problemas como falta de mão de obra qualificada, alta rotatividade e
desrespeito às normas trabalhistas. Como equacionar esse desenvolvimento
econômico e a dignidade do trabalhador?
Vamos conceber um aspecto sob o prisma jurídico. Existe um único marco
regulatório da terceirização, que foi construído jurisprudencialmente pelo TST
nas décadas de 80 e 90, que era antiga Súmula 256 e hoje é a Súmula 331. Esta
súmula entende que é lícita a terceirização da atividade meio e ilícita a
terceirização da atividade fim. Bom, o que ocorre nesse momento da economia?
Nós temos um patamar elevado de informalidade nas relações de trabalho. Quando
se permitiu a terceirização das atividades meio, houve uma multiplicação de
empresas nesse espectro jurídico. Com isso, para os efeitos estatísticos houve
um aumento considerável de contratos formalizados. Para os indicadores
internacionais, o Brasil deu um salto de qualidade, porque muitos trabalhadores
saíram da informalidade. Veja, mas de que forma esses trabalhadores ingressaram
na formalidade? Com os mesmos direitos de quem trabalhava na formalidade? Não,
ingressaram num patamar inferior em termos de categoria profissional, com a
correspondente categoria comum, eles eram outra categoria profissional.
Portanto, foram inúmeros empregos formalizados que saíram da informalidade, mas
não eram os mesmos empregos, com as mesmas características, com os mesmos
direitos, com as mesmas representações sindicais.
Então, com a terceirização também foi alterado o perfil das entidades
sindicais?
Sim, o que se tem hoje - e que pra mim é fundamental nessa relação da
terceirização - é que foi estabelecido um novo jogo, mas não puseram as regras.
Hoje se vê um discurso que em geral as categorias econômicas dizem assim:
"não, mas eu tenho negociado com o sindicato, há um sindicato da categoria
e esse sindicato representa os interesses, e nós temos observado tudo aquilo
que é negociado". Uma falácia! Porque a CLT estabelece categoria profissional
e categoria econômica. O que foi feito do lado da categoria profissional? Ela
foi pulverizada. No segmento eletricitário, por exemplo, todos estavam
abarcados pelo mesmo sindicato e tinham força para negociar com a categoria econômica.
Hoje, esse sindicato virou eletricitário, engenharia, prestação de mão de obra
e vários outros. Portanto, se são trinta e sete empresas, cada qual vai estar
ligada a uma categoria profissional diversa daquela dos eletricitários. Com
isso, os direitos assegurados ali são completamente diferentes de todas as
conquistas históricas da categoria dos eletricitários.
Mas isso não é comum acontecer quando há um desdobramento?
Certo, mas se houvesse para mudança da legislação uma dicção legal
diversa, na hipótese de em vez de categoria profissional fosse "setor
econômico" e "ramo de atividade", aí todos aqueles que estavam
prestando serviços para os eletricitários estariam juntos na negociação, ainda
que se fizesse uma negociação diferenciada internamente, mas todos estariam no
segmento econômico, no segmento profissional. Então a regra do jogo deveria ser
modificada em face da inevitabilidade da terceirização, seria preciso mudar a
lei, mas não é fazer lei para dizer o que é atividade fim e o que é atividade
meio, seria necessário mudar primeiro o conceito representativo de categoria.
Não se pode manter o conceito de categoria profissional se existem diversas
categorias negociando com o mesmo empregador, portanto o jogo está
completamente fora do tabuleiro. Falar o que é atividade fim e o que é
atividade meio não vai resolver, agora se eu colocar todos negociando, numa
negociação extensiva a todos, sem que eu faça um fracionamento, eu mudo a
negociação de patamar, aí eu mudo os direitos daqueles que estão representados
pelas entidades sindicais. Então esse discurso de dizer que "tenho mantido
com o sindicato", não, os sindicatos são criados para atender aquela
categoria momentânea ali para negociação, porque eles representam uma minoria,
que às vezes são os próprios ex-empregados da empresa que fundam os sindicatos
para negociar com seus empregadores porque eles favoreceram para a criação dos
próprios sindicatos. Então, como é que eu posso ter uma negociação num patamar
de legitimidade com essa circunstância? Se eu tiver uma terceirização onde a
legitimação do ente representativo e a representatividade deles foram reais, a
negociação muda, muda-se o patamar. O que hoje há é simplesmente uma
pulverização dos sindicatos profissionais em relação ao segmento econômico, que
está ali por um empregador, e com isso os direitos são precarizados, é uma
questão de custo, de preço.
Diante disso não parece ser tão interessante e rentável terceirizar os
serviços...
Se fosse tão interessante e tão economicamente viável terceirizar eu não
posso estar pagando mais eu só posso estar pagando menos para quem vai prestar
aquela atividade. Se eu estivesse pagando mais eu mesmo exerceria essa
atividade. Isso é o óbvio. Agora, se eu estou pagando menos onde é que o custo
vai ocorrer? Vai ser numa série de etapas da atividade produtiva, inclusive no
custo da mão de obra. Por sua vez, se o custo é mais barato, evidentemente que
eu tenho menos direito, menor salário, não tenho equiparação a ninguém da
empresa e consequentemente as normas de segurança saúde e higiene também não
são observadas com o mesmo rigor. Se o custo é barato em relação a esse
empregado como é que eu posso treiná-lo durante um longo tempo para depois
colocá-lo em atividade? Não, eu busco o empregado e o coloco para trabalhar.
Ministro, existe algum motivo específico para esse boom de
terceirização? E a respeito da controvérsia em torno da lei das
concessionárias, que permite terceirizar "atividade inerente", e com
base nisso as empresas defendem que podem terceirizar atividade fim, como o TST
vê essa questão?
Esse boom tem outra previsão legal, que foi a discussão
a respeito da Lei de Concessão e Permissão de Serviços Públicos, que autorizava
a execução de atividades inerentes da empresa. O que fez o Tribunal Superior do
Trabalho, numa síntese bem apertada dessa questão? O TST entendeu que essa
norma tem natureza administrativa, ela não trata de Direito do Trabalho. Então
essa norma vige no plano jurídico como a própria CLT, elas não se excluem, são
duas normas vigentes, daí porque a interpretação há de ser feita na consonância
dessas duas leis. Ou seja, eu posso aperfeiçoar administrativamente ao máximo a
atividade permissionária ou concessionária, agora quando eu estou fraudando a
legislação trabalhista, terceirizando aquilo que é inerente, isso é ilegal.
Portanto, mantido o marco regulatório da Súmula 331. É só isso que nós
dissemos. Tem-se alardeado que o TST declarou a inconstitucionalidade da lei de
concessão e permissão do serviço público, num dispositivo que fala em
terceirização de atividades inerentes porque impede a aplicação. É mentira, não
se disse isso. O Tribunal apenas disse que essa é uma norma de Direito
Administrativo.
Quais são os principais pedidos nas ações de terceirizados. Há uma
relação direta de precarização em função da terceirização?
Necessariamente, nos julgamentos nós temos visto no setor elétrico um
crescimento enorme do número de acidentes, portanto o que se pede em geral são
reparações decorrentes de acidentes. As estatísticas brasileiras são
tenebrosas, são 726 mil acidentes por ano com trabalhadores em geral, só isso
convertido em reclamação trabalhista já tem um mundo de reclamações, todavia
cada qual por suas áreas. Claro que nem todas decorrem pela precarização em
função da terceirização, mas grande parte sim, porque o descumprimento maior
reside nas normas de segurança e higiene desses trabalhadores. Ainda que
formalizados, se o custo é mais barato, evidentemente que o investimento em
segurança demanda um custo maior e um tempo maior, o que seria quase
incompatível com a própria questão do custo desse trabalho terceirizado.
Certamente que há alguma preparação, mas um período muito curto, sem
preocupação específica e de forma aprofundada. Aí vêm as empresas e dizem que
as condenações da Justiça do Trabalho têm estabelecido um custo de
pensionamento vitalício. Ora, por óbvio, a incapacitação é definitiva, como
vimos no caso do E.Q., não há uma fatalidade, não é obra de Deus um acidente de
trabalho. Quem empreende uma atividade sabe do grau de risco para efeito do
exercício daquela atividade. E há segmentos que são extremamente arriscados,
como é caso do setor elétrico. Evidentemente o empregador quando assume essa
atividade, ele sabe que há um risco inerente a ela, ele sabe que há uma
responsabilidade que decorrerá caso não sejam observadas as normas de
segurança. Mas como eles entendem que o empregador será o outro, responsável
pela reparação, eles não tem uma preocupação efetiva. Diante das condenações da
Justiça do Trabalho nós temos visto já uma mudança de comportamento dos
empregadores, no sentido de começar a exigir dessas empresas contratadas maior
especialização, maior qualidade na formação dos empregados, porque eles sabem
que serão responsáveis junto com esses empregadores nos acidentes ocorridos.
Então haveria a necessidade de uma mudança de postura da categoria
econômica?
Exatamente, um patamar ético tendo em vista as decisões da Justiça do
Trabalho, que pela repercussão econômica começam a exigir uma mudança cultural
e comportamental dos empregadores. Tudo bem que se admita terceirização, não há
como não admitir, é um fenômeno e o Tribunal Superior do Trabalho não é
refratário à terceirização, o que ele quer é estabelecer um patamar ético
jurídico para essas relações. Essas condenações fazem com que o comportamento
seja alterado, muda a perspectiva, e com isso o empregador começa a exigir dos
terceirizados um maior grau de especialização, com isso o fenômeno
socioeconômico vai se desenvolvendo de outra forma. Daí que eu considero, e por
isso tenho muito orgulho de ser juiz do Trabalho, que o Direito do Trabalho tem
um papel ético imprescindível nessa relação do capital-trabalho, porque ele
estabelece um marco mínimo em que o trabalhador quando dispõe a sua energia em
prol de outrem ele seja tratado não como uma coisa, ele não pode ser
coisificado, ele não pode ser um número. Se o preço do desenvolvimento é um
exemplo indiano ou um exemplo chinês, então nós estamos hoje caminhando hoje
para uma barbárie, porque o que se tem nesses países, ao contrário do que se
diz, são prestações de serviço quase que atrozmente realizados, sem nenhuma
garantia jurídica, são trabalhadores pendurados como num galinheiro, produzindo
manualmente, são famílias inteiras recebendo como pagamento um prato de comida,
sem nenhuma perspectiva de futuro. É isso que nós queremos para este país?”
(Ricardo Reis/MB)
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