“Santa Maria e a legislação penal
Mário de Magalhães Papaterra Limongi* A tragédia de Santa Maria traz à
tona, mais uma vez, a questão da legislação...
Autor: *Mário de Magalhães Papaterra Limongi
é procurador de Justiça
Mário de Magalhães Papaterra Limongi*
A tragédia de Santa Maria traz à tona, mais uma
vez, a questão da legislação penal brasileira. Tomados pela comoção,
comunicadores praticamente exigem a prisão dos responsáveis e relembram que
ninguém foi preso em outros casos que também comoveram a nação.
É natural que a morte de tantos jovens cause um
desejo de punição, ainda que qualquer punição não seja proporcional à dor
sentida pelos amigos e familiares dos rapazes e moças que perderam a vida
quando pretendiam apenas se divertir.
Por mais doloroso que isto seja, a verdade é que,
dentro do atual sistema, é pouquíssimo provável que, depois de longo processo,
ocorra a prisão de qualquer um dos responsáveis pelo acontecido.
Ainda que se possa sustentar que se trata de dolo
eventual, o fato é que, em hipóteses semelhantes (Bateau Mouche, shopping de
Osasco, etc) as decisões judiciais decidiram pela ocorrência de crime culposo.
Aliás, as análises e opiniões sobre o sistema
punitivo brasileiro vão de um extremo a outro.
Casos como o de Santa Maria fazem com que se diga
que a nossa legislação, por ser excessivamente branda, incentiva a
criminalidade e pessoas perigosíssimas, que deveriam estar confinadas, estão em
liberdade.
Há quem, no entanto, em posição diametralmente
oposta, sustente que a nossa legislação penal se equivoca ao dar importância
exagerada à pena de prisão que deveria ser restringida a pessoas efetivamente
perigosas. De acordo com os que assim pensam, os nossos presídios estão
repletos de pessoas que não ostentam periculosidade a quem seria mais eficaz a
aplicação de penas alternativas, tais como a prestação de serviços à
comunidade.
Penso que o grande equívoco é se imaginar que a
legislação, que sempre pode ser melhorada, acabará com a violência e a sensação
de impunidade.
De outro lado, importante desmentir certas
afirmações que, tantas vezes repetidas, parecem verdades absolutas.
Assim é que não é verdade que pequenos delinquentes
estejam cumprindo pena. Um ou outro caso excepcional, sempre apontado pela
imprensa, pode ocorrer, mas, nem de longe, é a regra.
Como a nação tomou conhecimento no julgamento do
mensalão, para que um réu primário cumpra pena em regime fechado, desde o
início, é preciso que seja condenado à pena privativa de liberdade igual ou
superior a oito anos o que, convenhamos, não é pouco. O não reincidente
condenado a pena superior a quatro e que não exceda a oito pode cumpri-la em
regime semiaberto e o condenado a pena igual ou inferior a quatro anos cumpre a
pena, desde o início, em regime aberto.
Dando um exemplo que pode ser entendido pelo leigo,
no caso de homicídio, o réu primário só cumprirá pena, desde o início, em
regime fechado se for condenado pela prática de crime qualificado (as
circunstâncias que qualificam o crime - motivação fútil ou torpe, emprego de
meio cruel, etc.- são especificadas no Código Penal). Se o homicídio for
simples, ou seja, sem nenhuma circunstância que o qualifique, a pena mínima
prevista é de seis anos e o regime de cumprimento de pena será o semiaberto.
Se, no entanto, for reconhecida uma circunstância que diminua a pena, tal como
o fato de o réu ter agido sob o domínio de violenta emoção logo em seguida a
injusta provocação da vítima, o réu poderá receber a pena de quatro anos de
reclusão e cumpri-la em regime aberto. Portanto, é perfeitamente possível que
alguém condenado à pena de quatro anos de reclusão por homicídio doloso jamais
se recolha à prisão. Ora, se é possível que alguém condenado por homicídio
doloso não cumpra a pena no sistema penitenciário, com mais razão em caso de
crime culposo.
Assim, para que um homicida primário seja recolhido
a regime fechado e passe a conviver com presos reincidentes e perigosos, é
preciso que seja definitivamente condenado pela prática de homicídio
qualificado. Ainda que se diga que o homicida possa ser um criminoso eventual,
ninguém há de sustentar que não se trata de crime grave e que seu autor não
deva ser minimamente punido.
Portanto, não é verdade que réus primários, que
praticam crimes sem gravidade, estejam recolhidos ao sistema penitenciário (a
exceção fica por conta dos crimes de roubo, inegavelmente graves, em que os
juízes são mais rigorosos na fixação do regime de cumprimento de pena até mesmo
para o réu primário). A ideia, sempre divulgada, de que o réu pobre que furtou
comida para os filhos vai para a cadeia simplesmente só ocorre em ficção. Para
que um furtador cumpra pena privativa de liberdade, é preciso que seja
reincidente, ou seja, é necessário que faça do furto seu meio de vida.
Como se vê, parece que não proceder o argumento de
que a legislação seja dura em excesso e que privilegie a pena privativa de
liberdade.
Mesmo assim, não há como negar a superpopulação
carcerária, o que indica que o sistema não é tão frágil como alguns imaginam.
O Estado não consegue acompanhar o aumento da
população carcerária e as construções de presídio não acompanham a demanda.
Quem já teve oportunidade de visitar nossos
presídios sabe que as condições dadas aos presos são péssimas, pelo que não é
razoável se dizer que o criminoso não teme ser preso. Em verdade quem delinque
imagina que não será descoberto e punido. O que incentiva a criminalidade não é
a suposta fragilidade da pena, mas a ideia de não receber qualquer punição.
Já estive dos dois lados.
Como Promotor de Justiça do 1º Tribunal do Júri de
São Paulo por nove anos, várias vezes me revoltei com a possibilidade de um
homicida cumprir pena em regime aberto.
Como Secretário Adjunto de Segurança de 1999 a 2001
convivi com a superpopulação carcerária nos distritos policiais e considerava a
possibilidade de que muitos pudessem estar em liberdade.
Na verdade, o problema é muito mais complexo e não
se resolve simplesmente com a mudança da legislação penal.
Tragédias como a de Santa Maria só serão evitadas
com um conjunto de medidas e com mudança geral de mentalidade.
Da mesma forma, a opção por uma legislação penal
mais ou menos dura passa por uma discussão com toda a sociedade desde que não
se tenha a ilusão de que a simples mudança de legislação seja a solução para
acabar com a violência”
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