“DIREITO COMPARADO
Proteção aos vulneráveis e as
insuficiências do Direito
Por Otavio Luiz Rodrigues Junior Otavio
Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito
Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no
Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht
(Hamburgo).
As diversas crises do sistema
capitalista no século XX, muitas vezes causadas ou agravadas pelos conflitos
mundiais de 1914-1918 e 1939-1945 ou pelas guerras pós-coloniais, de entre as
quais as mais expressivas foram as da Coréia, da Argélia e do Vietnã,
refletiram-se em alterações normativas, com a criação de microssistemas ou de
regimes de qualificação autônomos, ao exemplo do Direito do Trabalho, do
Direito do Consumidor, das leis do inquilinato, de leis específicas para
idosos, crianças e outros vulneráveis. Essas transformações também receberam
diferentes tentativas de explicação e de justificação teórica, as quais
receberam diversos “selos” como a socialização ou a publicização do Direito,
posto que, na atualidade, seja muito arriscado se utilizar dessas expressões
sem riscos quanto à integridade e à coerência da exposição da matéria
analisada. É sempre bom recordar que
Anton Menger von Wolfensgrün, um dos célebres nomes da crítica ao Direito Civil
clássico, foi um dos primeiros a
censurar as ideias de Karl Marx. A ponto de ter sido publicamente contestado
por Karl Kautsky, colaborador de Friedrich Engels, sob o argumento de que suas
ideias depositavam uma fé irreal na capacidade de transformação do Direito.
Segundo Kautsky, a “concepção jurídica” desenvolvida por Menger seria
tipicamente burguesa e havia retirado Deus da centralidade do Direito e
colocado, em seu lugar, o homem. O “direito humano” sucedeu ao “direito
divino”, assim como o Estado teria substituído a Igreja.
Considerada essa limitação
histórica desses “novos direitos do século XX”, pode-se dizer sobre eles que se
lhes aplica a advertência do jovem Trancredi a seu tio, o príncipe de Salina, no clássico (também do
século passado) Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “A não ser que
nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para
que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.
Não é sem causa que todos nós
expressamos um sentimento de impotência diante dos quotidianos abusos cometidos
no âmbito de incidência de muitos desses direitos de caráter especial e
protetivo, que se destinam a regular as situações jurídicas que fogem do
paritetismo dos sistemas gerais. O fato
de termos uma das melhores legislações de consumo do mundo não foi suficiente
para que nos livrássemos das contínuas ofensas aos direitos asseguradas pelo
Código de Defesa do Consumidor, uma das mais bem-sucedidas experiências
normativas nacionais. As deficiências regulatórias talvez sejam as mais
importantes causas da ineficácia protetiva das leis de proteção aos
vulneráveis. Um exemplo disso é o novo selo de identificação dos assentos nas
aeronaves. Ao entrar em um equipamento comercial para uma viagem interna, o
passageiro poderá saber qual o padrão de largura e de distância entre os
assentos, conforme um sistema de letras e de cores, semelhante ao que se
encontram em eletrodomésticos para informar o nível de consumo de energia
elétrica. Esse selo, uma determinação regulatória da Agência Nacional de
Aviação Civil (Anac), é tão informativo quanto inútil. Saber o quão
desconfortável será o voo é uma informação muito pouco relevante para um
passageiro, que sofrerá em si mesmo os efeitos desse desconforto.
Se é verdadeira a premissa de que
as normas dos direitos protetivos, ao menos na lógica e na organização do
sistema capitalista, não conseguem resolver os conflitos sobre os quais
pretendem incidir, qual seria sua função? Podem-se identificar duas delas.
A primeira é
simbólico-pedagógica. Ressalvadas as hipóteses de regulação capturada ou
ineficiente, as normas protetivas legais (ou mesmo regulatórias) podem induzir
mudanças de comportamento; formas alternativas de controle social de
fornecedores; rejeições coletivas a produtos e a serviços ofertados por
determinada pessoa jurídica; reforço nos mecanismos de accountability;
alteração da cultura interna das empresas e perda do valor de mercado das
corporações. Tanto maior a essencialidade dos produtos ou serviços, no entanto,
tanto menor será o impacto dessa força simbólica e educativa das normas
protetivas de consumo. O exemplo do transporte aéreo é eloquente: qual minha
alternativa, diante de um duopólio no setor? Deixar de voar ou submeter-me ao
transporte aéreo em um avião que ostenta o selo C ou D, na classificação da
Anac para os assentos? A resposta é ociosa.
A segunda função das leis
protetivas (especificamente de Direito do Consumidor) está na solução tópica,
mesmo que não individual, de problemas gerados pela assimetria de posições
técnicas (informações e conhecimento), econômicas e jurídicas entre
fornecedores e consumidores. É a funda de Davi contra o poderoso Golias. O
conhecimento e o estudo das normas de Direito do Consumidor também se prestam a
ampliar o foco dessa segunda função, na medida em que permite o exame dos
conflitos de maneira mais adequada e eficaz.
Essa segunda função, que se pode dizer corretiva, é mais (re)conhecida
pelas gentes. Seu efeito está nas milhares de sentenças proferidas diariamente
e que modificam ou declaram abusivas cláusulas contratuais; reconhecem os
direitos (legítimos) dos consumidores; retiram produtos inadequados, perigosos
ou nocivos do mercado; asseguram a fruição de direitos e impedem a interrupções
de outros tantos.
Há, no entanto, de se reconhecer
um inevitável(?) e deletério efeito colateral da função corretiva dos direitos
protetivos, especialmente os relativos ao consumo, que é o abandono da técnica
jurídica em nome de um certo moralismo interpretativo. Se as normas protetivas
são uma funda de Davi, cada Golias abatido é uma glorificação para quem lhe
atinge com a pedra pontiaguda da Justiça. E nessa condição pretendem-se não
apenas juízes, como todos os que atuam no sistema jurídico, figurando, na linha
de frente, os doutrinadores.
As causas desse moralismo
interpretativo, que tem encontrado a crítica sincera e de variegada origem
ideológica nos textos e acórdãos de Lenio Luiz Streck, Paulo Roque Khouri, José
Oliveira Ascensão, José Antonio Dias Toffoli, Claudia Lima Marques, Antonio
Junqueira de Azevedo, Martônio Barreto, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Bruno
Miragem, Antonio Carlos Ferreira, Gabriel Nogueira Dias, Ingo Wolfgang Sarlet,
José Antonio Peres Gediel, Torquato Castro Junior e outros igualmente notáveis
juristas, podem-se inventariar com alguma dificuldade.
É certo, contudo, que a metáfora
davídica, para além de sua expressividade e da força imagética das figuras
bíblicas, é também reveladora da atualidade das discussões entre Menger e
Kautsky. Não se pode querer que o Direito assuma um papel de divindade laica,
capaz de resolver todas as injustiças de um sistema que é estruturalmente
assimétrico, de onde, aliás, para muitos, ele consegue retirar sua própria
superação e renovação contínuas. É preciso sempre recordar os limites
históricos e materiais do Direito e sua inserção em dado sistema econômico.
A grande vantagem desse
reconhecimento dos limites do Direito, especialmente os morais, está em se
deixar abertas as vias para o debate em fóruns democráticos não jurídicos.
Seguindo-se uma estrutura de pensamento desenvolvida por Christian Edward Cyril
Lynch,[1] por este colunista e por José Antonio Dias Toffoli[2], no Império, o
poder moderador era a chave para a solução dos conflitos regionais e de
classes, o qual era combinado com a ação de órgãos como o Conselho de Estado,
com a deliberada contenção do Exército e com a indicação de pessoas oriundas de
províncias diferentes para ocupar a chefia civil e militar dessas unidades
imperiais. Na Primeira República, o mecanismo tornou-se o Estado de Sítio. Após
a Revolução de 1930, o protagonismo militar, que se havia ensaiado com o golpe
republicano de 1889, tornou-se central no processo político. De 1930 a 1985, o
Brasil assemelhou-se aos últimos estágios do Império Romano, com as legiões
decidindo quem seriam os césares. Após 1988, o Poder Judiciário, sob a
liderança do Supremo Tribunal Federal, assumiu grande parte dessas funções
históricas anteriormente cometidas ao imperador, ao presidente (no estado de
sítio) e aos militares.
A procura pelo Poder Judiciário,
como disse Luiz Werneck Vianna, em uma das mais inteligentes metáforas que já
ouvi, assemelha-se à ocupação da praça Tahrir pelo povo egípcio. As pessoas
para lá se dirigiram porque acreditaram que naquele espaço (um espaço físico,
mas profundamente simbólico) é que seriam resolvidos os conflitos que tragaram
o Egito nos estertores da era Mubarak. Os cidadãos recorrem à Justiça porque é
nesse espaço (mais simbólico do que físico) que lhes disseram, desde que foi
aprovada a “Constituição-Cidadã”, haver um pote de ouro no final do arco-íris.
A vertigem desse novo poder,
voltado para a defesa dos pobres e vulneráveis, com a carga simbólica herdada
da monarquia, foi ampliada pela cooperação de um coro grego, a cantar loas em
uníssono, que são muitos professores de Direito, incapazes de exercer seu
ofício com a necessária e cívica função crítica, a nós atribuída pelo também
insuspeito ideologicamente Friedrich Carl Freirrer [barão] von Savigny, em seu
clássico Sistema de Direito Romano Atual.
As jornadas de junho de 2013, com
as pessoas quebrando bancos, lojas de telefonia e outros símbolos da “sociedade
de consumo”, que lhes apresentou um igualitarismo (pós-?)moderno sob a forma da
aquisição permanente de bens supérfluos e de programada obsolescência, podem
ter sido o indício de que esse modelo começa a se esgotar. A ausência de canais
democráticos efetivos poderá conduzir para o radicalismo totalitário, à
esquerda ou à direita, ou à reinvenção dos mecanismos de representatividade
partidária, o melhor modelo de filtragem da vontade popular até agora
existente. O certo é que as pessoas começam a despertar para os limites do
Direito, especialmente no que se refere a campos nos quais a prometida desigualdade
seria superada por meio de ações judiciais. Atrás da montanha, onde fica essa
“praça Tahrir” simbólica, há um exército de Golias.
O esperado enfraquecimento desse
moralismo interpretativo, que começa a despertar críticas doutrinárias, poderá
permitir que o Direito se volte para o rigor técnico e assuma os custos
argumentativos que lhes são inerentes. Eros Roberto Grau, a propósito, acaba de
lançar a sexta edição refundida de Ensaio e discurso sobre a a
interpretação/aplicação do Direito sob o título Por que tenho medo dos juízes
(São Paulo: Malheiros, 2013), obra na qual ele expõe sua profissão de fé
positivista. Segundo ele, enquanto não mudarem os tempos e surgir uma nova
alvorada, ele continuará entoar o cântico de sua juventude, pois aprendeu que a
última barreira de proteção do pobre é a objetividade, a igualdade e a cegueira
da lei.
O respeito à técnica, às
categorias, ao rigor teórico, menos do que um apelo fora de moda a um passado
perdido, é uma necessidade de que o Direito preservará os espaços duramente
conquistados ao longo século contra o arbítrio da política (leia-se, dos
poderosos, quaisquer que sejam os nomes que se lhes atribuam os povos, Kaiser,
imperator, negus, xá, sultão ou presidente), da religião e dos supostos valores
morais autônomos.
Os juízes, professores,
advogados, membros do Ministério Público, enfim, todos os que oficiam perante
essa deusa caprichosa e inatingível, a respeito de cuja existência milhares de
pessoas no mundo não duvidam (até porque cursam faculdades de Direito e
invocam-na nos templos em sua honra, que são os tribunais), são cada vez mais
úteis e necessários no combate à mistificação do Direito. Não é preciso ser
positivista, naturalista, culturalista, criticista ou historicista para assim o
fazer”.
[1] LYNCH, Christian Edward Cyril. O momento
monarquiano o poder moderador e o pensamento político imperial. Teses de Doutorado. Programas de
Pós-graduação do IUPERJ/Ciência Política. Rio de Janeiro, 2007.
[2] DIAS TOFFOLI, José Antonio
Dias. O CNJ tira poderes das elites estaduais. Entrevista por Eumano Silva e
Leonel Rocha. Revista Época, edição 712, p. 56-58, 9/1/2012.
Revista Consultor Jurídico, 30 de
outubro de 2013
Otavio Luiz Rodrigues Junior é
advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios
pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).
Acesso: 22/01/2014
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