“DIREITO COMPARADO
Hungria também adotará novo
Código Civil em 2014
Por Otavio Luiz Rodrigues Junior
é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com
estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo)
A Hungria, após a I Guerra
Mundial, foi governada pelo último comandante da Esquadra Imperial
Austro-Húngara, o almirante Miklós Horthy de Nagybánya (1868-1957). Os
imperadores austro-húngaros eram também reis da Hungria. Com a queda da
dinastia Habsburgo, em 1919, houve um sincero movimento na Hungria para
reconduzir o último imperador, Carlos, ao trono de Santo Estevão. Os
monarquistas contavam com o apoio do almirante Horthy, um homem que ascendeu
com rapidez na hierarquia imperial e real, graças ao apoio da família Habsburgo
e também a sua inegável coragem pessoal. Na Batalha do Estreito de Otranto
(1917), o almirante liderou os austro-húngaros em uma vitória contra os Aliados
na última vitória relevante de seu país na guerra. A fotografia de Horthy, em uma
maca, após desfalecer em razão de seus ferimentos, quando conduzia a frota,
correu o Império e alimentou sua popularidade como herói de guerra (veja
abaixo).
Com o prestígio de ter sido um
dos poucos comandantes vitoriosos em uma guerra que devastou a Áustria-Hungria,
Horthy combateu o regime comunista instaurado por Béla Kun em 1919. Em março de
1920, a monarquia foi nominalmente restaurada na Hungria e o almirante Horthy
assumiu o cargo de regente. Houve uma tentativa de recuperação do trono para Carlos
von Habsburgo, mas sem o apoio de Horthy (considerado um traidor da causa
monárquica). Desde então, o almirante-regente tornou-se o senhor da Hungria,
com um paulatino processo de concentração de poder em sua pessoa e de abandono
das estruturas parlamentares, que se converteram em fachada para um regime de
força. A situação jurídico-política húngara nesse período era assaz curiosa. A
esse respeito, tem-se uma história bem curiosa, que se não for verdadeira, é
bem contada, sobre um diálogo entre um diplomata americano e o presidente
Wilson, no qual se discutia a celebração de um modus vivendi com a Hungria.
Wilson perguntara qual o regime do país. O diplomata respondera: “Uma
monarquia”. “E qual o nome do rei?”. “Não há rei”. “Meu Deus”, retrucou o presidente,
“então, quem governa o reino?”. A resposta: “O almirante Horthy”. O presidente
terminou a conversa espantado: “Mas, a Hungria não tem saída para o mar! Que
país estranho. Uma monarquia governada por uma almirante, em um país sem
Marinha”.
A aproximação de Horthy com os
regimes de Adolf Hitler e Benito Mussolini deu-se ao longo da década de 1930. O
regime húngaro deslocou-se lentamente para as forças do Eixo, adotando
políticas antissemitas e de perseguição a comunistas e dissidentes. No entanto,
o ingresso na II Guerra Mundial, iniciada em 1939, não foi automático. A
resistência interna no país era grande e o conde Pál Teleki, primeiro-ministro
húngaro, suicidou-se após não ter conseguido manter a Hungria em posição de
neutralidade, como havia assegurado aos diplomatas britânicos. Horthy, sob
forte pressão alemã, levou a Hungria, em 1941, de modo oficial, à guerra ao
lado da Alemanha e da Itália, o que se revelou desastroso.
Já em 1942, Horthy iniciou um
movimento para se afastar da Alemanha, que foi malsucedido. Em 1944, o regente
húngaro tentou assinar um armistício com os russos. O filho de Horthy,
negociador plenipotenciário, terminou por ser raptado, em uma ação espetacular,
por agentes alemães e levado como refém e garante da permanência húngara no
conflito. O almirante foi deposto e Hitler ordenou que Budapeste fosse mantida
até o último homem. Quem visita a antiga sede do Ministério da Guerra, na
capital húngara, pode observar o prédio cravejado de balas e bombas, em razão
desse combate sanguinário entre russos, alemães e húngaros leais ao governo
colaboracionista pós-Horthy.
Com a invasão russa, o país
converteu-se em um satélite soviético e adotou o regime comunista. A aceitação
do domínio soviético não foi pacífica. A Revolução de 1956 foi uma tentativa
frustrada de sublevação espontânea do povo de Budapeste contra o governo
comunista. Os revoltosos foram derrotados pelo Exército Vermelho e pela Força
Aérea soviética, o que foi seguido por centenas de execuções for enforcamento
dos líderes do movimento. Assumiu o poder, após a invasão, o líder János Kádar,
que governou o país de 1956 a 1988.
No ano de 1959, aprovou-se um
novo Código Civil, que adotava os preceitos comunistas em relação a contratos e
direitos de propriedade.
A queda do comunismo ocorreu em
1989. A Hungria desempenhou um papel-chave como desencadeadora das chamadas
“Revoluções de 1989”, que atingiram a maior parte dos países da chamada
“Cortina de Ferro”. Uma vez mais a Hungria se presta a sediar situações
inusitadas: Otto von Habsburgo(1912-2011), filho do imperador Carlos, líder
humanista e pan-europeísta, liderou uma piquenique na fronteira da Hungria com
a Áustria, quebrando as rígidas regras de controle e de passagem para o
Ocidente. Essa iniciativa foi aproveitada pelos governantes húngaros, que
trabalhavam silenciosamente para provocar o fim da ascendência soviética, para
eliminar a restrição de passagem para os países capitalistas. Resultado? Em
poucos dias, milhares de alemães orientais e outros europeus do leste usaram a
fronteira húngara para chegar à Alemanha Ocidental. Na prática, o Muro de
Berlim perdera naquele momento sua função histórica e os regimes comunistas do
Leste cairiam como um castelo de cartas.
A passagem da ditadura para a
democracia não foi simples. O país hoje é governado por um antigo líder
estudantil anticomunista, o jurista Viktor Orbán (1963-), que conseguiu aprovar
uma nova constituição, em vigor desde 2012, envolta em muita polêmica. A atual
constituição húngara reforça os valores tradicionais do país, seus laços com o
cristianismo e a herança cultural europeia, além de restabelecer antigas
instituições dos tempos imperiais. Orbán também lidera um processo de reforma
da legislação ordinária da Hungria, ainda profundamente marcada pela superposição
de normas do período comunista e de regras advindas da adaptação do país à
União Europeia e suas diretivas.
Como resultado dessas mudanças no
marco normativo húngaro, tem-se o Código Civil de 2013, que entrará em vigor
plenamente no dia 15 de março de 2014. O “Novo Código Civil”, como é referido
usualmente, é aguardado nos meios jurídicos porque esclarecerá diversos pontos
contraditórios do atual Direito Civil húngaro, especialmente no campo do
Direito de Família e do Direito Societário.
O Novo Código Civil baseia-se nos
princípios (a) da autonomia privada, (b) do respeito à propriedade, (c) da
liberdade contratual e (d) da liberdade de associação. Além disso, o código
húngaro tentou incorporar a experiência jurisprudencial e os avanços no Direito
da União Europeia. Outra inovação está na inserção de normas específicas de
Direito do Consumidor e no aumento à proteção das relações negociais entre os
particulares.
O Direito Civil húngaro foi
historicamente influenciado pelos direitos da Áustria e da Alemanha, além do
Código Civil suíço. A codificação de 2013 também recebeu aportes de leis civis
elaboradas no final do século XX e início do século XXI, como o Código Civil
holandês e o Código Civil do Quebec, e os projetos de códigos-modelo ou de
princípios setoriais, como o Unidroit, o projeto da Comissão de Pavia, o
Projeto de Quadro Comum de Referência (DCFR).
O princípio da boa-fé objetiva
foi prestigiado, atuando nas fases pré-contratual e pós-contratual. A
influência da Reforma do Direito das Obrigações de 2002, no Código Civil
alemão, fez-se sentir no código húngaro, ao se ampliar o conteúdo da obrigação
para fins de se qualificar sua violação no inadimplemento.
A estrutura do código, que contém
1.600 artigos, divide-se em oito partes, compreensivas, em termos gerais, do
Direito das Pessoas; Direito das Coisas; Direito das Obrigações; Direito
Societário; Direito de Família; Direito das Sucessões. Suprime-se a divisão
anterior entre um Código Civil, de par com um código de família e um código
para as empresas. Esse é um ponto interessante se comparado ao Brasil, onde se
discute a criação de um código específico para o Direito de Família e
Sucessões, além de um novo Código Comercial. Os húngaros, assim como os
tchecos, seguem o caminho adotado no Brasil em 2002, a saber, de um código
único para todo o Direito Privado, à exceção do Código de Defesa do Consumidor.
Em relação aos direitos da
personalidade, adotou-se a teoria da “esfera de iluminabilidade”, afirmando-se
que as pessoas notórias devem ter uma proteção menor a sua privacidade. Ao
passo em que se ampliou a proteção contra ofensas religiosas, étnicas ou
raciais, por meio da invocação do Poder Judiciário, no prazo de 30 dias, para
se fazer cessar tais lesões, inclusive quando praticadas contra comunidades e
não somente indivíduos.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é
advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios
pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für
ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo)”.
Revista Consultor Jurídico, 13 de
novembro de 2013. Acesso: 22/01/2014
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