sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Vou se bater no chão, ninguém me põe a mão

[O Nosso Idioma] - O português em Angola

«Vou se bater no chão, ninguém me põe a mão»

Edno Pimentel*

A troca do pronome reflexo me por se na letra de uma composição do cantor angolano Yuri Cunha, comentada por Edno Pimental, na coluna "Professor Ferrão", do jornal Nova Gazeta, de 14-03-2013.

Começou uma hora mais tarde, como já é habitual, todos querem ir à festa, mas ninguém quer ser o primeiro a chegar. Desta vez, ela quis fazer diferente e decidiu começar o boda* com os dez convidados que estavam presentes.
Com o volume ainda baixinho, ouvia-se no fundo o nosso folclore - Bonga e Vaya con Dios, num dueto de cujo título não me lembro -, numa mistura de kimbundu com inglês e espanhol.
Como a festa não é só música, havia convidados que se enchiam de água na boca com o cheiro da carne seca, ainda sem funje, porque seria feito naquele momento. Mas o irmão da aniversariante, que já não suportava esperar mais, decidiu: «se a festa não começar de verdade, vou se bater no chão e ninguém me põe a mão». A irmã, com receio que o jovem estragasse a festa, pede-lhe calma:
«Espera aí! Não tens esse direito. Nem eu, enquanto dona da festa, posso dizer isso, porque não fica bem». Isso, referindo-se à frase: «É linguagem que aceitaria se fosses músico. Yuri da Cunha assim procede, ou seja, canta nesse tipo de linguagem, porque a música lhe dá a possibilidade de ‘brincar’ com a língua». Indignada, ela vai mais longe: «Não creio que, numa situação normal, fora da música, aquele cantor diria "vou se bater no chão…"»
E a irmã tinha razão. Se ele insistisse em dizer aquela frase, seleccionando o se como pronome clítico correspondente a eu, os seus irmãos mais novos podiam pensar que era o correcto.
Yuri da Cunha, enquanto cantor, tem a liberdade de usar a língua à sua maneira, para conferir alguma beleza ao que ele sabe fazer muito bem: cantar. Na música, tal como na poesia e na narrativa, os autores podem servir-se de recursos estilísticos e de alguma subjectividade para tornarem os seus textos literários.
Em «vou se bater no chão», o ideal é substituir o se por me, porque vou corresponde eu (eu vou), cujo pronome objecto é me e não se. Na conjugação perifrástica, como a proposta na frase, vou bater, o pronome aparece depois do segundo verbo: «vou bater-me no chão» (= vou fazer, vou agir); «ninguém me põe a mão» (= ninguém me impeça).
*Em Angola, qualquer festa com dança ou comida (Dicionário Houaiss).

15/03/2013

Sobre o autor

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É professor do ensino secundário em Luanda e assina no jornal Nova Gazeta a coluna Professor Ferrão sobre o uso da língua portuguesa em Angola.

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