quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Como resolver esse problema da generalidade do texto legal diante do dado real não regulado?

"Estou em férias, mas não resisto falar sobre a questão que envolve o time da Portuguesa e o STJD. Muito do que li na defesa da decisão desse órgão é insustentável.
Já no século IV antes de Cristo,  os gregos sabiam que lei e justiça não são conceitos que combinam o tempo todo. A lei, como regra, é feita para valer para muitas pessoas, para uma cidade, uma comunidade, um país inteiro. Daí que ela é naturalmente geral e abstrata, pensada a priori para o maior número de situações de fato possíveis de serem previstas pelo legislador. Mas, como se diz, nem sempre o fato se adequa ao prescrito ou, em outros termos, por mais que o legislador queira não consegue prever todos os fatos que advirão para poder enquadrá-lo na norma. Por isso, é importante – e sempre foi – o papel do Juiz ao interpretar e aplicar a lei no caso concreto. Ele deve ser capaz de compreender os limites em que a norma foi posta e descobrir se o fato analisado está ou não em consonância com os termos legais ou com seu espírito. Realço: em consonância com os termos legais, vale dizer, com as palavras da lei ou com seu espírito, isto é, sua finalidade, sua natureza, sua função etc.
Muito bem. Aristóteles havia percebido esse tipo de dificuldade da aplicação de leis muito gerais diante de fatos bem específicos: “…toda lei é universal, mas a respeito de certas coisas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta. Nos casos, pois, em que é necessário falar de modo universal, mas não é possível fazê-lo corretamente, a lei considera o caso mais usual, se bem que não ignore a possibilidade de erro. E nem por isso tal modo de proceder deixa de ser correto, pois o erro não está na lei, nem no legislador, mas na natureza da própria coisa, já que os assuntos práticos são dessa espécie por natureza”[i]
Como resolver esse problema da generalidade do texto legal diante do dado real não regulado?
O Filósofo responde. Diz ele que estabeleceu uma espécie de justiça capaz de corrigir a natural vagueza da lei geral: a equidade. Esta é sempre dependente da hipótese real e concreta analisada: “É essa a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão de sua universalidade. E, mesmo, é esse o motivo por que nem todas as coisas são determinadas pela lei: em torno de algumas é impossível legislar…”[ii].
Vê-se, então, que a equidade é dependente do caso real analisado e julgado, funcionando como um corretivo da lei, que acabou não estatuída de forma adequada em função de sua alta generalidade.
Fixemos melhor ainda, então, o sentido semântico do termo. Vou me pautar na exposição de Alípio Silveira sobre o assunto[iii]. Diz o jusfilósofo que há três acepções para o conceito de equidade. Uma de sentido amplíssimo, que representa o princípio universal de ordem normativa relacionado a toda conduta humana, do ponto de vista religioso, moral, social e jurídico que todos devem obedecer porque se constitui em suprema regra de justiça. A segunda, de sentido amplo, que leva ao conceito de justiça absoluta ou ideal relacionado à ideia de Direito Natural. E a terceira, em sentido estrito, que é a justiça no caso concreto.
É esse último sentido que interessa e que deveria ter interessado aos membros do STJD. A escalação de um jogador suspenso deveria ser avaliada em função do princípio maior da Justiça e da razoabilidade, ambos fundamentos constitucionais. Transcrevo, por todos, o que disse o jornalista Fábio Sormani; Héverton entrou em campo faltando 13 minutos para a partida acabar. Esteve com a bola nos pés por 1:47 minuto. Não fez gol, pois a partida terminou 0-0. E nem impediu que o Grêmio marcasse.
Que consequências Héverton trouxe ao jogo? Nenhuma.
Embora eu ache que a Portuguesa não pode ser punida pela escalação do jogador … digamos que ela seja considerada culpada. Aí eu pergunto: a punição por ter escalado Héverton, que jogou 13 minutos, pegou na bola por 1:47 minuto, não fez gol e nem impediu gol do adversário, a punição do rebaixamento não parece desproporcional ao dolo cometido (que eu, torno a falar, acho que não ocorreu)?
Volto a dizer: não é completamente desproporcional? Jogar à Série B um time que no campo de jogo conquistou limpa e guerreiramente o direito de permanecer na Série A porque utilizou um jogador que estava supostamente punido por 13 minutos, que pegou na bola por 1:47 minuto, não fez gol e nem impediu gol do adversário?”[iv]
Nem adianta argumentar que regras de futebol não podem ser submetidas ao sistema jurídico constitucional, porque atualmente não há qualquer dúvida a respeito. Os jogos de futebol, os campeonatos, as disputas etc. são típicos produtos de consumo, planejado, promovidos, oferecidos e vendidos pelas regras do mercado de consumo e estão submetidos a leis específicas como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Torcedor. Logo, toda situação jurídica existente na área há de estar em consonância com os princípios e normas da Constituição Federal.
E, antes que façam qualquer acusação sobre essa técnica, lembro que ela não se confunde com nenhum tipo de “direito alternativo”, nem com inaplicação da norma, quer por desprezo, quer por inconstitucionalidade. Veja-se, por exemplo, que uma lei ordinária pode ter sua incidência bastante alterada ou afastada, com pleno respeito aos ditames constitucionais para que se concretizem os ditames da justiça, sem violação ao sistema jurídico vigente. O contrário disso seria uma iniquidade.
E também não se pode olvidar que o comando constitucional determina a implementação de uma ordem jurídica justa, não só como decorrência lógica de seus fundamentos, uma vez que não se poderia — ou, ao menos, não se deveria — conceber um sistema constitucional democrático que não fosse justo, mas também porque, no caso da Constituição Federal brasileira, a construção de uma sociedade justa está estabelecida como um objetivo fundamental da República (art. 3º, I).[v] Além, claro, como lembrei acima, da necessidade da utilização do princípio da razoabilidade como elemento do ato de decidir.
Não quero nem preciso prosseguir. Li, como disse, defesas sem fundamento da decisão do STJD no caso da Portuguesa de Desportos. Cito apenas uma: a de que a decisão foi “técnica”.
Ora, uma decisão “técnica” válida é aquela na qual o julgador aplicou a lei e ao mesmo tempo fez justiça. Se a decisão aplica a lei e gera injustiça, ela não é técnica. Ela é – para o sistema constitucional brasileiro – inconstitucional e/ou injusta. É exatamente o caso da Lusa: além do non sense da aplicação direta e cega da lei, que, claramente, não foi pensada para o caso ocorrido,  foi desprezado o princípio constitucional da razoabilidade. A decisão é insustentável.
Sei que há também algumas questões em relação ao descumprimento de regras do Estatuto do Torcedor. Mas, penso que a decisão do STJD do modo como proferida,  após o recurso dos dirigentes da Portuguesa de Desportos, deverá ser modificada pela Justiça Comum com o que se fará, finalmente, Justiça!
***
PS.: Já havia escrito este artigo quando li a notícia de que os dirigentes da Lusa resolveram não ir à Justiça Comum. Uma pena. Continuo pensando que o produto “futebol” somente será mais interessante (e talvez até mais rentável) quando os consumidores-torcedores forem mais respeitados (Por exemplo, sou a favor do controle das regras dentro de campo com o uso das modernas tecnologias existentes para evitar as manipulações; escrevi mais de uma vez sobre isto). Do modo com as coisas se passam, resta apenas ao torcedor boicotar os jogos e as transmissões televisivas. Algo difícil de acontecer".
http://terramagazine.terra.com.br/blogdorizzattonunes/blog/2014/01/07/o-stjd-esta-atrasado-mais-de-24-seculos/.  Acesso: 23/1/2014

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