“FORMALISMO DO JUDICIÁRIO
O que esperar da Justiça no Brasil?
Por José Renato Nalini: corregedor-geral da Justiça de São
Paulo.
*Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de
S.Paulo desta quinta-feira (2/1)
O Judiciário é o grande protagonista da cena estatal neste
início do século 21. Todas as questões humanas são agora livremente submetidas
à sua apreciação. No cenário micro, as pessoas perderam o receio de ingressar
no Fórum, descobriram o acesso à Justiça e a ela recorrem com desenvoltura. No
mundo macro, todas as políticas públicas passam pelo Estado-juiz, graças a uma
Constituição que subordina a administração pública a princípios judicialmente
aferíveis. Qualquer atuação estatal resta jungida à avaliação de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Diante desse comando
explícito, ficou superado o óbice à incursão judicial sobre o mérito
administrativo. Antes, alguns assuntos residiam na esfera da discricionariedade
do administrador. Agora, incumbe ao juiz examinar se o gestor da coisa pública
observou estritamente a vontade constituinte. Constatado o desvio, o julgador
se arroga na função governativa.
Resultado dessa redescoberta da Justiça foi o excessivo
demandismo brasileiro. Tramitam atualmente 93 milhões de processos para 200
milhões de pessoas. Como se todos os habitantes desta Nação estivessem a
litigar. A beligerância parece a regra para quem observa o Judiciário desta
era. Administrar o crescente número de ações judiciais requer prudente análise
do fenômeno. A resposta singela e tradicional é multiplicar as estruturas do
Judiciário, com criação de mais unidades, ampliação do quadro de pessoal e
urgência na obtenção de orçamento compatível com as necessidades atuais e
vindouras.
Outra leitura implicará prover a Justiça de gestão
competente para acelerar a outorga da prestação jurisdicional sem aumentar em
demasia as atuais estruturas. Para isso a informatização deve ser otimizada, de
maneira a propiciar maiores resultados, a par de capacitação e motivação do
funcionalismo a oferecer o melhor de seus préstimos, sem a promessa de inflação
do quadro de servidores. O funcionário estimulado se convenceria de que é mais
eficaz investir numa carreira prestigiada, com perspectivas de ascensão
funcional e de retribuição por desempenho, em lugar da proliferação infinita de
cargos e funções mal remuneradas.
As especificidades da Justiça não a isentam de absorver a
cultura dominante, em que o ritmo da sociedade não se compadece mais com a
lentidão do processo judicial. O modelo de quatro graus de jurisdição impõe ao
demandante e ao demandado um suplício que se não confunde com perder o pleito:
aguardar durante longos anos que se profira o julgamento definitivo, após as
idas e vindas de instâncias intermediárias. Sem falar nas dezenas de
oportunidades de reapreciação do mesmo tema, ante o caótico esquema recursal.
A par disso, a Justiça tem de continuar a conviver em
harmonia com as várias alternativas de solução de conflito que prescindem da
intervenção judicial. Seu papel é sinalizar qual a leitura predominante do
ordenamento para que a pacificação resulte de um desenvolvimento da autonomia
cidadã. Incentivar a conciliação, a mediação, a negociação, a transação, a
celebração de acordos após imersão das partes na realidade que bem conhecem é
fundamental para que impere a efetiva justiça no Brasil.
Investir na cultura do diálogo não interessa exclusivamente
ao Judiciário, para mero alívio de sua insuportável carga de trabalho. A
questão é muito mais séria e abrangente. Entregar todos os interesses ao
Judiciário, agora, significa formatar uma cidadania inoperante, incapaz do
diálogo, e tornar cada vez mais remota a potencialidade de implementação de uma
democracia participativa. Como preparar o cidadão para contribuir na gestão da
coisa pública, se seus problemas, até os de menor dimensão, precisam ser
decididos no formalismo do Judiciário?
Não interessa à República brasileira inibir o protagonismo
dos brasileiros, convertendo-os em membros de uma sociedade tutelada, a
depender do Estado-juiz para a resolução de problemas que podem ser enfrentados
na madura e saudável discussão dos próprios interessados. A solução negociada é
muito mais ética que a decisão judicial. Esta é a mais forte, a mais poderosa,
mas também a mais precária das respostas. A parte insatisfeita sempre poderá
fazer ressurgir o conflito mal resolvido, pois a decisão nem sempre atinge o
mérito e se resume a um aspecto processual, além do sabor frustrante de um
julgamento epidérmico. Aquele que não enfrentou o cerne da controvérsia,
manteve-se nos aspectos rituais e manteve incólume — ou até agravada — a
desinteligência deflagradora da ação judicial.
Embora a teoria chame de "sujeito processual" a
parte em litígio, na verdade o interessado representa um "objeto da
vontade do Estado-juiz". Este é que tarifará a dor, o prejuízo, a angústia,
a liberdade ou o patrimônio de quem recorre ao Judiciário. Iniciada a ação, o
interessado não tem vez nem voz direta no processo. Resta-lhe aguardar,
pacientemente, o advento da coisa julgada, após labiríntico percurso nos
meandros das instâncias.
Promover a paz, evitar os conflitos, é dever de todos. Mas é
obrigação precípua da comunidade jurídica. Todos devem contribuir para evitar
lides temerárias, para promover a conciliação, para tornar o convívio algo
respeitoso, se possível amistoso e saudável.
Postas as alternativas — manter o crescimento e a atual
concepção do que deva ser o Judiciário ou proceder a um inadiável agiornamento
—, cabe indagar: o que se deve aguardar da Justiça brasileira?
O Judiciário é um Poder da República e se exterioriza em serviço
público posto à disposição da população. O erário, que sustenta a máquina, é
fruto da arrecadação tributária a todos imposta. Por isso a população
titulariza o direito e, mais que isso, o dever de participar das discussões que
redesenhem a Justiça. Ou se continua no curso de dilatação dimensional para
fazer do Brasil um imenso tribunal, com um juiz em cada esquina, ou se ajusta o
passo do Judiciário com a contemporaneidade.
Você, brasileiro, é que decide".
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