“Dilemas – decisão do STF sobre a Lei Maria da
Penha e a autonomia da vítima
Autora: Renata Lima
Delegada de Polícia.
Antes de mais nada, preciso deixar
bem claro que escrevo este texto de um lugar: da cadeira de Delegada de
Polícia. Um lugar de quem vive, na ponta inicial, todas as falhas e mazelas do
sistema de Justiça criminal. Uma Delegada de Polícia, feminista. Logo, a minha
visão será a de quem trabalha com o Direito e, principamente, com os crimes do
Direito Penal.
A Lei Maria
da Penha foi promulgada em agosto de 2006, logo depois que assumi o cargo. As
discussões sobre a necessidade ou não de representação da vítima no caso de
lesões corporais leves, previstas no artigo 129, §9º, do Código Penal,
começaram desde a publicação da lei, mesmo antes de entrar em vigor.
No meu sentir, mais do que a
simbologia de agravar a pena no caso de agressão praticada contra ascendente,
descendente, irmão, conjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha
convivido, ou ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação
ou de hospitalidade, a
lei foi positiva ao criar os mecanismos extra-penais, tais como as equipes multidisciplinares, as medidas protetivas de
urgência, ao determinar que as políticas públicas, em todas as esferas da
União, Estados e Municípios, deverão adotar MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO.
No último dia 9 de fevereiro, o
Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de
Constitucionalidade 19, ajuizada
pela Presidência da República (em novembro de 2007!) com
objetivo de propiciar uma interpretação judicial uniforme dos dispositivos
contidos na lei 11.340/06, conhecida como “Lei Maria da Penha”.
Alguns pontos foram decididos, nessa
instância, e merecem ser celebrados.
O primeiro: o STF
declarou a CONSTITUCIONALIDADE da Lei Maria da Penha. Sim,
porque um instrumento que visa proteger uma minoria vulnerável foi
questionada por violar o princípio da igualdade. Mais do que isso, foi chamada
de diabólica, por um juiz, em Minas Gerais. Vale lembrar que
quando dizemos, minoria, não dizemos em termos numéricos, mas em termos de
representatividade e poder de decisão – ainda são as mulheres, assim como os
negros e outras minorias, sub-representados nas esferas de poder, sejam elas do
poder público ou da iniciativa privada, que detém grande influência sobre os
rumos das políticas públicas.
O equívoco (intencional) destes
detratores da Lei Maria da Penha é considerar a igualdade tão somente em seu
sentido formal, ou seja: todos são iguais perante a lei. Nesse sentido, uma lei
que apresentar um “benefício” para um grupo está sendo prejudicial e não será
aplicada. No entanto, como bem aponta a decisão do STF, a igualdade formal só
poderá ser alcançada através de mecanismos que coloquem os grupos vulneráveis
em condições efetivas de igualdade = igualdade material.
A ministra Rosa Weber, mais
nova integrante do quadro do STF, assim se manifestou: (a lei Lei Maria da
Penha) “inaugurou
uma nova fase de ações afirmativas em favor da mulher na sociedade brasileira”. Ações afirmativas são os mecanismos dispostos ao poder público para
efetivamente implementar condições de igualdade material, real, a todos os
grupos!
O segundo
ponto a ser celebrado é que outro dispositivo da Lei Maria da Penha foi ratificado pela Suprema
Corte: o que afasta a aplicação da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) de
todo e qualquer crime cometidos com violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente da pena prevista.
No
entanto, apesar dos motivos para celebração, vejo com algumas ressalvas a
notícia de que a ação penal, no caso da lesão corporal leve, prevista no artigo
129, §9º, do Código, não dependa mais da representação (da emissão de VONTADE)
da vítima. De acordo com algumas interpretações, a denúncia de um vizinho, de um parente,
de qualquer pessoa, independente da vontade da pessoa que sofreu a agressão,
seria suficiente para a prisão em flagrante do agressor. Já há outras correntes
surgindo, no sentido de que a ausência de representação se refere somente ao
momento da denúncia, pelo Ministério Público, e que a prisão em flagrante tem
outros requisitos.
Observo nesta decisão, e nas
discussões sobre ela, um dilema, que já era enfrentado há décadas, pelas
feministas de então, que lutavam por políticas públicas específicas ao tratamento
da violência contra a mulher: a vítimização, como fórmula necessária para a sensibilização dos
órgãos com poder decisório VS. a autonomia da vontade da mulher.
Ora, que autonomia há em ser
agredida, me perguntarão.
Possivelmente nenhuma? Indago de
volta. Será?
Aponto aqui algumas
implicações, oriundas também de debates com outras Blogueiras Feministas,
especialmente Cynthia Semiramis, Camilla Magalhães e Xênia Mello.
Em primeiro lugar, o papel do Direito
Penal, a área do direito que trata dos crimes e das penas, tem sido
supervalorizado em nossa sociedade, que tenta mudar comportamentos pura e
simplesmente através da imposição de penas, e penas cada vez mais graves. E
isso NÃO funciona. A lei 8.072 foi publicada no dia 24 de julho de 1990,
há quase vinte e dois ANOS. E é conhecida como “lei dos crimes hediondos”. Em
vinte e dois anos, vimos um aumento colossal de ocorrências de crimes
penalizados com maior gravidade, com mais severidade, com mais dureza. A lei
foi alterada, endurecida, interpretada conforme a constituição, e “não pegou”,
como dizemos. A certeza da punição, mais que a gravidade da pena, é o que
garante a efetividade da norma!
Como disse a Camilla: Nós da área jurídica
acabamos ficando muito ao direito, ao ordenamento, aos significados e
conceitos, acabamos tendo interpretações embebidas nisso. Ainda mais
quando se está inserido no Direito e no Sistema Penal. Então, antes de
qualquer coisa vou dizer: minha confiança no sistema penal como forma de
resolução de conflitos é mínima. Não acredito na função preventiva da
pena e, apesar de não ser abolicionista (defender o fim do direito penal)
defende um direito penal MÍNIMO, mas é mínimo mesmo. Então, confio pouco
no papel desse sistema como forma de mudança da cultura da violência de
gênero.
Sou policial. Não trabalho na
Delegacia Especializada de Proteção às Mulheres, mas eventualmente, trabalho em
escalas de plantão, nas quais atendo a todo o tipo de ocorrência, inclusive,
casos de agressão que se enquadram na lesão corporal leve da lei Maria da
Penha. Tenho mais fé na mudança da cultura pela COMBINAÇÃO dos fatores de
repressão penal – sim, o poder simbólico da “MARIA DA PENHA” se revela muito
forte – com os fatores de prevenção geral integrada.
Vejamos o que diz o artigo 8º da Lei:
DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO
Art. 8o A política pública que visa
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um
conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes:
I – a integração operacional do Poder Judiciário, do
Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança
pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação;
II – a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras
informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia,
concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica
e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem
unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas
adotadas;
III – o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores
éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis
estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar,
de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da
Constituição Federal;
IV – a implementação de atendimento policial especializado para
as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher;
V – a promoção e a realização de campanhas educativas de
prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao
público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos
de proteção aos direitos humanos das mulheres;
VI – a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou
outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou
entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a
implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar
contra a mulher;
VII – a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da
Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos
órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero
e de raça ou etnia;
VIII – a promoção de programas educacionais que disseminem
valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a
perspectiva de gênero e de raça ou etnia;
IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de
ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero
e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a
mulher.
Ao tentar reforçar o poder
simbólico do aspecto penal da lei Maria da Penha, o Supremo Tribunal Federal
demonstrou, no meu entender, que a mulher só merece proteção enquanto for
vítima permanente, incapaz de decidir por si. A desconsideração da vontade da vítima não se justifica!
A mulher vítima de violência doméstica, seja
ela pobre ou rica, branca ou negra, adulta, jovem ou idosa,
encontra-se, sim, em uma situação em que sua vontade PODE estar viciada,
nublada, turbada. Por uma relação abusiva, que mina as energias, a auto-estima,
a confiança, a fé. Ela pode ter pedido ajuda, implicitamente, a um vizinho, um
familiar, e ter ouvido que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Pode ter ouvido que “ruim com ele, pior sem ele”. Ela pode trabalhar ou não ter
sequer como se manter, pode ter filhos com o agressor, ou não existir mais uma
potencial vítima de um círculo de violência nessa relação, mas o que importa é
que sem ajuda, sem a efetivação da medidas de ela dificilmente vai
conseguir romper o ciclo da violência doméstica. E a ajuda não vai ser,
simplesmente, desconsiderar as condições de cada pessoa, e considerar a mulher
incapaz.
A prisão, no caso da Lei Maria da
Penha, pode ser em flagrante (no momento da agressão, ou logo após) ou
decretada posteriormente, preventivamente. No primeiro caso, diante da pena
máxima prevista, que é de 3 anos, é cabível a FIANÇA. Ou seja, o agressor, caso
pague a fiança arbitrada, sai, praticamente na mesma hora.
As medidas protetivas de
urgência que obrigam o agressor, como a proibição de se aproximar da vítima,
restrição do direito de visita, pretação de alimentos provisionais, entre
outros, só
são concedidas pelo juiz, em até 5 dias (na verdade, as
vezes chegam da demorar meses para serem concedidas…). A medida de urgência de
encaminhar a vítima e seus filhos para abrigos, nesse caso, depende não só da
existência de abrigos específicos, como da disponibilidade de pessoal –
policiais – e equipamento – veículos. Absurdo? Não, pura realidade.
Imagine que a mulher foi agredida, o
agressor foi preso em flagrante, mas um parente, um amigo, o patrão, qualquer
um, pagou a fiança. Ele tem o direito de pagar a fiança e ser liberado,
no caso da lesão leve. Porque nos casos de lesão grave, ou gravíssima, onde há
fraturas, pontos, lesões internas, a prisão NUNCA dependeu de representação. E
para onde ele vai? Para a mesma casa onde a vítima está. Pois as medidas
protetivas de urgência para a vítima, como o encaminhamento para casa abrigo,
com os dependentes, não depende só da Polícia ou da Justiça ou do Ministério
Público. Depende do Poder Executivo, de convêncios com ONGs e outras entidades
da sociedade civil, depente de uma rede de proteção que na maioria das cidades
NÃO EXISTE.
O perigo desse precedente, ao
remover a autonomia da mulher, é enorme. Se queremos autonomia, direito de
escolha, liberdade, e QUEREMOS, temos que assumir que isso implica em que
muitas farão escolhas que NÓS consideramos erradas. Isso é condescendência. Sobre
liberdade e escolhas recomendo o texto de Eliane Brum: O que
aprendi com o pior jornalista do mundo.
O Direito Penal não é uma
varinha de condão, que automaticamente fará com que cessem as agressões e a
violência. Teve e tem seu mérito, no caso específico, ao promover para a grande
mídia a questão da visibilidade
da violência de gênero, mas não mudou o tratamento que
essa mesma mídia dá aos casos de violência contra a mulher. Vide os casos de Eliza Samudio, em 2010, e o tratamento do caso Eloá, que está
sendo julgado nesta semana, pelo Tribunal do Júri.
Somos, todas, ardentes e valentes
defensoras dos direitos da mulher e lutamos contra TODAS as formas de violência
contra a mulher. O discurso da proteção, porém, muitas vezes, é também uma
forma de violência.
Eu acredito, com todas as minhas
forças, na Lei Maria da Penha, e no papel que ela tem desempenhado.
Mas não concordo com o aspecto da
decisão de quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012.
O Estado deve oferecer condições de fazer com que a
mulher que está em situação de violência possa fazer sua escolha, livremente, para tanto, fornecendo centros de apoio e auxílio, grupos de terapia,
inclusive de casais, fomentando campanhas massiças e massivas contra toda forma
de violência de gênero, fornecendo condições para que os crimes sejam julgados
com celeridade e que as vítimas sejam atendidas.
Mas o Estado não deve substituir
a vontade da vítima.
[+] Violência
doméstica: a mulher tem direito de decidir sobre a punição do agressor? Marcelo
Bertasso
* Mais uma vez, ressalto que o movimento feminista é diversificado,
e que todas temos voz. Este posicionamento não será unânime, o que é bom, pois
a gente cresce na discordância, e ainda existem inúmeros outros pontos que
quero apresentar para o debate, mas que vão esperar a próxima oportunidade".
Mulher em um mundo masculino.
Delegada de Polícia. Tuiteira, blogueira, leitora compulsiva. Feminista,
libertária, de esquerda. Contradição? Não. Liberdade.
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