quinta-feira, 30 de maio de 2013

“Dilemas – decisão do STF sobre a Lei Maria da Penha e a autonomia da vítima
Autora: Renata Lima
 Delegada de Polícia.
Antes de mais nada, preciso deixar bem claro que escrevo este texto de um lugar: da cadeira de Delegada de Polícia. Um lugar de quem vive, na ponta inicial, todas as falhas e mazelas do sistema de Justiça criminal. Uma Delegada de Polícia, feminista. Logo, a minha visão será a de quem trabalha com o Direito e, principamente, com os crimes do Direito Penal.
A Lei Maria da Penha foi promulgada em agosto de 2006, logo depois que assumi o cargo. As discussões sobre a necessidade ou não de representação da vítima no caso de lesões corporais leves, previstas no artigo 129, §9º, do Código Penal, começaram desde a publicação da lei, mesmo antes de entrar em vigor.
No meu sentir, mais do que a simbologia de agravar a pena no caso de agressão praticada contra ascendente, descendente, irmão, conjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, a lei foi positiva ao criar os mecanismos extra-penais, tais como as equipes multidisciplinares, as medidas protetivas de urgência, ao determinar que as políticas públicas, em todas as esferas da União, Estados e Municípios, deverão adotar MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO.

No último dia 9 de fevereiro, o Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Constitucionalidade 19, ajuizada pela Presidência da República (em novembro de 2007!)  com objetivo de propiciar uma interpretação judicial uniforme dos dispositivos contidos na lei 11.340/06, conhecida como “Lei Maria da Penha”.
Alguns pontos foram decididos, nessa instância, e merecem ser celebrados.
O primeiro: o STF declarou a CONSTITUCIONALIDADE da Lei Maria da Penha. Sim, porque um instrumento que visa proteger uma minoria vulnerável foi questionada por violar o princípio da igualdade. Mais do que isso, foi chamada de diabólica, por um juiz, em Minas Gerais. Vale lembrar que quando dizemos, minoria, não dizemos em termos numéricos, mas em termos de representatividade e poder de decisão – ainda são as mulheres, assim como os negros e outras minorias, sub-representados nas esferas de poder, sejam elas do poder público ou da iniciativa privada, que detém grande influência sobre os rumos das políticas públicas.
O equívoco (intencional) destes detratores da Lei Maria da Penha é considerar a igualdade tão somente em seu sentido formal, ou seja: todos são iguais perante a lei. Nesse sentido, uma lei que apresentar um “benefício” para um grupo está sendo prejudicial e não será aplicada. No entanto, como bem aponta a decisão do STF, a igualdade formal só poderá ser alcançada através de mecanismos que coloquem os grupos vulneráveis em condições efetivas de igualdade =  igualdade material.
A ministra Rosa Weber, mais nova integrante do quadro do STF, assim se manifestou: (a lei Lei Maria da Penha) “inaugurou uma nova fase de ações afirmativas em favor da mulher na sociedade brasileira”. Ações afirmativas são os mecanismos dispostos ao poder público para efetivamente implementar condições de igualdade material, real, a todos os grupos!
O segundo ponto a ser celebrado é que outro dispositivo da Lei Maria da Penha foi ratificado pela Suprema Corte: o que afasta a aplicação da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) de todo e qualquer crime cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista.

No entanto, apesar dos motivos para celebração, vejo com algumas ressalvas a notícia de que a ação penal, no caso da lesão corporal leve, prevista no artigo 129, §9º, do Código, não dependa mais da representação (da emissão de VONTADE) da vítima. De acordo com algumas interpretações, a denúncia de um vizinho, de um parente, de qualquer pessoa, independente da vontade da pessoa que sofreu a agressão, seria suficiente para a prisão em flagrante do agressor. Já há outras correntes surgindo, no sentido de que a ausência de representação se refere somente ao momento da denúncia, pelo Ministério Público, e que a prisão em flagrante tem outros requisitos.
Observo nesta decisão, e nas discussões sobre ela, um dilema, que já era enfrentado há décadas, pelas feministas de então, que lutavam por políticas públicas específicas ao tratamento da violência contra a mulher: a vítimização, como fórmula necessária para a sensibilização dos órgãos com poder decisório VS. a autonomia da vontade da mulher.
Ora, que autonomia há em ser agredida, me perguntarão.
Possivelmente nenhuma? Indago de volta. Será?
Aponto aqui algumas implicações, oriundas também de debates com outras Blogueiras Feministas, especialmente Cynthia Semiramis, Camilla Magalhães e Xênia Mello.
Em primeiro lugar, o papel do Direito Penal, a área do direito que trata dos crimes e das penas, tem sido supervalorizado em nossa sociedade, que tenta mudar comportamentos pura e simplesmente através da imposição de penas, e penas cada vez mais graves. E isso NÃO funciona. A lei 8.072  foi publicada no dia 24 de julho de 1990, há quase vinte e dois ANOS. E é conhecida como “lei dos crimes hediondos”. Em vinte e dois anos, vimos um aumento colossal de ocorrências de crimes penalizados com maior gravidade, com mais severidade, com mais dureza. A lei foi alterada, endurecida, interpretada conforme a constituição, e “não pegou”, como dizemos. A certeza da punição, mais que a gravidade da pena, é o que garante a efetividade da norma!
Como disse a Camilla: Nós da área jurídica acabamos ficando muito ao direito, ao ordenamento, aos significados e conceitos, acabamos tendo interpretações embebidas nisso. Ainda mais quando se está inserido no Direito e no Sistema Penal. Então, antes de qualquer coisa vou dizer: minha confiança no sistema penal como forma de resolução de conflitos  é mínima. Não acredito na função preventiva da pena e, apesar de não ser abolicionista (defender o fim do direito penal) defende um direito penal MÍNIMO, mas é mínimo mesmo. Então, confio pouco no papel desse sistema como forma de mudança da cultura da violência de gênero.
Sou policial.  Não trabalho na Delegacia Especializada de Proteção às Mulheres, mas eventualmente, trabalho em escalas de plantão, nas quais atendo a todo o tipo de ocorrência, inclusive, casos de agressão que se enquadram na lesão corporal leve da lei Maria da Penha. Tenho mais fé na mudança da cultura pela COMBINAÇÃO dos fatores de repressão penal – sim, o poder simbólico da “MARIA DA PENHA” se revela muito forte – com os fatores de prevenção geral integrada.
Vejamos o que diz o artigo 8º da Lei:
DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO
Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes:
I – a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação;
II – a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;
III – o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal;
IV – a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher;
V – a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres;
VI – a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher;
VII – a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;
VIII – a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia;
IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Ao tentar reforçar o poder simbólico do aspecto penal da lei Maria da Penha, o Supremo Tribunal Federal demonstrou, no meu entender, que a mulher só merece proteção enquanto for vítima permanente, incapaz de decidir por si. A desconsideração da vontade da vítima não se justifica!

 A mulher vítima de violência doméstica, seja ela pobre ou rica, branca ou negra,  adulta, jovem ou idosa,  encontra-se, sim, em uma situação em que sua vontade PODE estar viciada, nublada, turbada. Por uma relação abusiva, que mina as energias, a auto-estima, a confiança, a fé. Ela pode ter pedido ajuda, implicitamente, a um vizinho, um familiar, e ter ouvido que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Pode ter ouvido que “ruim com ele, pior sem ele”. Ela pode trabalhar ou não ter sequer como se manter, pode ter filhos com o agressor, ou não existir mais uma potencial vítima de um círculo de violência nessa relação, mas o que importa é que sem ajuda, sem a efetivação da medidas de  ela dificilmente vai conseguir romper o ciclo da violência doméstica. E a ajuda não vai ser, simplesmente, desconsiderar as condições de cada pessoa, e considerar a mulher incapaz.
A prisão, no caso da Lei Maria da Penha, pode ser em flagrante (no momento da agressão, ou logo após) ou decretada posteriormente, preventivamente. No primeiro caso, diante da pena máxima prevista, que é de 3 anos, é cabível a FIANÇA. Ou seja, o agressor, caso pague a fiança arbitrada, sai, praticamente na mesma hora.
As medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, como a proibição de se aproximar da vítima, restrição do direito de visita, pretação de alimentos provisionais, entre outros, só são concedidas pelo juiz, em até 5 dias (na verdade, as vezes chegam da demorar meses para serem concedidas…). A medida de urgência de encaminhar a vítima e seus filhos para abrigos, nesse caso, depende não só da existência de abrigos específicos, como da disponibilidade de pessoal – policiais – e equipamento – veículos. Absurdo? Não, pura realidade.
Imagine que a mulher foi agredida, o agressor foi preso em flagrante, mas um parente, um amigo, o patrão, qualquer um,  pagou a fiança. Ele tem o direito de pagar a fiança e ser liberado, no caso da lesão leve. Porque nos casos de lesão grave, ou gravíssima, onde há fraturas, pontos, lesões internas, a prisão NUNCA dependeu de representação. E para onde ele vai? Para a mesma casa onde a vítima está. Pois as medidas protetivas de urgência para a vítima, como o encaminhamento para casa abrigo, com os dependentes, não depende só da Polícia ou da Justiça ou do Ministério Público. Depende do Poder Executivo, de convêncios com ONGs e outras entidades da sociedade civil, depente de uma rede de proteção que na maioria das cidades NÃO EXISTE.
O perigo desse precedente, ao remover a autonomia da mulher, é enorme. Se queremos autonomia, direito de escolha, liberdade, e QUEREMOS, temos que assumir que isso implica em que muitas farão escolhas que NÓS consideramos erradas. Isso é condescendência. Sobre liberdade e escolhas recomendo o texto de Eliane Brum: O que aprendi com o pior jornalista do mundo.
O Direito Penal não é uma varinha de condão, que automaticamente fará com que cessem as agressões e a violência. Teve e tem seu mérito, no caso específico, ao promover para a grande mídia a questão da visibilidade da violência de gênero, mas não mudou o tratamento que essa mesma mídia dá aos casos de violência contra a mulher. Vide os casos de Eliza Samudio, em 2010, e o tratamento do caso Eloá, que está sendo julgado nesta semana, pelo Tribunal do Júri.
Somos, todas, ardentes e valentes defensoras dos direitos da mulher e lutamos contra TODAS as formas de violência contra a mulher. O discurso da proteção, porém, muitas vezes, é também uma forma de violência.
Eu acredito, com todas as minhas forças, na Lei Maria da Penha, e no papel que ela tem desempenhado.
Mas não concordo com o aspecto da decisão de quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012.
O Estado deve oferecer condições de fazer com que a mulher que está em situação de violência possa fazer sua escolha, livremente, para tanto, fornecendo centros de apoio e auxílio, grupos de terapia, inclusive de casais, fomentando campanhas massiças e massivas contra toda forma de violência de gênero, fornecendo condições para que os crimes sejam julgados com celeridade e que as vítimas sejam atendidas.
Mas o Estado não deve substituir a vontade da vítima.
[+] Manifestação de Machismo no STF Maria Lucia Karam
* Mais uma vez, ressalto que o movimento feminista é diversificado, e que todas temos voz. Este posicionamento não será unânime, o que é bom, pois a gente cresce na discordância, e ainda existem inúmeros outros pontos que quero apresentar para o debate, mas que vão esperar a próxima oportunidade".

Mulher em um mundo masculino. Delegada de Polícia. Tuiteira, blogueira, leitora compulsiva. Feminista, libertária, de esquerda. Contradição? Não. Liberdade.

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