“Discurso de Fábio Konder Comparato sobre mudanças na Lei da Anistia
Audiência pública na Câmara
discutiu projeto de Luiza Erundina (PSB-SP) que exclui crimes de agentes
públicos da lista de anistiados
por Fábio Konder Comparato — publicado 09/05/2013
15:47
Fábio
Konder Comparato (born October 6, 1936) is a Brazilian lawyer, jurist and writer. He is a retired full
professor of Commercial
Law and Philosophy
of Law at University of São Paulo.[1] He
holds a doctor's degree from University
of Paris and an honorary
doctorate from University
of Coimbra
Nesta quinta-feira 9, uma
audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da
Câmara debateu oprojeto de lei 573/11, da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que
exclui do rol de crimes anistiados após a ditadura (1964-1985) aqueles
cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, efetiva
ou supostamente, praticaram crimes políticos. Segundo a proposta, esses atos
não estão incluídos entre os crimes conexos definidos na Lei da Anistia, de
1979.
A proposta de Erundina foi
rejeitada pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e, na CCJ, tem
parecer contrário do relator, deputado Luiz Pitimann (PMDB-DF).Confira abaixo o
discurso do jurista Fábio Konder Comparato, um dos debatedores:
1.– O Projeto de Lei nº 573, de 2011,
apresentado pela eminente Deputada Luiza Erundina, objetiva “dar interpretação
autêntica ao disposto no art. 1º, § 1º da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de
1979”. Segundo esse dispositivo, são declarados conexos com os crimes
políticos, objeto da anistia concedida pela lei, “os crimes de qualquer
natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação
política”.
De acordo com os termos do art. 1º do citado
Projeto de Lei, “não se incluem entre os crimes conexos, definidos no art. 1º,
§ 1º da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, os crimes cometidos por agentes
públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto,
praticaram crimes políticos”.
2.– A razão dessa propositura
legislativa é dar efetivo cumprimento à Sentença condenatória do Estado
Brasileiro, proferida por unanimidade em 24 de novembro de 2010 pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros
v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”), como segue:
“As disposições da Lei de Anistia
brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos
humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos
jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos
fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e
tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de
graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana
ocorridos no Brasil.”
3.– Por que razão deve o Brasil
cumprir integralmente tal decisão?
Comecemos por lembrar que o
princípio fundamental do Estado de Direito impõe a todas as potências soberanas
o respeito absoluto à jurisdição dos tribunais internacionais, quando essa jurisdição
foi por elas oficialmente reconhecida. No contexto do direito internacional,
prevalece em qualquer hipótese o princípio pacta sunt servanda,
sendo inadmissível que um Estado invoque a sua soberania para rejeitar a
aplicação de tratados ou convenções que haja aceito.
O Brasil aderiu à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos e reconheceu como obrigatória, nos termos do disposto em seu
art. 62, a jurisdição da citada Corte. O art. 68 da Convenção dispõe que os
Estados signatários “comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso
em que forem partes”.
4.– Contrariamente a essa
conclusão inescapável, o Exmo. Sr. Relator do Projeto de Lei nº 573, de 2011,
na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional desta Câmara, afirmou
que o Estado Brasileiro não tem o dever de cumprir a decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, “em razão da supremacia da Constituição a
qualquer acordo internacional que a integre, idealmente, quando algum de seus
dispositivos afronte os princípios mesmo (sic) que informam a
Constituição”.
Tal assertiva, lamento dizê-lo, constitui um
despautério jurídico.
Antes de mais nada, Sua Excelência referiu-se a
acordos internacionais que integrem “idealmente” a Constituição da República.
Não se sabe ao certo o que significa esse advérbio, qualificador da integração
de um tratado ao sistema constitucional brasileiro. Os tratados internacionais
integram ou não integram a ordem constitucional brasileira; não há meio termo.
Para recusar a execução da sentença condenatória da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Sua Excelência invocou princípios
constitucionais.
Pois bem, se lançarmos os olhos para o Título I da
Constituição Federal de 1988, consagrado justamente aos Princípios
Fundamentais, encontraremos desde logo as seguintes disposições.
No art. 1º, inciso III, a Carta
Magna declara, textualmente, que o Estado Brasileiro tem como um dos seus
fundamentos “a dignidade da pessoa humana”. Pergunta-se: – É logicamente
concebível que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos afronte esse
princípio constitucional?
Por outro lado, no art. 4º, II, a Constituição
Federal dispõe que “a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais” pelo princípio da “prevalência dos direitos humanos”. É o caso
de indagar: – Ao aderir à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e aceitar
a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado
Brasileiro infringiu, porventura, o princípio da prevalência dos direitos
humanos nas relações internacionais?
Finalmente, ao afirmar que há
supremacia de nossa Constituição sobre “qualquer acordo internacional que a
integre, idealmente”, o Sr. Relator do presente Projeto de Lei, na Comissão de
Relações Exteriores e de Defesa Nacional, esqueceu-se, ao que parece, do
disposto no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, segundo o qual “os direitos
e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Será
preciso reafirmar que o Brasil, por decisão deste Colendo Congresso Nacional,
aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos, integrando-a, portanto, ao
sistema constitucional pátrio?
5.– E quais as razões pelas quais
a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou inválida a lei de anistia de
1979, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal?
Duas foram essas razões.
A primeira delas é que a Lei nº 6.683, tal como
interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, beneficiou agentes públicos e os
empresários seus cúmplices, responsáveis pelo cometimento sistemático de graves
violações de direitos humanos, tais como a execução sumária de oponentes
políticos, com ou sem a mutilação dos cadáveres, o estupro e a tortura de
presos, frequentemente seguida de morte. Especialmente em São Paulo, a
organização de tais atos criminosos contou com o financiamento de grandes
banqueiros e empresários, notadamente no concernente à montagem da chamada
Operação Bandeirante (OBAN), precursora do DOI-CODI.
Segundo a Comissão de Mortos e
Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, comprovaram-se oficialmente
até hoje 361 casos de assassínios e desaparecimentos, com ocultação ou
destruição do cadáver, durante o regime militar; mas outros casos estão sendo
investigados. Por sua vez, a Secretaria Especial de Direitos Humanos do
Ministério da Justiça, na publicação Direito à Memória e à Verdade,
afirmou que tivemos 475 mortos e desaparecidos durante regime militar.
Calcula-se que 50.000 pessoas foram presas, sendo a maior parte delas
torturadas, algumas até a morte. O governo militar chegou mesmo a aparelhar, em
Petrópolis, uma casa onde pelo menos 19 pessoas foram executadas, sendo seus
corpos incinerados a fim de não deixar vestígios.
Em momento algum de nossa vida de país
independente, os governantes, quer no Império quer na República, chegaram a
cometer tão repugnantes atrocidades.
Ora, tais fatos, quando
praticados sistematicamente por agentes estatais contra oponentes políticos, são
qualificados no direito das gentes, desde o término da Segunda Guerra Mundial,
como crimes contra a humanidade; o que significa que o legislador
nacional é incompetente para determinar, em relação a eles, quer a anistia,
quer a prescrição.
Em duas Resoluções formuladas em
1946, a Assembléia Geral das Nações Unidas considerou que a conceituação
tipológica dos crimes contra a humanidade representa um princípio de
direito internacional.
Essa mesma qualificação foi dada pela Corte
Internacional de Justiça às disposições da Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948, cujos artigos III e V estatuem que “todo homem tem direito à
vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e que “ninguém será submetido à
tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”
O Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998,
por sua vez, definiu, em seu art. 7º, dez tipos de crimes contra a humanidade,
e acrescentou ao elenco uma modalidade genérica: "outros atos desumanos de
caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem
gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental".
Desse conjunto normativo decorre
a definição de crime contra a humanidade como o ato delituoso em que à
vítima é negada a condição de ser humano.
Ora, os princípios, como
assinalado pela doutrina contemporânea, situam-se no mais elevado grau do
sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em
textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados
internacionais. Quem ignora, afinal, que o primeiro princípio historicamente
afirmado do direito constitucional, a saber, a competência do Judiciário para
declarar a inconstitucionalidade de leis e outros atos normativos, foi
consagrado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Marbury v.
Madison (1803), não obstante o completo silêncio a esse respeito da
Constituição norte-americana?
6.– A segunda razão pela qual a
Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou inválida a lei de anistia de
1976, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, é que tal lei
representou uma auto-anistia; vale dizer, os principais responsáveis pelo
cometimento dos citados crimes lograram, antes de se afastarem do poder,
proclamar-se imunes a toda persecução penal.
Pois bem, no julgamento da ADPF nº 153 no Supremo
Tribunal Federal, o Ministro relator e outro Ministro que o acompanhou
afirmaram que a Lei nº 6.683, de 1979, não poderia ser concebida como uma
auto-anistia, mas sim como uma anistia bilateral entre governantes e
governados. Ou seja, segundo essa original exegese, torturadores e torturados,
reunidos em uma espécie de contrato particular de intercâmbio de prestações,
teriam resolvido anistiar-se reciprocamente... Essas surpreendentes declarações
de voto foram reforçadas pela tese de que a lei de anistia de 1979 representou
um “acordo histórico”.
Frise-se, desde logo, a repulsiva imoralidade de um
pacto dessa natureza, se é que ele realmente existiu: o respeito mais elementar
à dignidade humana impede que a impunidade dos autores de crimes hediondos ou
contra a humanidade seja objeto de negociação pelos próprios interessados.
Na verdade, o propalado "acordo de anistia”
dos crimes contra a humanidade praticados pelos agentes da repressão não passou
de uma reles conciliação oligárquica, na linha de nossa mais longeva tradição.
Qualquer pacto ou acordo supõe a existência de partes legitimadas a conclui-lo.
Se havia à época, de um lado, chefes militares detentores do poder supremo,
quem estaria do outro lado? Porventura, as vítimas ainda vivas e os familiares
de mortos pela repressão militar foram chamados a negociar esse acordo? O povo
brasileiro, como titular da soberania nacional, foi convocado a referendá-lo?
O mais escandaloso de toda essa
tese do acordo político é que, após a promulgação da Lei nº 6.683, em 28 de
agosto de 1979, certos agentes militares continuaram a desenvolver impunemente
sua atividade terrorista. Em 1980, registraram-se no país 23 (vinte e três)
atentados a bomba, entre os quais o que vitimou, na sede do Conselho Federal da
OAB, a secretária da presidência, Dª Lyda Monteiro da Silva. Em 1981, houve
mais 10 (dez) atentados, notadamente o do Riocentro, cujos responsáveis, ambos
oficiais do Exército, foram considerados, no inquérito policial militar aberto
em consequência, vítimas e não autores! Pois bem, para escândalo geral tal
inquérito foi arquivado pela Justiça Militar com fundamento na própria
Lei nº 6.683, cujo art. 1º fixou, como encerramento do lapso temporal da
anistia, a data de 15 de agosto de 1979.
É deplorável constatar que o nosso país é o único
na América Latina a continuar sustentando a validade dessa auto-anistia. Na
Argentina, no Chile, no Uruguai, no Peru, na Colômbia e recentemente na
Guatemala, o Poder Judiciário decidiu pela sua flagrante inconstitucionalidade.
7.– Repita-se: pelo disposto no art.
68, primeira alínea, da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Brasil tem o
dever de dar integral cumprimento à sentença condenatória da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros v.
Brasil (Guerrilha do Araguaia). Se não o fizer, o nosso país terá
denunciado informalmente a Convenção Americana de Direitos Humanos,
colocando-se como um país fora da lei no plano internacional.
Eis porque a eminente Deputada Luiza Erundina
apresentou a esta Câmara este Projeto de Lei nº 573, de 2011.
Objeto da propositura legislativa, como já frisado,
não é a revogação, total ou parcial, da Lei nº 6.683, de 1979, mas sim a
declaração, pelo próprio Poder Legislativo, do sentido autêntico do disposto no
art. 1º, § 1º daquele diploma legal, concernente à expressão “crimes conexos”.
Acoplada à de "crimes
políticos", tal expressão não podia aplicar-se aos delitos comuns
praticados por agentes públicos e seus cúmplices, contra os opositores ao
regime militar. E isto, pela boa e simples razão, unanimemente proclamada pela
doutrina penal, tanto aqui quanto alhures, de que a conexão criminal pressupõe
uma comunhão de objetivos ou propósitos entre os autores das
diversas práticas delituosas. Ora, ninguém em sã consciência pode sustentar que
os agentes militares e civis do regime político então vigente atuassem em
harmonia política com os que foram por eles assassinados ou torturados.
Em outras palavras, a conexão criminal supõe a
existência de um delito principal e de um ou mais delitos secundários,
vinculados àquele. No caso, como dispõe a Lei nº 6.683, delito principal objeto
da anistia é o crime político, praticado de modo efetivo ou presumido por
oponentes ao regime militar. Por acaso, é cabível sustentar que os agentes
públicos defensores desse regime, ao praticarem atos da maior violência contra
os chamados subversivos, cometeram, assim como estes, crimes políticos, e não
crimes comuns?
No entanto, haverá talvez quem
sustente, à míngua de melhor argumento, ter havido conexão delitiva no sentido
do disposto no art. 76, I in fine do Código de Processo Penal.
Ora, tal norma não é de direito material, mas de simples competência. Ao
determinar sejam processados e julgados no mesmo juízo criminal os crimes
praticados por várias pessoas, umas contra as outras, ela é obviamente
inaplicável naquele contexto histórico, pois os autores de crimes políticos
atuaram contra a ordem política então vigente, e não de modo pessoal contra os
agentes públicos que vieram a torturá-los e mata-los.
8.– Sustentam, no entanto, os
Srs. Relatores do Projeto de Lei nº 573, de 2011, tanto nesta douta Comissão,
quanto na de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, que, a se reconhecer a
inaplicabilidade da lei de anistia aos crimes praticados pelos agentes públicos
contra oponentes ao regime militar, estaríamos fazendo reatroagir a lei penal,
com violação do princípio fundamental do nullum crimen sine praevia
lege, inscrito no art. 5º, XL da Constituição Federal.
A fim de reforçar essa tese, o
Sr. Relator do projeto de lei na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa
Nacional invocou o argumento apresentado pelo Ministro Relator da ação de
descumprimento de preceito fundamental nº 153, no Supremo Tribunal Federal,
segundo o qual a Lei nº 6.683, de 1979, seria uma “lei-provimento” ou
“lei-medida” (tradução da expressão alemãMassnahmegesetz), cujos efeitos
são imediatos e irreversíveis.
Vejamos.
Há muito a ciência jurídica
estabeleceu a distinção entre lei e provimento administrativo (Verwaltungsmassnahme,
na terminologia alemã); a primeira geral e abstrata, o segundo concreto e
específico. Com base nessa distinção tradicional, passou-se a denominar Massnahmegesetze as
normas com forma de lei, mas de conteúdo idêntico ao de provimentos
administrativos. Por exemplo, a lei que determina a construção de uma barragem,
ou que fixa um termo final para os trabalhos de modernização de ferrovias.
Mas quem não percebe a flagrante contradição de
considerar uma lei de anistia criminal, qualificada por alguns de “acordo
histórico”, como simples provimento administrativo, destinado a resolver
questões de ordem meramente factual? Alguém porventura ignora que, se a lei de
anistia teve efeitos imediatos e irreversíveis, ela não pode aplicar-se a
crimes continuados (como o de ocultação de cadáver)?
Na verdade, a afirmação de ambos os citados
Relatores, de que o projeto de lei em exame configura uma violação do princípio
da anterioridade da lei penal na definição de crimes, é despida de todo
fundamento, pois ela parte de um pressuposto evidentemente errôneo. O
dispositivo constitucional invocado, como ninguém ignora, pressupõe a
existência de duas normas penais válidas e eficazes a se sucederem no tempo,
uma revogando ou alterando a outra. Ora, o Projeto de Lei nº 573, de 2011, como
expressamente dito e acentuado, não tem por objetivo revogar ou alterar a lei
de anistia de 1979, mas sim dar-lhe uma interpretação que a torne válida e não
nula, como decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ou seja, o mesmo
Poder que editou a norma vem, em seguida, a explicitar-lhe o verdadeiro
sentido. Estamos, portanto, perante um só e mesmo diploma legal.
Aliás, a aceitar-se o argumento de que haveria no
caso a retroatividade de uma lei penal, todas as decisões judiciais
declaratórias de nulidade de uma norma de lei somente teriam efeito a partir do
seu trânsito em julgado; o que representaria aberta contradição com o fato de
uma norma legal julgada nula ser ineficaz desde a sua origem. Ora – reitere-se
– a disposição do art. 1º, § 1º da lei de anistia de 1979, tal como
interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, foi declarada radicalmente nula
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
9.– Criticando ainda o Projeto
de Lei em exame, os Srs. Relatores, nesta Comissão e na de Relações Exteriores
e de Defesa Nacional, argúem que inexistia no direito pátrio, à época da
promulgação da lei de anistia, não só o crime de tortura, como tampouco o crime
de desaparecimento forçado.
Em relação à tortura, o que se ignora, ao assim
argumentar, é que o art. 350, III do Código Penal, promulgado em 1940, define
como exercício arbitrário ou abuso de poder o ato de um funcionário “submeter
pessoa que está sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não
autorizado em lei”.
Tal crime consta, também, com a
mesma definição do Código Penal, da Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965
(promulgada, portanto, durante o regime militar, e ainda em vigor!), em seu
art. 4º, alínea b. Pergunta-se: – Por acaso, o agente público
denunciado pela prática de atos dessa natureza escaparia da condenação penal,
alegando que na definição do delito não consta a palavra tortura?
O mesmo se diga no tocante ao desaparecimento
forçado. Sem dúvida, não havia tal crime em nosso ordenamento jurídico à época
do regime castrense, e ele continua a inexistir até hoje, malgrado a injunção
imposta ao nosso país pela citada sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Mas quem ignora que o art. 148 do Código Penal, em vigor desde 1940,
define como crime de seqüestro, o ato de “privar alguém de sua liberdade”;
assim como o art. 211 do mesmo Código tipifica o crime de destruição, subtração
ou ocultação de cadáver?
10.– Finalmente, outro
argumento, apresentado pelo Exmo. Sr. Relator do Projeto de Lei em exame nesta
Comissão, é de que o crime de tortura está sujeito à prescrição penal.
Lamento assinalar uma flagrante contradição nas
razões assim expendidas pelo ilustre Relator em seu Parecer. Se de um lado Sua
Excelência lembra que o crime de tortura não existia à época do regime militar,
por outro lado afirma que tal crime é sujeito à prescrição. Afinal, ou há uma
coisa, ou outra; não é possível sustentar ambas ao mesmo tempo.
Examinemos, no entanto, em si mesmo o argumento da
prescrição do crime de tortura.
Observo, preliminarmente, que ao
fazer tal afirmação Sua Excelência parece aceitar, a contrario sensu,
a tese de que os demais crimes nefandos, praticados à época pelos agentes
militares e policiais contra oponentes políticos, não são sujeitos à
prescrição.
Em 26 de novembro de 1968, a Assembléia Geral das
Nações Unidas, pela Resolução nº 2.391 (XXIII), aprovou o texto de uma
Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra
a humanidade, ainda que tais delitos não sejam tipificados pelas leis internas
dos Estados onde foram perpetrados.
Foi por essa e outras razões, que a Corte
Interamericana de Direitos Humanos decidiu, em sua citada sentença condenatória
do Brasil, serem “inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de
prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, as quais
pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves
violações dos direitos humanos”.
De qualquer maneira, não posso deixar de frisar que
tal argumento do ilustre Relator é despiciendo no caso. A prescrição, quer no
campo cível quer no criminal, constitui matéria a ser decidida, caso a caso,
não pelo Poder Legislativo, mas exclusivamente pelo Judiciário.
11.– Concluo, declarando que
estamos a vivenciar agora, uma vez mais, um episódio histórico revelador da
duplicidade de comportamento de nossos grupos dominantes, em matéria de
direitos humanos. No teatro político, os componentes de nossa oligarquia sempre
fazem questão de representar perante a platéia, sobretudo internacional, o
papel de personagens respeitadores dos direitos humanos. Nos bastidores, porém,
mal escondem a sua brutalidade selvagem, pisoteando tais direitos, quando contrários
aos seus interesses pessoais.
Lembro, a esse respeito, que no início de nossa
vida de país independente fomos pressionados pela Inglaterra para abolir o
tráfico de escravos africanos. Como então dependíamos comercialmente daquela
potência internacional, celebramos com ela um tratado com esse objetivo, o qual
exigia que promulgássemos uma lei nacional proibidora do tráfico infame. Tal
lei foi promulgada em 7 de novembro de 1831, declarando livres “todos os
escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora”; ao
mesmo tempo em submetia a processo penal, não só o armador, como o comandante e
os membros da tripulação do navio, além dos seus financiadores e auxiliares em
terra, bem como de todos os compradores de africanos doravante contrabandeados
em território brasileiro.
Pois bem, como se tratava simplesmente de uma lei
“para inglês ver”, até a efetiva abolição do tráfico negreiro, em 1850,
ingressaram no Brasil nada menos do que 750.000 escravos africanos, sem que
ninguém, absolutamente, fosse submetido a processo penal.
Repetimos agora, vergonhosamente,
o mesmo jogo duplo com respeito à Convenção Americana de Direitos Humanos, da
qual nosso país é Estado-Parte. Como se está a ver, ela só vigora para a
platéia externa, segundo o protocolo diplomático. Aqui dentro, sua aplicação é
suspensa, toda vez que ela entra em choque com os interesses dos grupos do
poder oligárquico, como é o caso do cumprimento da sentença proferida pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros
v. Brasil, a respeito da interpretação a ser dada à lei de anistia de 1979.
É
inconcebível que os dignos representantes do povo brasileiro aceitem
oficialmente esse desonroso jogo duplo, de parte das nossas mal chamadas elites”.
http://www.cartacapital.com.br/politica/discurso-de-fabio-konder-comparato-sobre-mudancas-na-lei-da-anistia. Acesso: 28/5/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Qualquer sugestão ou solicitação a respeito dos temas propostos, favor enviá-los. Grata!