segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Direitos Fundamentais e Direito Constitucional do Trabalho

Autor: Carlos Antonio de Almeida Melo é Procurador do Estado, Professor de Direito da Faculdade de Direito da UFMT (IED e Direito Constitucional) e Professor de Direito Constitucional da Escola Judicial do TRT 23ª Região
 “Direitos Fundamentais e Direito Constitucional do Trabalho
Carlos Antonio de Almeida Melo 
 
1 -  O Direito Constitucional do Trabalho
Abrangendo o estudo de princípios e normas que configuram o estatuto superior do ordenamento jurídico, o direito constitucional inclui diversas províncias de estudo. Dada a supremacia formal e material da Constituição, sua extensão, enquanto texto normativo, depende da decisão dos constituintes, provocando, como conseqüência, a maior ou menor constitucionalização de temas relativos às bases da organização social, política, cultural e econômica do Estado. Na medida em que há maior constitucionalização de normas pertinentes aos diversos ramos do direito, maior a extensão dos capítulos de estudo  do direito constitucional. Assim, pode-se falar de direito constitucional tributário, processual e penal, dentre outros. O direito constitucional do trabalho configura o estudo dos fundamentos constitucionais da matéria trabalhista, buscando o entendimento e a sistematização das normas constitucionais sobre a matéria, enquanto incorporados ao conjunto normativo concernente à organização social e política da sociedade.
Por outro lado, pode-se falar também de um direito do trabalho constitucional na medida em que sejam abordados os princípios e institutos do direito do trabalho a partir das normas e princípios constitucionais.
O direito constitucional do trabalho trata dos direitos sociais consagrados no texto da Constituição. A expressão direitos sociais é polissêmica, desdobrando-se em diversas significações. Enquanto parte da doutrina busca a diferença entre os direitos sociais e os direitos individuais, há autores que alertam ser qualquer direito simultaneamente individual e social, pois o titular de um direito é sempre o indivíduo, implicando numa relação entre duas ou mais pessoas; afirmando outros que presentemente todo direito é social na mesma medida em que nos séculos XVIII e XIX entendia-se que todos os direitos eram individuais.
Uma tentativa de delimitar o âmbito de cada conceito consiste em diferenciá-los em função da natureza da prestação devida: enquanto aos direitos individuais correspondem, ainda que não exclusivamente, prestações de natureza negativa, isto é, abstenções do Estado e dos outros indivíduos em relação à fruição da liberdade em suas diversas manifestações e de outros direitos concernentes ao indivíduo; os direitos sociais, assim como os econômicos e os culturais,  implicam em prestações positivas através das quais o Estado, outros entes públicos e a sociedade são compelidos a contribuir, dar assistência e ajuda ou proporcionar determinadas condições aos mais fracos e necessitados, buscando corrigir situações de desigualdade. Neste sentido, os direitos sociais visam à concretização da justiça distributiva, no sentido de que a comunidade dá a cada um de seus membros uma participação no bem comum, observada uma igualdade proporcional ou relativa(1).
Cesarino Júnior(2)  defende a designação direito social como a ciência dos princípio e leis geralmente imperativas, cujo objetivo imediato é, tendo em vista o bem comum, auxiliar as pessoas físicas, dependentes do produto de seu trabalho para subsistência própria e de suas famílias, a satisfazerem convenientemente suas necessidades vitais e a terem acesso à propriedade privada, abrangendo o direito do trabalho (individual e coletivo), o direito assistencial e o direito previdencial.
Os direitos sociais contêm um feixe diversificado de exigibilidades. Na definição constitucional (art. 6º) abrangem educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados, o que remete ao art. 193, que abre o título da ordem social.
José Afonso da Silva(3)  agrupa os direitos sociais em cinco categorias:
  • direitos sociais relativos ao trabalhador, que se subdividem em direitos dos trabalhadores em suas relações individuais de trabalho (art. 7º) e direitos coletivos dos trabalhadores (arts. 8º a 11);
  • direitos sociais relativos à seguridade, que abrangem direitos à saúde, à previdência e à assistência social;
  • direitos  sociais  relativos à educação e à cultura;
  • direitos sociais relativos à família, à criança, ao adolescente e ao idoso;
  • direitos  sociais relativos ao meio ambiente.
Os direitos sociais representam uma transição da 1ª fase do constitucionalismo, chamada do constitucionalismo clássico ou político, abrangendo o período do final do século XVIII ao final do século XIX, para sua 2ª fase, em que é denominado constitucionalismo social, a partir do século XX.
Destaque-se que, segundo Lavigne4 , o grande problema trabalhista do século XVIII era a supressão das corporações de ofício, estabelecendo a liberdade de trabalho e de indústria preconizada pela Revolução Francesa, enquanto, no século XIX, os trabalhadores tomariam consciência de sua situação com o nascimento de uma nova classe social: o proletariado.
Estas periodizações não devem ser entendidas com rigidez,  pois as declarações francesas de direitos do homem e do cidadão de 1789 e 1793 incluíam, paralelamente à maciça consagração de direitos individuais, alguns direitos sociais, dos quais decorriam obrigações positivas do Estado, no domínio da educação e da assistência social, segundo lembra Boris Mirkine-Guetzévitch5 . 
A partir do século XX, de maneira mais precisa,  todas  as  constituições passam a encerrar os direitos sociais, servindo de referencial quanto ao sistema concernente à ordem econômica e social adotados, pois  a própria ausência de cláusulas sociais numa Constituição  traduz  a  opção  por determinado sistema(6).
Feita a ressalva, entende-se que, enquanto os textos constitucionais do século XIX desenvolviam os princípios liberais, expressando a consolidação do capitalismo, o assento marcadamente social das constituições do  século  XX  é  tributado  aos seguintes fatores:
a) crítica socialista ao caráter meramente formal das liberdades consagradas nas declarações de direitos de caráter individual, sem as conseqüentes condições sociais para o seu exercício, preconizando a necessidade de englobar no texto constitucional todo o conjunto das relações sociais, notadamente aquelas relativas ao trabalho e ao capital;
b) o advento da primeira guerra mundial (1914/1918);
c) Revolução Russa de 1917;
d) Constituição Mexicana, de 5 de fevereiro de 1917,  considerada  a primeira Constituição político-social: 
    * fruto da Revolução Mexicana, iniciada em 1910;
 
    * título consagrado ao trabalho e à previdência social, estabelecendo direitos fundamentais de integração econômica e social, em que se destaca o art. 1237 , além de restrições ao direito de propriedade (art. 27);
 
    * influência imediata e pequena;
e) Constituição de Weimar, de 11 de agosto de 1919: 
    * assinatura do Tratado de Versailles, cuja parte XIII criou a Organização Internacional do Trabalho (OIT);
 
    * queda da monarquia alemã com a derrota militar na primeira guerra (1918);
 
    * proclamação da República Alemã, em 9 de novembro de 1918;
 
    * assembléia nacional constituinte, eleita em janeiro de 1919, reunida em Weimar;
 
    * a segunda parte da Constituição é consagrada aos direitos e deveres fundamentais dos alemães;
 
    * tentativa de construção de uma social-democracia, através da conciliação entre os princípios liberais e os princípios socialistas, procurando fugir ao mesmo tempo do exemplo, então bem próximo e bem presente em todos os espíritos, da revolução soviética, e dos excessos do capitalismo e do liberalismo, com suas condições de vida impostas a uma imensa parcela da população8 ;
 
    * institui direitos sociais e econômicos do povo, exigindo,  para sua  realização, uma ação positiva do Estado;
 
    * desenvolve o direito ao trabalho e o direito a uma existência econômica digna (art. 1519  );
 
    * estabelece (art. 153) a função social da propriedade;
 
    * influenciou constituições elaboradas nas décadas de 20 e 30 (inclusive a brasileira de 1934 e, posteriormente, a de 1946);
f) Constituição Espanhola, de 9 de dezembro de 1931: 
    * fruto da proclamação da República Espanhola (cuja existência seria interrompida em 1936, com a guerra civil);
 
    * proclama: A  Espanha  é uma República Democrática de trabalhadores de todas as classes (art. 1º);
 
    * estabelece direitos e deveres dos espanhóis, reconhecimento dos direitos sociais e limitações à liberdade religiosa e ao direito de propriedade;
 
    * o art. 46 define o trabalho como obrigação social; assegura a todos os trabalhadores uma existência digna; prevê uma legislação social que regulará os casos de seguro de enfermidade, acidentes, desemprego, velhice, invalidez e morte; jornada de trabalho e salário-mínimo e familiar; férias anuais remuneradas; participação dos operários na direção, administração e lucros das empresas e tudo quanto se relacione com a defesa dos trabalhadores;
 
    * liberdade de escolha de profissão (art. 33);
 
    * liberdade de associação e de sindicalização (art. 39);
 
    * influenciou diversos textos constitucionais, inclusive o brasileiro de 1934;
g) Constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas de 1918/1923: 
    * Revolução de 1917;
 
    * regime  de  socialização  dos  meios  de  produção;
 
    * prevalência do trabalho em detrimento do capital;
 
    * declaração de direitos do povo trabalhador e explorado;
 
    * ditadura do proletariado.
A partir destas experiências, as chamadas cláusulas sociais  passam a  integrar  os  textos  constitucionais. No Brasil, a primeira Constituição a abrir espaço para a ordem econômica e social foi a de 1934, de orientação social-democrática, na esteira da Constituição de Weimar, de 1919, enquanto sob a égide da Constituição de 1937, malgrado seu feitio autoritário, foi elaborada a Consolidação das Leis do Trabalho, editada em 1943 (Decreto-Lei  n.º 5.452, de 1º de maio), e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço foi introduzido sob a vigência da Constituição de 1946, pela Lei n.º 5.107, de 13 de setembro de 1966.
2 - O Trabalho, a filosofia do trabalho e a sociologia do trabalho
A primeira pergunta a ser enfrentada pela filosofia do trabalho consiste em questionar por que o homem trabalha. Segue-se a interrogação: existe um direito de não trabalhar? Acaso seria  acertado dizer que o homem não trabalha porque quer, (sic) mas sim por ser essa uma exigência indeclinável de seu ser social, que é um “ser pessoal de relação”; assim como não se pensa porque se quer, mas por ser o pensamento um elemento intrínseco ao homem, no seu processo existencial, que se traduz em suas sucessivas “formas de objetivação”?(10)  Ou, por outra, será que o trabalho é sempre de indivíduos particulares e, sob este aspecto, possui uma dimensão subjetiva; enquanto atuação prática de interesses subjetivos, não pode funcionar como algo de efetivamente objetivo e socialmente unificante(11) .
É atribuída a Hegel (1770/1831), no plano filosófico, a valoração positiva do trabalho, já na modernidade européia. Posteriormente, Marx (1818/1883) analisa o lado negativo do trabalho na alienação humana, que expõe em seu aspecto fundamental.
Segundo Carlos Astrada(12), as línguas neola-tinas herdam a gênese lingüística de “trabalhar” do termo latino tripaliare, do substantivo trepalium, aparelho de tortura, formado por três paus, ao qual eram atados os condenados (gladiadores do circo romano e escravos). Trabalhar, pois, significava estar submetido a tortura. Isto é índice da infra-valoração do trabalho, que se documenta na literatura medieval dos primeiros séculos (e até em refrães dos idiomas neolatinos), em que aflora essa gênese lingüística de “trabalho”.
Pelo que registram alguns autores, nem sempre o homem trabalhou, perdendo-se a gênese do trabalho no terreno da história. Não obstante esta constatação, algumas hipóteses são levantadas com consistência bastante convincente. O professor argentino Carlos Astrada, baseado nos estudos de Heinrich Schurtz, observa que no chamado estado arcádico da sociedade humana, parece que o homem não trabalhava. Dedicava-se a satisfazer outras inclinações que reputava mais interessantes para ele e de acordo com sua situação vital, como talvez o jogo ou mais simplesmente o “dolce far niente”. O trabalho assume diferente caráter e alcance em consonância com impulsos humanos primários, nos “Naturvölker”, povos primitivos, do caráter e alcance que assume nos “Kulturvölker”, povos que chegam ao estado de cultura. Segundo Heinrich Schurtz, “o trabalho para os povos cultos é uma necessidade, assim como para os povos primitivos é uma tranqüilidade sonhadora”. Chama-se trabalho, como sintetiza Schurtz, toda atividade que direta ou indiretamente serve a fins econômicos.(13)
Segundo Karl Bücher(14) , o trabalho se apresenta, inicialmente, sob a forma de jogo. Transformado numa espécie de jogo rítmico, a fadiga espiritual produzida pelo trabalho é de tal forma atenuada que mesmo espíritos não exercitados podem realizá-lo. Estudando a essência do ritmo do trabalho, concluiu que do ritmo e das danças surgiu um dos estágios do trabalho, dando lugar, posteriormente, às “canções do trabalho” e, deste modo, às “danças do trabalho”. Bücher entende que o trabalho não nasceu da compulsão em satisfazer necessidades imediatas da vida, mas de motivações e impulsos que estão além do imperativo da necessidade, tais como o jogo e a dança.
Com Hegel, o trabalho passa a ser visto como atividade humana originária de um processo histórico e como rendimento. Não é mais um castigo, como encarado pelos antigos, mas uma atividade construtiva na vida individual e social, configurando um momento positivo na evolução do mundo histórico. Como rendimento (e utilidade) é a transformação de uma matéria de um objeto dado e, como fato de um devenir histórico através de suas fases ou momentos dialéticos, é origem de relações inter-humanas. A primeira noção é oriunda da economia política e também das ciências naturais; a segunda - como momento fundamental - é a da concepção e afirmação burguesa da vida e do mundo(15) .
Por sua vez, Karl Marx, mesmo assinalando a função produtiva e transformadora do trabalho, em relação ao mundo objetivo e à natureza, identifica o trabalho alienado,  destacando seu lado negativo. Na adaptação da natureza às necessidades da espécie, na produção de objetos, o homem demonstra que é um ser consciente. Entretanto, o objeto produzido pelo trabalhador lhe é estranho, independente de haver sido por ele realizado. A despeito de o trabalhador pôr sua vida no objeto, através do trabalho, configurando, assim, produto de seu esforço, este objeto não lhe pertence, mas sim, é ele que pertence ao objeto. Desta forma, o trabalho no qual o homem se alienou não pertence a ele, mas a outro homem: seu trabalho não só chega a ser um objeto, uma existência “externa”, mas que existe fora, independentemente do trabalhador e estranho a este, diante do qual se torna uma potência autônoma, de modo que a vida que o trabalhador outorga ao objeto se apresenta ante ele como inimiga e estranha (...) Por meio do trabalho alienado instaura o homem, portanto, não só sua relação com o objeto e o ato da produção, como com homens estranhos e para ele inimigos; engendra também a relação em que se acham outros homens com sua produção e seu produto e do mesmo modo a relação em que ele está com respeito a estes outros homens(16) .
Em relação à função do trabalho na sociedade, parece que as posturas calcadas em sua exaltação irrestrita, que levaram ao tom irônico e sarcástico do lema ostentado na entrada dos campos de concentração/extermínio nazistas(17), acentuando o “dever ao trabalho”, o trabalho como a “única dimensão do homem”, o trabalho como “narcose em oposição às dores da vida”  ou que “no trabalho está a liberdade, pois seu aspecto penoso é superado pelo senso de conquista”, restam superadas, mesmo com a consolidação do  capitalismo  pós-industrial.
Por outro lado, há posturas que negam o trabalho como criador de valores, afirmando a irredutibilidade da vida social participativa em termos de trabalho. Neste sentido, Max Scheler(18) entende que, considerado em si mesmo e independentemente de qualquer elemento que possa acompanhá-lo, o trabalho é neutro em relação às idéias de dever, de princípios e de fins fundamentais que possam estar na base da vida social.
Ainda, segundo Scheler, a palavra alemã correspondente a trabalhar (arbeiten) tem um significado intransitivo, não correspondendo a nenhuma indicação de metas, fins ou objetivos. Daí, a ação de trabalhar não implica em si mesma, necessariamente, a realização de uma meta, nem a constituição de um objeto, nem a presença de um ideal inspirador. Em face disto, a palavra arbeiten não indica um ideal, mas apenas uma atividade arracional, idealmente neutra, quer dizer, empírica. Mesmo a medida de um bem econômico não é dada pelo trabalho, mas pela sua utilização prática e esta pressupõe finalidades e metas em relação às quais o trabalho é meio e não meta. Assim, o autor alemão considera o trabalho meio e não fim em si, não tendo em si nem valor nem racionalidade, sendo simplesmente arracional(19) .
Também Carlos Astrada(20)  afirma que o trabalho não cria diretamente valores, mas bens, e a produção singular de um bem é só o elo de uma cadeia sempre incompleta.
Estas concepções, desenvolvidas pelo filósofo alemão entre 1920 e 1926, e as idéias do autor argentino acima citado, por volta de 1957, antecipam, de alguma forma, a maneira de tratar a valorização social do trabalho, como procedeu a Constituição da República de 1988, art. 1º, inciso IV, na medida em que afirma que a qualidade moral do trabalho não reside no próprio trabalho, mas é estabelecida pelos sistemas de fins e de organização moral e jurídica em que está inserido o trabalho.
Esta crítica à exaltação irrestrita do trabalho abre a perspectiva para um novo eixo de discussão: as relações entre trabalho e otium. O termo não deve ser confundido com ócio, sendo este simples atitude e situação de inércia, vazia de conteúdo e de dimensão espiritual, como alerta Bagolini21 . Otium entendido, segundo o mesmo autor italiano, na esteira traçada por Pieper e outros, como um deixar que a consciência humana se expanda através de certos comportamentos artísticos, filosóficos, religiosos, desinteressadamente culturais, simpáticos no convívio com os outros (...) não exclusivamente redutíveis a termos de trabalho em relação aos quais o trabalho poderá ser apenas um meio22 .
Pieper23  esclarece que o otium está nos fundamentos da civilização ocidental, sendo que  a etimologia da palavra nos fornece um ensinamento: “otium” em grego é “scholé”, que deu no latim “schola”, no italiano “scuola” e em português “escola”. Portanto, o termo com o qual se designam as sedes da cultura, ou antes, da formação para a cultura, significa “otium”. Escola não significa “escola”, mas “otium”. O “otium” é um estado do espírito, um clima espiritual. E nesta atitude espiritual está a exata antítese do ideal do “trabalhador”, visto nos seus “lineamentos característicos”: trabalho como fadiga, trabalho como função social. Contra o exclusivismo do ideal dominante do trabalho está o “otium” que implica um estado de contemplação repousante. (...) Se se prescinde do “otium”, a própria suspensão do trabalho (de uma hora, de uma semana, ou mais ainda) está sempre incluída em uma concepção da vida essencialmente caracterizada pelo trabalho.
Assim, o otium, independente da alternativa de ser entendido de uma perspectiva religiosa24 , afigura-se como o espaço aberto à possibilidade do ser. Com isto, a relação entre trabalho e otium pode ser examinada em função da noção de tempo. 
Sebastian De Grazia25  entende que o tempo livre não se confunde com otium, mas se opõe à idéia de trabalho. Por seu turno, otium pressupõe uma ordem temporal diferente do tempo meramente mensurável e quantitativamente concebido. Em face disto, todos podem ter tempo livre, mas nem todos podem gozar do otium.
Esta postura de negar ao trabalho um fim em si, descaracterizando-o como a suprema meta das ações humanas, do homem concebido essencialmente como trabalhador, numa dimensão utilitarista e pragmática do homo faber, viabiliza a concepção do otium como uma realidade valorativamente superior, como um ideal a ser atingido, estando a grande meta em buscar sua complementaridade em face do trabalho.
Visto nestes termos, o primado do otium sobre o trabalho talvez atenuasse (se não suprimisse) a alienação do trabalhador em face do seu trabalho denunciada por Marx. Especulando sobre este tema, Bagolini26  conclui que a validade da exigência do “otium” parece ser verificável somente por aqueles poucos que estão em condições de satisfazê-la. Se, por hipótese, todos estivessem em condições de satisfazê-la, não haveria mais trabalho e se reduziria a própria perspectiva de uma dimensão do “otium” heterogênea em relação à dimensão do trabalho. Contra o eventual sonho utópico de uma total substituição do trabalho pelo “otium”, frente ao fato de que alguns, à diferença de outros, são constrangidos a trabalhar, parece razoável a vários autores colocar-se o problema de reduzir o mais possível a dimensão do “otium”. Entretanto, não se deve excluir o perigo de que o tempo livre se transforme em ócio sem “otium”, isto é, em ócio vazio de conteúdo e de sentido, em pura evasão irresponsável, em “antitrabalho”, ou seja, simplesmente no “contrário de trabalho” com todas as relativas conseqüências: preguiça, vício destrutivo, puro consumo acrítico de produtos oferecidos pela tecno-estrutura e pela propaganda, pura passividade, solidão, loucura etc... O tempo livre como tempo humanamente vazio, contrário ao trabalho, traz consigo estes e  outros perigos.
Apesar dos riscos, parece que a idéia de complementaridade entre otium (no sentido de fruição dos valores e atividades culturais, pressupondo, como indispensável, um mínimo de bem-estar econômico) e trabalho afigura-se um caminho para superar não só a alienação do trabalhador, mas também uma possibilidade de descortinar horizontes diferenciados numa atividade que se oferece como aderente ao sistema de produção que hoje aparece como a única alternativa possível. Nesta vertente, é ainda Bagolini27  quem afirma que a exclusividade do trabalho com freqüência emergente da cultura e da experiência contemporâneas é uma alienação. Por isso, sendo “Otium” e trabalho, respectivamente entendidos e metaforicamente expressos como dimensão vertical e dimensão horizontal da consciência, podem ser entendidos complementarmente, sendo tal complementaridade autêntica exigência da consciência humana, pois qualquer atitude contrária a essa exigência é alienação.
O tema da alienação foi abordado com rigor em seu prisma filosófico por Hegel (1770/1831) e Feuerbach (1804/1872). Marx e Engels retomam o tema, traçando contornos metafilosóficos de natureza revolucionária. Como visto, assinalaram o lado negativo do trabalho, condicionado por um sistema de produção que aliena o homem  nos produtos do seu labor, fazendo com que a produção seja para ele uma atividade estranha, alienando-o no domínio das coisas (mercadorias). Resgatado de sua múltipla alienação, o homem se tornará apto a humanizar-se, visto que é um ser natural perfectível.
A. P. Ogurtsov, em verbete da Enciclopédia Filosófica soviética, define alienação como a categoria filosófica e sociológica que expressa a transformação objetiva da atividade do homem e de seus resultados numa força independente, que o domina e lhe é contrária, e também a correspondente transformação do homem  de  sujeito  ativo em  objeto do processo social28 .
Para Pierre Bour-dieu29 as condições de trabalho mais alienantes, mais repugnantes, mais próximas do trabalho forçado são apreendidas, assumidas e suportadas por um trabalhador que as percebe, mas as acomoda em função de toda a sua história própria e até mesmo da história de sua descendência. Além disso, se a descrição das condições de trabalho mais alienantes e dos trabalhadores mais alienados soa falso é porque a lógica da quimera não consegue explicar o acordo tácito estabelecido entre as condições de trabalho mais desumanas e os homens que estão preparados para as aceitar por terem condições de existência desumanas. São atitudes inculcadas pela experiência inicial do mundo social, predispondo jovens trabalhadores a aceitarem e mesmo desejarem a entrada no mundo do trabalho, contribuindo, sob a forma de investimento,  para a própria exploração com o esforço que fazem para se apropriar do seu trabalho e de suas condições de trabalho e que os fazem se apegar ao seu ofício por intermédio das vantagens concedidas (muitas vezes ínfimas) e sob o efeito da concorrência. Daí, exceptuando as situações-limites, próximas do trabalho forçado, vemos que a verdade objetiva do trabalho assalariado, quer dizer, a exploração, se torna possível, em parte, porque a verdade subjetiva do trabalho não coincide com a sua verdade objetiva. A própria indignação que ela suscita é testemunha disso, já que a experiência profissional, na qual o trabalhador só espera de seu trabalho (e do seu meio de trabalho) o salário, é vivida como mutilada, patológica e insustentável porque é desumana.
A questão aqui reside em se indagar se a múltipla alienação provocada pelo trabalho é superável, seja pelo otium seja por alguma outra forma. No sentido dado por Marx a alienação é múltipla, pois consiste na ação pela qual (ou estado no qual) um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se tornam (ou permanecem) alheios, estranhos, enfim, alienados [1] aos resultados ou produtos de sua própria atividade (e à atividade ela mesma), e/ou [2] à natureza na qual vivem, e/ou [3] a outros seres humanos, e – além de, e através de, [1], [2] e [3] – também [4] a si mesmos (às suas possibilidades humanas constituídas historicamente). Assim concebida, a alienação é sempre alienação de si próprio ou auto-alienação, isto é, alienação do homem (ou de seu ser próprio) em relação a si mesmo (às suas possibilidades humanas), através dele próprio (pela sua própria atividade). 
E a alienação de si mesmo não é apenas uma entre outras formas de alienação, mas a sua própria essência e estrutura básica. Por outro lado, a “auto-alienação” ou alienação de si mesmo não é apenas um conceito (descritivo30  ), mas também um apelo em favor de uma modificação revolucionária do mundo (desalienação).(...) Marx concordava com a crítica de Feuerbach31  à alienação religiosa, mas ressalvava que esta é apenas uma entre várias formas de alienação humana. O homem não só aliena parte de si mesmo na forma de Deus, como também aliena outros produtos de sua atividade espiritual na forma de filosofia, senso comum, arte, moral; aliena os produtos de sua atividade econômica na forma da mercadoria, do dinheiro, do capital; e aliena produtos de sua atividade social na forma do Estado, do direito, das instituições sociais. Há muitas formas nas quais o homem aliena de si mesmo os produtos de sua atividade e faz deles um mundo de objetos separados, independente e poderoso, com o qual se relaciona como um escravo, impotente e dependente. Mas o homem não só aliena de si mesmo seus próprios produtos, como também se aliena a si próprio da atividade mesma pela qual esses produtos são criados, da natureza na qual vive e dos outros homens. Todos esses tipos de alienação são, em última análise, a mesma coisa: são aspectos diferentes, ou formas, da alienação do homem, formas diferentes da alienação que se produz entre o homem e a sua “essência” ou sua “natureza” humana, entre o homem e a sua humanidade32 .
Em vista destas dimensões da alienação, parece ser irrealizável um estado de sua absoluta superação ou completa desalienação. Neste sentido, a filosofia existencialista preconiza que a alienação é um momento estrutural permanente da existência do homem. Além da existência autêntica, o homem leva uma existência não-autêntica, sendo ilusório pretender superar esta condição e viver apenas autenticamente.
Ainda sob a influência marxista33  , há aqueles que acreditam numa desalienação absoluta sob o comunismo, enquanto outros crêem que tal nível de desalienação só seria possível se a humanidade fosse alguma coisa definitiva e inalterável. De toda forma, as correntes que sustentam ser possível apenas uma desalienação relativa ganharam contornos mais precisos. Segundo esta concepção, embora não seja possível eliminar toda a alienação em suas múltiplas facetas, pode ser construída uma sociedade basicamente não-alienada que estimule realmente o desenvolvimento de indivíduos efetivamente humanos e não auto-alienados. 
Para alguns, esta superação seria alcançada através de um esforço moral do indivíduo, como um esforço interior, independente das circunstâncias ou fatores externos, considerando a auto-alienação um fato psicológico. Outros, por entendê-la um fenômeno neurótico, recomendam tratamento psicanalítico. Os marxistas presos ao determinismo econômico, considerando os indivíduos como produtos passivos da organização social (em particular da econômica), vêem na transformação social sua solução, com a abolição da propriedade privada.
Contrapondo-se a estas idéias, surge uma outra concepção, que entende ser a desalienação da sociedade intimamente ligada à desalienação dos indivíduos, a tal ponto que é impossível realizar uma sem a outra, ou reduzir uma à outra. Acredita ser possível criar um sistema social que seja favorável ao desenvolvimento de pessoas desalienadas, reconhecendo não ser possível organizar uma sociedade que automaticamente produzisse tais pessoas. Um indivíduo só pode se transformar num ser não alienado, livre e criativo, por meio de sua própria atividade.
Sobre este ponto de vista, o citado Gajo Petrovic34  assim conclui: Mas não só a desalienação não pode ser reduzida à desalienação da sociedade, como esta, por sua vez, não pode ser concebida simplesmente como uma mudança na organização da economia que será seguida automaticamente por uma mudança em todas as outras esferas ou aspectos da vida humana. Longe de ser um dado eterno da vida social, a divisão da sociedade em esferas mutuamente independentes e conflitantes (economia, política, direito, artes, moral, religião etc.) e a predominância da esfera econômica são, segundo Marx, características de uma sociedade alienada. A desalienação da própria sociedade é, portanto, impossível, sem a abolição da alienação que as diferentes atividades humanas guardam umas das outras.
Finaliza o professor da Universidade de Zagreb35  (na Croácia): Igualmente, o problema da desalienação da vida econômica não pode ser resolvido pela simples abolição da propriedade privada. A transformação desta em propriedade estatal não introduz uma transformação essencial na situação do trabalhador ou do produtor. A desalienação da vida econômica também exige a abolição da propriedade estatal com sua transformação em propriedade social real, e isso não se pode realizar sem que se organize a totalidade da vida social com base na autogestão dos produtores imediatos. Mas, se a autogestão dos produtores é uma condição necessária da desalienação da vida econômica, ela não é, por si, condição suficiente. Não resolve automaticamente o problema da desalienação na distribuição e no consumo, e não é em si suficiente nem mesmo para desa-lienar a produção. Certas formas da alienação da produção têm suas raízes na natureza dos meios modernos de produção e por isso não podem ser eliminadas por uma mera mudança da forma de gerir a produção.
A organização da sociedade contemporânea nos moldes do capitalismo pós-industrial parece negar efetivamente a possibilidade de desalienação absoluta. Por outro lado, sob a ótica do indivíduo, o bombardeio midiático e informático a que está submetido diariamente em altas doses contribui para retro-alimentar a auto-alienação, configurando seu sistema de manutenção e reforço. Contudo, as atividades relacionadas ao otium podem minimizar, para alguns pelo menos, os efeitos das diversas esferas da alienação humana. Cabe a estes poucos disseminar estes mecanismos de libertação. É pouco e não configura uma perspectiva alentadora, mas parece ser a única que se oferece.
Sob o prisma da sociologia do trabalho ressalta, como afirma Robert Castel36 , a questão social, caracterizada por uma inquietação quanto à capacidade de manter a coesão de uma sociedade. A ameaça de ruptura é apresentada por grupos cuja existência abala a coesão do conjunto. Assim, a questão social é um desafio imposto à sociedade que experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. Este risco é representado pela presença dos “excluídos” (que o autor chama de desfiliados): a questão do pauperismo causado pela revolução industrial, gerando os carentes de assistência (ou necessitados do social-assistencial, como se refere o autor) e os desempregados. A questão foi explicitamente nomeada em 1830 pela tomada de consciência de populações que são, simultaneamente, os agentes e as vítimas da revolução industrial: momento essencial aquele em que pareceu ser quase total o divórcio entre uma ordem jurídico-política, fundada sobre o reconhecimento dos direitos dos cidadãos, e uma ordem econômica que acarreta uma miséria e uma desmoralização de massa. (...) Entenda-se isso como o fato de que a sociedade liberal corre  o risco de explodir devido às novas tensões sociais que são a conseqüência de uma industrialização selvagem37 .
No espaço entre a organização jurídico-política e o sistema econômico encaixa-se o social: desdobrar-se nesse entre-dois, restaurar ou estabelecer laços que não obedecem nem a uma lógica estritamente econômica nem a uma jurisdição estritamente  política. O “social” consiste em sistemas de regulações não mercantis, instituídas para tentar preencher esse espaço. Em tal contexto, a questão social torna-se a questão do lugar que as franjas mais dessocializadas dos trabalhadores podem ocupar na sociedade industrial. A resposta para ela será o conjunto dos dispositivos montados para promover sua integração38 .
A partir disto, constata-se que os “ problemas sociais” avolumaram-se de tal maneira que substituíram a dicotomia assistência/desemprego, criando uma diferenciação tal de situações, tornando difícil agrupá-las em um gênero comum. 
Neste sentido, cabe a pergunta: realmente, que coisa partilha um homem que há muito está desempregado, recolhido à esfera familiar, com mulher, apartamento e televisão, e o jovem cuja ocupação penosa é feita de andanças sempre recomeçadas e de explosões de raiva abortadas? Eles não têm nem o mesmo passado, nem o mesmo futuro, nem a mesma vivência, nem os mesmos valores. Não podem alimentar um projeto comum e não parecem suscetíveis de superar sua angústia por meio de formas de organização coletiva39 .
O que aproxima estas e outra situações infelizes é que possuem a unidade de uma posição em relação às reestruturações econômicas e sociais atuais: são os abandonados, são os “inúteis para o mundo”: pessoas e grupos que se tornam supranumerários diante da atualização das competências econômicas e sociais (...) Os supranumerários [diferentemente dos trabalhadores braçais e operários das últimas grandes lutas operárias, que continuavam vinculados ao conjunto das trocas] nem sequer são explorados, pois, para isso, é preciso possuir competências conversíveis em valores sociais. São supérfluos (...) Se, no sentido próprio do termo, não são mais atores porque não “fazem” nada de socialmente útil, como poderiam “existir” socialmente? No sentido, é claro, de que existir socialmente equivaleria a ter, efetivamente, um lugar na sociedade. Porque, ao mesmo tempo, eles estão bem presentes – e isso é o problema, pois são numerosos demais 40 .
Nisto reside a “metamorfose” da questão social anunciada no título da obra: de saber como um ator social subordinado e dependente poderia tornar-se um sujeito social pleno. A questão passa a ser amenizar a presença dos “supranumerários”, tornando tão discreta sua presença a ponto de apagá-la.
A questão do momento, então, passa a ser a invalidação social. O autor alerta para o fato que a questão social se põe explicitamente às margens da vida social, mas “ questiona” o conjunto da sociedade (...), quer entremos na sociedade “ pós-industrial”, quer mesmo na “ pós-moderna” ou como se quiser chamá-la, ainda assim, a condição preparada para os que estão “ out” depende sempre da condição dos que estão “ in” (...). Mas a recíproca é igualmente verdadeira, a saber, os poderosos e os estáveis não estão colocados num Olimpo de onde possam contemplar impavidamente a miséria do mundo. (...). Se a redefinição da eficácia econômica e da competência social deve ser paga ao preço de se pôr fora-do-jogo de 10, 20, 30% ou mais da população, será possível falar ainda de per-tencimento a um mesmo conjunto social? Qual é o limiar de tolerância de uma sociedade democrática para o que chamarei, ao invés de exclusão,  de invalidação social?41
Recolocar no jogo social as multidões descartadas e invalidadas é o grande desafio, que insere no tema a questão do papel  que o Estado deve desempenhar nesta conjuntura. A conjuntura após a Segunda Guerra Mundial pôde dar, sobre a articulação do econômico e do social então elaborada, uma versão satisfatória o bastante para ter tido a tentação de se pensar como quase definitiva. Todos sabem que hoje não estamos mais na era dos compromissos sociais permitidos pelo crescimento. Mas o que isto quer dizer? Estamos, sem dúvida, diante de uma bifurcação: aceitar uma sociedade inteiramente submetida às exigências da economia ou construir uma figura do Estado social à altura dos novos desafios. A aceitação da primeira parte da alternativa não pode ser excluída. Mas pode custar o desmoronamento da sociedade salarial, isto é, desta montagem inédita de trabalho e de proteções que teve tanta dificuldade para se impor42 .
Enfim, o alerta final do autor na longa Introdução ao texto: no raiar do século XX, a solidariedade deveria tornar-se um assumir-se voluntário da sociedade e o Estado social fazer-se seu fiador. Na aurora do século XXI, quando as regulações implantadas no contexto da sociedade industrial estão, por sua vez, profundamente abaladas, é o mesmo contrato social que, sem dúvida, deve ser redefinido a novas expensas. Pacto de solidariedade, pacto de trabalho, pacto de cidadania: pensar as condições de inclusão de todos para que possam comerciar juntos, como se dizia na época do Iluminismo, isto é, “ fazer sociedade”43 .
Estas considerações do sociólogo francês soarão apocalípticas e destituídas de relevância para aqueles cuja ótica exige tão-somente as lentes cifradas pelo fator econômico, mesmo para a questão social  (quando não a enxergam como um  “ caso de polícia”). Todavia, aliadas às discussões acerca da alienação do homem, incluindo a esfera da produção, formam o grande eixo de sustentação para as discussões do direito do trabalho no momento presente.
Estas constatações enfatizam a necessidade de uma abordagem do jurídico integrada aos grandes temas das ciências sociais, sob pena de o operador do direito ficar sozinho em cena, canhestramente examinando o próprio umbigo, perdido nas confortáveis certezas oferecidas pela dogmática jurídica, enquanto a concretude da realidade social exige um enfoque que descortine mais que as simples aparências, que varrem para baixo do tapete das conveniências sociais as inoportunas questões da transformação social.
3 -  O trabalho assalariado
Feitas estas observações, malgrado a possibilidade de comparar o trabalho na Antiguidade até o surgimento do Estado moderno e o  desenvolvimento das suas peculiares normas trabalhistas, o trabalho como atividade fundada na subordinação, que interessa ao direito do trabalho, nasce com o capitalismo.
Uma vez que a acumulação capitalista se desenvolve mediante a expansão e a transformação da base econômica, carecendo garantir a continuidade dessa acumulação, além do controle do consumo, a produção capitalista controla também o trabalho, principalmente detendo a capacidade de empregar. A organização capitalista da produção se assenta na compra do tempo-trabalho e no consumo de mercadorias.
Quanto ao desenvolvimento deste sistema, lembra Fernando Pedrão44  que  a produção capitalista só pode ser realizada quando o trabalhador se identifica como proprietário de sua força de trabalho, ou seja, quando ele é legalmente livre. Isso o diferencia do trabalho escravo, em que ele não tem propriedade de seu tempo, e do trabalho servil, em que o uso da força de trabalho está condicionado pela ligação do trabalho ao solo.
Este conceito de trabalho, que pressupõe a noção de mobilidade social, ou seja, a capacidade de optar entre múltiplas atividades, supera a noção genérica de trabalho como concentração de forças dirigidas a um fim determinado, aproximando-se mais do conceito latino de tripaliare (do latim vulgar), martirizar com tripaliu (instrumento de tortura)45 , daí, o sentido contemporâneo do trabalho como direito, relacionado à sobrevivência46 , poder ser meditado sob uma ótica crítica que considere o potencial de acumulação de recursos e privilégios em detrimento das mudanças nos usos do tempo das pessoas, que substituem lazer por trabalho.
Entretanto, o grande comprometimento das pessoas com o modo de produção capitalista se dá através da maneira de ver a si mesmas, as outras pessoas e a própria sociedade, instaurando um modo de pensar capitalista, fechando seus horizontes a formas alternativas de estruturação da sociedade.
Com a consolidação do modo de produção capitalista e a conseqüente mercantilização do trabalho, a produção capitalista instaura a sociedade de interesse, distinguindo a sociedade capitalista de outras: o comportamento dos atores sociais participantes da produção e do consumo é dirigido por vantagens específicas em lugar das vantagens genéricas, como as sociedades de privilégios.
Fernando Pedrão assevera que nas sociedades de privilégios, as posições antes conquistadas traduzem-se em vantagens quando se realizam ações econômicas; nas sociedades capitalistas é a realização das ações que enseja a formação de privilégios. Sociedade nenhuma é, no entanto, puramente capitalista, e há muitas sociedades de privilégios nas quais prosperam circuitos capitalistas de relações de produção e de consumo. (...) Interesse e privilégio convivem de diversos modos nas sociedades modernas, tornando necessário entender como os movimentos dos interesses controlam os privilégios, e como os privilégios demarcam as possibilidades de fazer prevalecer interesses47 .
Seguindo este raciocínio, necessário estabelecer a diferença entre privilégio e interesse no capitalismo. Segundo, ainda, o mesmo autor, a produção capitalista realiza-se em sociedades em que predominam relações determinadas por interesses imediatos, comparado com sociedades em que esses interesses estão regulados por privilégios antes adquiridos, ou subordinados a eles. A rigor, os privilégios são interesses protegidos por regras impostas ou consentidas, mas que funcionam como modo de garantir determinadas participações na distribuição atual da renda48 .
4 - Conquistas trabalhistas e flexibilização das normas trabalhistas
As conquistas trabalhistas, por este prisma, tanto quanto esforço dos trabalhadores e dos sindicatos, configura um abrandamento das relações de trabalho antevista pelo próprio capital em nome de seus interesses, ocultando os privilégios que o sistema capitalista a ele outorgava e mais, dando a impressão, aos trabalhadores, que legalizava privilégios para a classe.
Como constava dos objetivos da Constituição de Weimar de 1919, açodada pelas propostas da Revolução Russa, a eclosão dos direitos sociais põe em xeque o próprio sistema de produção capitalista, que troca privilégios de detentor do modo de produção 
por interesses da nascente classe operária. Deste ângulo, o direito do trabalho afigura-se francamente contra-revolucionário, destinado, como concessão da burguesia, a acalmar a inquietação das classes trabalhadoras e como esforço para obter a paz social, como entendia Mario de la Cueva49 .
Veja-se, por exemplo, a redução da jornada de trabalho, que, inicialmente, tem como limite apenas o exaurimento das forças do trabalhador. No início do século XIX eram comuns e plenamente aceitáveis jornadas de até 16 horas diárias. Na Inglaterra, em 1832, fica estabelecida a redução para 12 horas, seguida da diminuição para 10 horas, em 1847.
Nos EUA, em 1886, cerca de 100 mil operários entram em greve em Chicago, reivindicando uma jornada legal de 8 horas. Inspirados pelos anarquistas, propugnavam os três oito: 8 horas de trabalho, 8 de lazer e 8 de repouso, que configura, até hoje, a grande concessão do capital ao trabalho em nome da produção. Houve reação dos industriais, que recrutaram trabalhadores avulsos, enquanto os grevistas procuraram barrá-los nas portas das fábricas. A polícia foi chamada para conter o conflito, resultando a morte de 6 trabalhadores. Na continuação do protesto, morreram 7 policiais e diversas pessoas ficaram feridas. Sob o calor destes acontecimentos, foi aprovada no Congresso de Paris da Segunda Internacional Socialista, em 1889, a moção dedicando o dia 1º de maio aos defensores da causa trabalhista, sendo posteriormente consagrada a data como dia do trabalho.
Ao mesmo tempo em que a diminuição da jornada de trabalho representa uma conquista dos trabalhadores, afigura-se como preservação de mão-de-obra capacitada por parte do capitalista, chegando, atualmente, a ser apresentada como fator de geração de empregos. Atente-se para seguinte progressão:
a) na década de 1870, Reino Unido = jornada de 11 horas diárias; 
b) na década de 1890, Alemanha = jornada de 10 horas diárias, com repouso semanal remunerado;
 
c) a partir de 1919 = adoção da jornada de 8 horas diárias em vários países europeus, após a primeira guerra mundial;
 
d) em 1936 = adoção da jornada semanal de 4 horas na França, com 2 semanas de férias;
 
e) em 1954 = jornada semanal de 43,3 horas no Reino Unido;
 
f) em 1988 = no Brasil, adoção da jornada normal não superior a 8 horas diárias e  44 semanais de trabalho ou 2.068 horas anuais (art. 7º, inciso XIII);
 
g) anos 90 = proposta de 35 horas semanais (França, a partir de janeiro de 2000) e Itália. Empresas como a Volkswagen alemã e a Siemens, também alemã, reduziram a jornada  para 28, 8 horas semanais, com diminuição de 15% do salário, a partir de 1º de janeiro de 1994, a primeira; e a segunda, mediante acordo com o sindicato, reduziu à metade a jornada de funcionários com 55 anos, com corte salarial de 18%, buscando aumentar o número de empregos50 .
A tônica nos dias que correm é atribuir às cláusulas sociais o muito do custo econômico dos produtos brasileiros, numa maneira confortável de descarregar no trabalhador, sepultado pelas injustiças sociais da estrutura vigente, a crise capitalista que resulta dos seus próprios mecanismos de expansão e adaptação aos tempos presentes. A regra de ouro permanece a mesma: pereça o mundo, os ganhos em primeiro lugar.
A denominada flexibilização das normas trabalhistas nasce na Europa, ganhando impulso recente na América Latina e, nesta, com destaque para o Brasil da política neo-liberal.
Amauri Mascaro Nascimento51  entende que flexibilização do Direito do Trabalho é a corrente de pensamento segundo a qual necessidades de natureza econômica justificam a postergação dos direitos dos trabalhadores.
Para Nei Frederico Cano Martins52 assevera que a flexibilização consiste, em síntese, em afrouxar-se a rigidez do Direito do 
Trabalho, propiciando à classe empresarial facilidades para o enfrentamento do período economicamente  não propício.
 
A redução das garantias trabalhistas, a despeito de asseguradas constitucionalmente, não servem de barreira quando a própria Constituição pode ser alterada em nome de mais vagas e mais empregos num projeto “modernizante” de extração neoliberal  que atravessa a economia mundial.
Assim, as conquistas seculares, ou ao menos de décadas de luta, curvam-se aos tempos de busca do emprego, como se a ausência de vagas fosse debitada apenas aos direitos sociais que, contrariamente, teimam em assegurar e garantir um mínimo de poder e dignidade àqueles que, aqui sim, secularmente apenas fizeram engrossar o caldo da acumulação capitalista, cujos  limites ainda não foram fixados pelo sistema.
Analisando as relações entre flexibilização e direito alternativo, Amilton Bueno de Carvalho53 conclui: por outro lado, quer me 
parecer que a doutrina de flexibilização  é apenas uma forma de dar suporte teórico à “ flexibilização” que sempre existiu no país, posto que, na vida real, mesmo os direitos legalmente conquistados pelo povo, têm sido sonegados, postergados. Basta como exemplo o confronto entre a definição constitucional do salário mínimo, com o número de moedas que chegam mensalmente ao bolso do trabalhador.  Flexibilizar (ou temperar direitos daquele que trabalha) sempre tem sido a tônica em nossa história, ou a morosidade do judiciário trabalhista, o arrocho salarial, a falta de estabilidade, não são formas cruéis de conceder  vantagens  ao empregador?
Em relação ao emprego, condição essencial do trabalho no sistema capitalista, o momento é de reavaliação. A tecnologia, por exemplo, causa desemprego? Depende da atividade e da iniciativa dos capitalistas. Martin Carnoy (Universidade de Stanford, Califórnia) e Manuel Castells (Universidade da Califórnia), patrocinados pela OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico), concluem que a tecnologia cria e destrói empregos, simultaneamente, dependendo da atividade e do local em que se processa sua inserção. Em suma, a tecnologia cria empregos quando aumenta a produtividade, pois exige na ponta não tecnologizada mais mão-de-obra, além, de promover a queda de preço dos produtos, expandindo o mercado  e  gerando  novas  oportunidades  de negócio54 .
Claro que, para a concretização deste panorama, o investimento na educação, não como mera reciclagem de trabalhadores atingidos pela obsolescência,  faz-se essencial,  urgente  e  fundamental.
Martin Carnoy, em rápida entrevista à jornalista Bia Abramo55 , após enfatizar que, no Brasil, a causa do desemprego se dá por razões de política econômica, mantendo a taxa de inflação baixa, restringindo o nível da economia, criando mais desemprego, afirma que o Brasil investiu muito pouco em educação por muitos anos e agora tem que corrigir isso. Quer dizer, priorizar direitos sociais, especificamente em educação, que custa muito dinheiro, é o caminho há muito sabido mas sempre ignorado. Parece que não será pela privatização indireta ou direta do ensino público que isto será atingido, pois as lei do mercado são dormentes em relação às demandas dos menos favorecidos56 .
Parece natural a alguns que a crise contemporânea do emprego seja resolvida pela eliminação de alguns (ou do mínimo) dos direitos sociais relacionados ao trabalho. Ao que tudo indica, a chamada flexibilização das leis trabalhistas, que já fracassou na Argentina e na Espanha, não configura solução, sugere apenas paliativo criticável e preocupante, em face do precedente que estabelece. De toda sorte, parece que as pressões contra o chamado  custo Brasil  foram  decisivas  em tal empreitada.
O raciocínio governamental se resume no seguinte, segundo o documento “Emprego no Brasil – Diagnóstico e Políticas” do Ministério do Trabalho, de março de 1998, reservado para discussão no âmbito do governo57 : a despeito dos direitos consagrados na CLT, está caindo o grau de proteção dos trabalhadores brasileiros, emblematizado pelo contrato formal de trabalho. No dizer do documento, o mercado formal de trabalho no país está se desestruturando.
As garantias trabalhistas, chamadas cláusulas trabalhistas mínimas58 , são questionadas tanto em função da desestruturação do mercado formal (= carteira de trabalho assinada), quanto por propostas que buscam flexibilizar59  os contratos. Sobre o “custo do trabalho”, manifesta-se o negociador do Sindimaq de São Paulo (Associação Sindical das Empresas que Produzem Máquinas e Equipamentos) no sentido de limitar os direitos e encargos que, segundo ele, aumentam o custo do trabalho sem benefício para o trabalhador60 : pagamos 102% de encargos sobre a folha salarial, além do custo do salário. Esse pagamento não se destina ao trabalhador, mas aos diversos fundos do governo e outros fins. Se o custo para a formalização dos contratos fosse menor, haveria um incentivo a que mais trabalhadores fossem contratados.
Segundo dados divulgados61 , os encargos sociais, no Brasil, apresentam o seguinte perfil:
Além de ser questionável sob o prisma jurídico, na vertente econômica a flexibilização do mercado de trabalho em relação à geração do número de empregos é criticável, pois, segundo dados do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos), o custo extra-salarial das empresas com obrigações trabalhistas é de apenas 25%62 .
Não bastasse isto, segundo a OIT, o peso da mão-de-obra no custo final dos produtos brasileiros é baixo, pois, no setor manufatureiro, seu custo representava, em média, US$ 2,68 por hora, em 1993, enquanto na Coréia do Sul era de US$ 4,93; nos EUA US$ 16,40; e na Alemanha US$ 24,87.
Em linhas gerais, a nova modalidade de contrato a prazo63 , criada pela Lei n.º 9.601, de 21 de janeiro de 1998, regulamentada pelo Decreto n.º 2.490, de 04 de fevereiro de 1998, pode ser resumida nos seguintes tópicos: 
a) serão instituídos através de convenções ou acordos coletivos de trabalho (art. 1º, caput); 
b) as empresas só podem utilizar esta modalidade de contrato para admissões que representem acréscimos no número de empregados, isto é, provocando a abertura de novas vagas de trabalho, estando implicitamente vedada a contratação para substituir empregados com contratos sem prazo, ou, como usualmente designado, com  prazo indeterminado (art. 1º, caput, in fine); 
c) o contrato pode ser renovado até o prazo máximo de 2 anos. Posteriormente, o empregado pode ser demitido ou contratado definitivamente64 ; 
d) o acordo ou convenção definirá a indenização nas hipóteses de rescisão antecipada por iniciativa do empregado ou do empregador e as multas pelo descumprimento de suas cláusulas  ( art. 1º, § 1º, incisos  I e II); 
e) reduz, por 18 meses contados da data de publicação da lei, a alíquota de contribuição do FGTS em 75% (art. 2º, inciso II: a contribuição passa a ser de 2%); 
f) ao final do contrato, o empregado perde o direito ao aviso-prévio e à multa rescisória de 40% sobre os depósitos do FGTS (art. 1º, caput); 
g) garante estabilidade provisória das gestantes, do dirigente sindical, ainda que suplente, dos empregados eleitos para cargo de direção de comissões internas de prevenção de acidentes e do empregado acidentado (art. 1º, § 4º); 
h) reduz em 50%, por 18 meses contados da data de publicação da lei, as contribuições ao Salário-educação e ao chamado “sistema S” (Sesc, Senai, Senac, Sesi etc - art. 2º, inciso I); 
i) estabelece limites ao número de contratações, estabelecendo percentuais em relação ao contingente de trabalhadores da empresa (art. 3º); 
j) o empregador deverá estar em dia com o FGTS e o INSS para pagar menos encargos (art. 4º); 
l) reduz o gasto mensal das empresas de  R$ 153,93 (conforme Tabela I), para R$ 139,89; possibilitando uma economia de 9,12%. 
 
ITEM DE DESPESA
DESPESA EM R$
1) Salário contratual (incluindo o valor das férias e do repouso semanal remunerado)
100,00
2) 13º e adicional de 1/3 de férias (como proporção mensal)
11,11
3) Folha de pagamento mensal (1+2), que é a base de cálculo dos encargos sociais
111,11
4) FGTS e verbas rescisórias (como proporção mensal)
11,93
5) Remuneração mensal do trabalhador (3+4)
123,04
6) Encargos sociais (incidentes sobre 111,11)
30,98
DISTRIBUIÇÃO DOS ENCARGOS SOCIAIS (TABELA I):
6.1) INSS (20%)
22,22
6.2) Seguro de acidentes do trabalho (média 2%)
2,22
6.3) Salário-educação (2,5%)
2,78
6.4) INCRA (0,2%)
0,22
6.5) SESI ou SESC (1,5%)
1,67
6.6) SENAI ou SENAC (1,0%)
1,11
6.7) SEBRAE (0,4%)
0,47
7) Desembolso mensal do empregador (5+6)
153,93
Ao que tudo indica, a instituição desta nova modalidade de contrato de trabalho a prazo não contribuiu para aumentar o oferecimento de vagas. Segundo dados da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), entre os meses de novembro/97 e abril/98 o saldo entre empregos criados e extintos foi negativo, pois  a indústria paulista eliminou 99. 688 vagas65.
Segundo técnicos da entidade, a alta de juros colaborou no fechamento das vagas, embora não seja sua determinante. O nível de emprego na indústria paulista chegou a cair à média de 1,56% em janeiro de 1998, fechando o mês de abril do mesmo ano com o saldo negativo de  9.840 postos de trabalho, significando uma redução de 0,57%. A indústria paulista fechou o primeiro quadrimestre de 1998 com 64. 321 vagas a menos do que tinha ao final do ano passado, o que representa que o volume de vagas fechadas entre janeiro e abril de 1998 foi quase 75% superior ao registrado no primeiro quadrimestre de 1997. A situação pior ocorreu em 1996, quando a indústria paulista fechou no primeiro quadrimestre 71.798 postos de trabalho. Desde o início do Plano Real, em julho de 1994, até abril de 1998, o índice acumulado de perda de postos de trabalho é de 437. 812, representando uma redução de 20,28% no nível de emprego industrial no período.
Estes indicadores, embora se refiram apenas à indústria paulista, são significativos como ponto de referência para a avaliação da utilização do novo contrato e  sua  relação  direta  com  a  geração de novos  empregos.
Não obstante, o argumento a favor da flexibilização consiste em afirmar que as atuais normas trabalhistas foram desenvolvidas para uma economia fechada e sem concorrência, enquanto, hoje, esta alternativa apresenta-se totalmente descartada, impondo novas modalidades de trabalhar e empregar. Em face destes imperativos surgem o trabalho em tempo parcial, o teletrabalho,  o trabalho por metas ou projetos e o trabalho subcontratado. Paralelamente, desenvolvem-se formas de remuneração vinculadas à produtividade e à qualidade. Enfim, a flexibilização seria uma tendência irresistível e irreversível em face da competição econômica de ordem planetária.
Na extremidade oposta, o contra-argumento se fundamenta em que as regras de flexibilização em relação aos acordos trabalhistas têm como paradigma as economias de países desenvolvidos, que dirigem o processo de globalização da atividade econômica. No Brasil, a falta de planejamento na passagem de uma economia fechada, baseada no modelo econômico de substituição de importações, para um modelo de economia aberta estaria ainda repercutindo, principalmente nas relações trabalhistas, com a presença da exploração do trabalho de menores, a existência de trabalho escravo, a inconsistente participação da massa salarial no PIB (menos de 30%) e a redução nos gastos governamentais com saúde e educação. Tudo isto, somado ao fato da grande rotatividade de mão-de-obra (em torno de 38%, enquanto nos EUA é de 14%) e o formidável crescimento da economia informal, faz com que a comparação, em termos absolutos, entre os cenários em que foi introduzida a chamada flexibilização das normas trabalhistas, seja profundamente punitiva para os trabalhadores.
Pelos dados apresentados, não parece que a estratégia de “flexibilização dos contratos de trabalho” atinja mais que a “despauperização” gradativa dos trabalhadores, uma vez que pauperizados já se encontram, e a aniquilação dos direitos sociais parece ser a única via para manter a fúria do capital em relação aos intocáveis lucros de sua atividade.
Pode ser ilusão, mas quando líderes como Tony Blair, primeiro-ministro britânico, afiliado ao Partido Trabalhista inglês, preconiza uma terceira via, como um caminho intermediário entre o liberalismo e o socialismo, reeditando as idéias que compuseram a pauta das constituições pós primeira guerra, parece que ainda há uma oportunidade institucional para os direitos sociais. Além disto, pelo que se observa da história humana, não existe predominância permanente de nenhuma tendência comportamental que se pretenda absolutamente hegemônica. Assim como ruiu o Império Romano, sem pompas e entre as dores e incertezas de uma nova era, o atual sistema de exploração física, econômica e espiritual das pessoas também tende a se esboroar. De que forma e o que será edificado em seu lugar, apenas a história efetivamente dará conta. Dos contemporâneos dependem atitudes críticas e concretizadoras do porvir. E não é pouco.
Caso contrário, estarão concretizadas as palavras de Albert O. Hirschman sobre ter o capitalismo realizado exatamente o que se propôs a realizar, traduzindo seu pior aspecto: esperava-se e supunha-se precisamente que o capitalismo  reprimiria certos impulsos e inclinações humanos e moldaria uma personalidade humana menos multifacetada, menos imprevisível e mais “unidimensional” 66 .
Notas: 
 1 MONTORO,André Franco  – Introdução à Ciência do Direito – RT – SP – 1991 – p. 174. 
 2 DIREITO SOCIAL – L Tr. Ed./Editora da Universidade de São Paulo – 1980 – p. 42.. 
 3 CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO – RT – SP – 1990 – p. 254. 
 4 Apud – Direito Constitucional do Trabalho – Floriano Corrêa Vaz da Silva – Edições LTr – SP – 1977 – p. 34. 
 5 AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO CONSTITUCIONAL – apud – Floriano Corrêa Vaz da Silva – Direito Constitucional do Trabalho – cit. – pp. 31/32. 
 6 SILVA,Floriano Corrêa Vaz da  – op. cit. – p. 35. 
 7 Segundo informa Floriano Corrêa Vaz da Silva (op. cit. p. 50), há no centro da Cidade do México uma Calle artículo 123. 
 8 Idem – p. 52. 
 9 Art. 151. A vida econômica deve ser organizada de conformidade com os princípios da justiça, tendo em vista garantir a todos uma existência digna do homem. Nestes limites, a liberdade econômica do indivíduo deve ser respeitada. 
 10 REALE, Miguele – Introdução à edição brasileira da Filosofia do Trabalho, de Luigi Bagolini, sob o título O Trabalho na Democracia – Filosofia do Trabalho – trad. João da Silva Passos – Ed. Universidade de Brasília/ Editora L Tr. – 1981 – p. 13. 
 11 BAGOLINI, Luigi – op. cit. – p. 105. 
 12 TRABALHO E ALIENAÇÃO  - trad. Cid Silveira - Ed. Paz e Terra - RJ - 1968 - p. 32. 
 13 Op. cit. - p. 32/33. 
 14 In - Trabalho e Alienação - cit. - p. 33. 
 15 ASTRADA, Carlos  - op. cit. - p. 32. 
 16 Apud – Trabalho e Alienação – cit. – págs. 38 e 49. 
 17 Só o trabalho liberta (Arbeit macht frei). 
 18 Apud – Luigi Bagolini – O Trabalho na Democracia – Filosofia do Trabalho – cit. – p. 43 e ss. 
 19 Idem – p. 44. 
 20 Op. cit. – p. 98. 
 21 Op. cit. – p. 56. 
 22 Idem – p. 51. 
 23 Citado por Bagolini – p. 52. 
 24 Pieper associa otium  à atitude festiva, encontrando sua raiz no culto, pois não há festa sem divindade. 
 25 Citado por Bagolini – p. 52 e ss. 
 26 Op. cit. – p. 58. 
 27 Idem – p. 112. 
 28 Citado por Gajo Petrovic - in - Dicionário do Pensamento Marxista - editado por Tom Bottomore - trad. Waltensir Dutra - Jorge Zahar Editor - RJ - 1988 - p. 7. 
 29 O Poder Simbólico – trad. Fernando Tomaz (português de Portugal) – Bertrand Brasil – RJ -  1998 – págs. 97/98. 
 30 Um conceito é descritivo quando seus componentes fazem parte do mundo do ser, isto é,  manifestam-se na realidade. Por outro lado, um conceito será normativo quando abranger disposições que deverão se manifestar ou ocorrer sob determinadas condições. 
 31 FEUERBACH, Ludwig  (1804/1872) entendia que o homem se aliena de si mesmo ao criar e colocar acima de si um ser superior estranho e imaginado, e ao se curvar ante ele, como escravo. A desalienação do homem consiste na abolição daquela imagem estranhada do homem que é Deus. 
 32 PETROVIC, Gajo  – in – Dicionário do Pensamento Marxista – cit. – págs. 5/ 6. 
 33 Baseio-me, aqui, para a vertente marxista, também no citado ensaio de Gajo Petrovic. 
 34 Op. cit. – p. 8. 
 35 Idem. 
 36 As Metamorfoses da Questão Social – Uma Crônica do Salário – trad. Iraci D. Poleti – Vozes – Petrópolis – 1998 – P. 41. 
 37 Idem – p. 30. 
 38 Idem – p. 31. 
 39 Idem – p. 32. 
 40 Idem – págs. 32 / 33. 
 41 Idem – p. 34. 
 42 Idem – p. 35. 
 43 Ibidem. 
 44 Raízes do Capitalismo Contemporâneo – Hucitec/EDUFBA – 1996 – p. 26. 
 45 Sentidos retirados do Novo Dicionário da Língua Portuguesa – Aurélio Buarque de Holanda Ferreira –  Ed. Nova Fronteira – RJ - 1ª edição – 1975. 
 46 V. Amauri Mascaro Nascimento – Direito do Trabalho na Constituição de 1988 – Saraiva – SP – 1989 – p. 24 ss. 
 47 Op. cit. – p. 30. 
 48 Idem – p. 25 (sublinhei). 
 49 Apud – Arion Sayão Romita – A Norma Jurídica no Direito do Trabalho –  p. 78 - in – A Norma Jurídica – coord. Sergio Ferraz – Freitas Bastos – RJ – 1980. 
 50 Fonte:Bureau of Labor Statistics dos EUA e Morgan Stanley Research – in -  Caderno Especial – Folha de São Paulo – 1º de maio de 1998 – p. 5. 
 51 Problemas Atuais do Direito e do Processo do Trabalho – LTR 55 – N.º 8 – p. 913. 
 52 O Projeto de Reconstrução Nacional  e a Flexibilização do Direito do Trabalho – LTR 55 – N.º 11 – p. 1332. 
 53 Flexibilização X  Direito Alternativo – in – Introdução Crítica ao Direito do Trabalho – Organizadores: José Geraldo de Sousa Júnior e Roberto A. R. de Aguiar – Brasília – Universidade de Brasília  - Brasília – 1993 – p. 102. 
 54 Não resisto à tentação de lembrar que negócio, etimologicamente, significa a negação do ócio. 
 55 In – Caderno Especial – FSP – cit. – p. 7. 
 56 Para alguma dúvida em relação a isto, v. Adam Przeworsky – Estado e Economia no Capitalismo – trad. Argelina  Cheibub Figueiredo e Pedro Paulo Zahluth Bastos – Ed. Relume Dumará – RJ – 1995. 
 57 In – Caderno Especial – FSP – cit. – p. 8. 
 58 Aquelas que, em virtude de norma constitucional e/ou legal, impõem o limite mínimo de garantias que não pode ser desrespeitado, mas apenas ampliado ou melhorado. 
 59 Leia-se, diminuir garantias sociais em nome da redução do chamado custo Brasil. 
 60 FSP – Caderno Especial – cit. – p. 8. 
 61 Idem. 
 62 Idem. 
 63 Há uma excelente análise formulada por Manoel Antonio Teixeira Filho (in Revista L Tr. - Vol. 62 - N.º 2 - pp. 151/156), onde o autor critica a expressão “contrato temporário” para designar esta espécie, pois o contrato determinado (dito por prazo determinado) já é previsto no art. 443 da CLT. 
 64 TEIXEIRA FILHO, Manoel A.  (op. cit. - p. 153) entende que, no caso de o empregador valer-se deste tipo de contrato para preencher vagas deixadas por outros empregados regulares e permanentes, cujos contratos tenham deixado de vigorar, a que título seja, anteriormente à Lei N.º 9.601/98, os trabalhadores admitidos pelo contrato de que cuida esta norma seriam considerados contratados sem prazo (ou seja, por prazo indeterminado), uma vez que, face à inexistência da estabilidade no emprego, os trabalhadores despedidos não poderiam ser reintegrados. 
 65 Fonte: Folha de São Paulo  - 12 de maio de 1998 – Caderno 2 – p. 6. 
 66 HIRSCHMAN Albert  O.  – As Paixões e os Interesses – argumentos políticos a favor do capitalismo antes de seu triunfo – trad. Lúcia Campello – Ed. Paz e Terra – RJ – 1979. P. 125. 


Carlos Antonio de Almeida Melo
 é Procurador do Estado, Professor de Direito da Faculdade de Direito da UFMT (IED e Direito Constitucional) e Professor de Direito Constitucional da Escola Judicial do TRT 23ª Região “
 
http://www.mt.trf1.gov.br/judice/jud2/fundamentais.htm

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