“Haiti em guerra contra a violência sexual
As emendas ao Código Penal definirão com precisão o
crime de agressão sexual de acordo com o direito internacional, legalizarão
alguns tipos de aborto em casos de gravidez por violação e castigarão os abusos
dentro do casamento
Por Ansel Herz, da IPS/Envolverde
O Haiti está a caminho de introduzir grandes reformas em seu Código
Penal, com a finalidade de facilitar que se faça justiça nos casos de violação
de mulheres. As emendas ao Código definirão com precisão o crime de agressão
sexual de acordo com o direito internacional, legalizarão alguns tipos de
aborto em casos de gravidez por violação e castigarão os abusos dentro do
casamento. As mudanças também ordenam a assistência legal financiada pelo
Estado às vítimas que não podem pagar e proíbem, pela primeira vez na lei
haitiana, a discriminação por “orientação sexual”.
“Creio que é um momento emocionante”, declarou
Rashida Manjoo, relatora especial das Nações Unidas sobre Violência Contra as
Mulheres, em uma conferência realizada no mês passado sobre as reformas. “É um
pequeno começo com o Código Penal, mas um bom começo”, afirmou. Advogados e
ativistas presentes nesse encontro analisaram um rascunho de três páginas sobre
as reformas, e expressaram sua confiança de que o parlamento as aprovará este
ano. Porém, Manjoo alertou que a lei não poderá ser plenamente implantada sem
um adequado financiamento de doadores e sem a colaboração da população.
Nos três anos passados desde o terremoto de 2010, o problema da
violência sexual se agravou neste país. Veículos de comunicação internacionais
se referiram a uma “epidemia de violações” nos acampamentos de desalojados
instalados em razão do terremoto, que são inúmeros em Porto Príncipe. Estudo de
2012, realizado por uma coalizão de grupos legais e de mulheres, mostra que
pelo menos uma integrante de 14% das famílias desalojadas foi vítima de um
ataque sexual. Cidadãos, polícia e advogados tentam combater a violência contra
as mulheres nas comunidades.
Em alguns acampamentos os refugiados formaram brigadas de segurança. Um
informe da coalizão de solidariedade haitiana Poto Fanm+Fi concluiu que essas
brigadas são, de fato, mais efetivas do que as patrulhas das forças de paz da
Organização das Nações Unidas (ONU). Em todas as delegacias da capital agora há
funcionários capacitados para atender e ajudar vítimas de agressões sexuais,
explicou à IPS a coordenadora para Assuntos das Mulheres da Polícia Nacional
Haitiana, Marie Gauthier. Entretanto, “agora precisamos é de veículos para
transportar rapidamente e prender o responsável”, acrescentou.
As vítimas da violência sexual muitas vezes apelam ao apoio moral e
humanitário fornecido pelo grupo de mulheres Kofaviv. O terremoto destruiu a
sede central desta organização, deslocando suas fundadoras para uma barraca de
campanha. Porém, logo conseguiram garantir apoio financeiro de doadores,
inclusive do governo dos Estados Unidos, o que lhes permitiu ter acesso a um
prédio de dois andares e expandir seus programas.
Mulheres chegam de todas as partes de Porto Príncipe para participar de
reuniões semanais, nas quais vítimas de ataques sexuais podem estreitar os
laços e compartilhar informação. Aos tribunais chegam cada vez mais casos de
violações, segundo afirma o Bureaus des Avocats Internationaux (BAI). Quase um
terço dos julgamentos no último verão boreal no tribunal de Porto Príncipe foi
por acusações de violação. Três homens foram condenados.
“Isto é muito significativo, considerando que há apenas dez anos quase
nenhum caso era processado”, disse à IPS a advogada Nicole Phillips, da BAI,
acrescentando que se trata de um “enorme passo adiante”. Antes, os juízes
pediam às vítimas que apresentassem atestados médicos no prazo de 48 a 72 horas
demonstrando terem sido violadas. Mas era difícil, ou mesmo impossível,
obtê-los, devido ao estigma, ao trauma e aos custos econômicos.
“Os julgamentos estão ficando mais sofisticados”, pontuou Phillips. Os
tribunais agora dependem mais de depoimentos de especialistas e profissionais
médicos. A advogada elogiou os juízes e a polícia em Porto Príncipe por levarem
mais a sério as acusações de violação. Porém, os progressos no Haiti no combate
à violência contra as mulheres enfrentaram um grande teste no começo deste ano.
Quando Marie-Danielle Bernadin contou pela primeira vez aos seus amigos mais próximos
que foi violada por seu chefe, o presidente do Conselho Eleitoral, Josue
Pierre-Louis.
Todos a aconselharam a abandonar o país. “Onde conseguirá justiça aqui?
Não denuncie”, recordou o que lhe diziam. “Mas, não posso manter algo assim
escondido. Quando alguém te machuca, te viola e tudo termina. Simplesmente,
pode-se guardar isso? Isso me deixaria louca”, destacou à IPS. Bernadin foi à
polícia em novembro de 2012, pouco depois do incidente, e denunciou que
Pierre-Louis, um dos homens mais poderosos do país, a violentara depois que ela
o questionou sobre fotos de mulheres nuas em seu telefone celular. Pierre-Louis
negou essas acusações e a acusou de “espionagem”.
Em uma audiência preparatória, em janeiro, partidários de Pierre-Louis
se manifestaram com cartazes diante dos tribunais. Cinco dias depois, Bernadin
retirou as acusações. Em um comunicado, afirmou: “Decidi retirar a acusação,
mas reafirmo que apanhei e fui violada por Josue Pierre-Louis”. Bernadin contou
que foram os meses mais difíceis de sua vida, e afirmou que partidários de
Pierre-Louis tentaram silenciá-la de diversas maneiras. Ao seu pai foi
oferecido um emprego no exterior, sua família nos Estados Unidos recebeu
ameaças telefônicas e na internet circulou uma foto falsa sua com a intenção de
caluniá-la”.
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