quinta-feira, 25 de julho de 2013

Estrangeiras flagradas com drogas no Brasil não deveriam estar na prisão, diz especialista

O Estado brasileiro mantém presas 833 estrangeiras e praticamente todas foram flagradas transportando drogas no País, informou a advogada criminalista Sônia Drigo, cofundadora e ex-presidente do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) e integrante do Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas (GET Mulheres Encarceradas). A advogada diz ser contra a permanência delas na prisão, já que, em sua visão, as estrangeiras praticaram conduta de baixo poder ofensivo, pressionadas pela urgência de ganhar algum dinheiro, pagar contas e ajudar a família. Para Sônia Drigo, elas deveriam estar cumprindo penas alternativas, como, por exemplo, a prestação de serviços comunitários.


Prisão, para mim, continua sendo exceção e assim deveria ser tratada e cumprida. Vivemos, principalmente na última década, a banalização dos decretos de prisão. Pior de tudo é que estamos cansados, esgotados mesmo, de saber que não funciona. Não trata, não educa, não protege. Ao contrário, estigmatiza, desvia, adoece, alertou a especialista, em entrevista à Agência CNJ de Notícias. Sônia Drigo é uma das presenças confirmadas no II Encontro Nacional do Encarceramento Feminino, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen/MJ) vão realizar em 21 e 22 de agosto, em Brasília/DF. Com a participação de vários conferencistas, o evento tem o objetivo de discutir soluções para as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no cárcere. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Durante o II Encontro Nacional do Encarceramento Feminino, a senhora vai debater o Tráfico de Entorpecentes: o Problema da Pequena Traficante e da Mula (portador de entorpecentes contratado por aliciadores). Dessa forma, poderia traçar breve perfil da pequena traficante? Há alguma diferença entre as duas?

Para mim, que sou advogada criminalista desde 1976, são todas pessoas que praticaram condutas de menor potencial ofensivo, se é que se pode aplicar esse termo. Infelizmente, quando os tribunais reconhecem a figura privilegiada e substituem as penas privativas de liberdade por restritiva de direitos, elas já cumpriram toda a pena. Os aliciadores, distribuidores das drogas, é que deveriam ser identificados e impedidos de entrar no País. Não é a droga que elas trazem na barriga, por fora ou por dentro, que atemoriza a sociedade, e disso todos nós sabemos.

Qual a dimensão do envolvimento de mulheres estrangeiras no tráfico de drogas no Brasil?

Meu primeiro contato com a realidade das mulheres presas foi em 1997, na antiga Penitenciária Feminina do Tatuapé/SP. Nessa época, eram aproximadamente 50 presas estrangeiras em todo o estado; muitas delas, africanas e bolivianas, e algumas chinesas e espanholas; ficavam todas misturadas às presas brasileiras. O tratamento dado pelo sistema era o do isolamento: não havia intérpretes, as cartas não eram entregues, aprendiam a língua portuguesa e recebiam roupa íntima e material de higiene por solidariedade das presas brasileiras. A maioria dizia que havia concordado em trazer droga em troca de US$ 5 mil. Parecia preço padrão. Umas, para pagar tratamento médico de familiares, outras, na esperança de melhorar de vida, achando que fariam por uma única vez. Nessa época tinha o agravante de que a documentação de extradição não acompanhava o ritmo do cumprimento da pena. Assim, elas ficavam presas administrativamente por meses, esperando a ordem e a passagem de volta. Poucos consulados davam atendimento; raros davam ajuda material.

Diante desse quadro, qual foi a sua reação?

Nessa época, eu, a irmã e advogada norte-americana Michael Mary Nolan, além de outras pessoas envolvidas com essa realidade, constituímos o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC). Conseguimos um Protocolo (sem ônus para o Estado) com a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo para cuidar das presas estrangeiras, fazer o papel de familiares delas. Sem prestar assistência jurídica, mas encaminhar os assuntos mais urgentes: contato com familiares, recebimento das cartas, independentemente de tradutor (isso depois da morte de uma espanhola que tinha seis meses de cartas fechadas na administração sem saber), distribuição de algum material de higiene e roupa íntima na entrada, contatos com os consulados, reuniões com a Justiça Federal para agilização dos processos e garantia dos tradutores durante todo o processo e não só no interrogatório, nos aeroportos, no momento do flagrante. Era comum ouvir delas que o policial que atendeu a ocorrência só falava espanhol ou inglês. As africanas sofriam, pois seus costumes e tradições não eram conhecidos, muito menos respeitados, gerando faltas pela desobediência das normas da casa. Seus bens pessoais não eram guardados e as passagens aéreas de volta eram perdidas.

Como é a situação nos dias de hoje?

O perfil delas continua o mesmo. O número aumentou mais de 10 vezes, mas, em sua maioria, são pessoas simples, de pouca escolaridade, com filhos, sem profissão definida, em busca de receber um dinheiro fácil para pagar uma emergência ou cuidar melhor da família. Ficam reunidas em uma penitenciária, o que faz toda diferença para o aprendizado do nosso idioma e costumes. Hoje, são raros os casos de permanência na prisão além do tempo devido, e algumas conseguem receber o livramento condicional, em garantia à progressão do regime. Muitas não conseguem endereço, trabalho. O ITTC continua prestando esse serviço e recebeu recentemente o Premio Innovare. Se falta quase tudo para as brasileiras, o mesmo se dá com as estrangeiras. No fundo, são todas mulheres com os mesmos sonhos e dificuldades.

Qual o contingente de estrangeiras presas no Brasil?

Segundo relatório do Ministério da Justiça com dados de junho/2012, tínhamos o registro de 833 mulheres estrangeiras presas no Brasil, e destas, 589 em São Paulo, prevalecendo entre elas as bolivianas e as africanas, quase a totalidade por conta do envolvimento com o tráfico de drogas. O que leva as estrangeiras a se envolver com o tráfico, como disse anteriormente, são as mesmas razões que levam as brasileiras a cometer pequenos tráficos ou furtos de xampu, carne ou óleo de amêndoas: para ajudar a família, principalmente filhos, falta de escolaridade e profissionalização e o uso/abuso de drogas lícitas e ilícitas. Constatamos grande número de mulheres com transtornos mentais que não conseguem de maneira geral criar rotina de trabalho e de rendimentos fora do crime. E o tráfico, pequeno ou grande, é muito rentável, rápido e não requer habilidade. Os clientes batem à sua porta.

A senhora acha adequada a pena de prisão para o caso da pequena traficante e da chamada mula?

Prisão para mim continua sendo exceção e assim deveria ser tratada e cumprida. Vivemos, principalmente nesta última década, a banalização dos decretos de prisão. Pior de tudo é que estamos cansados, esgotados mesmo, de saber que não funciona. Não trata, não educa, não protege. Ao contrário, estigmatiza, desvia, adoece.

Quando essas mulheres são presas, o que acontece, geralmente, com as que são mães? O Estado oferece algum tipo de apoio?

Indiferentemente de elas serem brasileiras ou estrangeiras, o Estado não tem essa preocupação. O destino da criança é o abrigo quando não há vizinha ou tia ou avó. Hoje menos, mas filhos de estrangeiras (e de brasileiras) presas já foram dados em adoção sem o conhecimento delas. Para todas, defendo a permanência dos filhos junto às mães, na forma da lei, em espaços dignos destinados aos berçários e a creches, com acompanhamento de equipe multidisciplinar, a não ser que esse não seja o desejo da mãe ou do pai, quando houver bom relacionamento. Aliás, não se fala em criar berçários e creches em unidades masculinas, como se os homens não fossem também responsáveis pela guarda ou pelos cuidados com os filhos. Isso mostra bem o papel da mulher na sociedade ainda hoje.

Durante o II Encontro Nacional do Encarceramento Feminino, a senhora pretende apresentar alguma proposta relativa a essa temática?

No I Encontro, a Dra. Ela Wiecko (subprocuradora-geral da República e ouvidora do Ministério Público Federal) me abriu os olhos quando disse que o perfil da mulher presa se alterará por completo quando o tráfico deixar de ser crime. Isso é fantástico, pois a maioria comete ou é presa por tráfico. Essas mulheres são tratadas como grandes criminosas. Quando a legislação permitir o uso de todas ou de algumas drogas, teremos outros dados, e aí sim poderemos dar tratamento médico a quem precisa, ou social, a quem necessita.

Como a senhora vê a iniciativa conjunta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) de realizar este seminário?

Infelizmente, não foi realizado no ano passado, como ficou compromissado no final do I Encontro, em 2011, e na Carta de Brasília. Precisamos trocar experiências, cobrar atitudes, dialogar. Mais do que isso, precisamos acabar com o preconceito. Não é verdade que a segurança de todos está vinculada ao número de prisões e ao aumento das penas ou diminuição da idade penal. Se não damos tratamento digno e justo aos maiores de 18 anos, o que será feito desses jovens? Onde ficarão? Precisamos de segurança pública, desarmar a sociedade, cumprir as nossas leis desde o primeiro momento e não só em favor daqueles que conseguem recorrer aos tribunais superiores. Precisamos que o CNJ e o Depen cobrem das autoridades os encaminhamentos recomendados nos relatórios dos mutirões. Espero que façam isso de forma enérgica, exemplar mesmo. As mães presas, os filhos que nascem na prisão, as idosas, as doentes mentais, mulheres e homens presos nas condições atuais não podem esperar. O risco da demora ou da omissão é grave demais quando pensamos nas gerações já comprometidas pela falta de assistência.


Fonte: Conselho Nacional de Justiça

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